SOMBRA em Ação
Em minhas orações, sempre peço a Deus para que eu possa, só e tão somente, lucidamente ficar alguns segundos sem pensar. Penso que quando isso acontecer, vou atingir a sapiência de uma horda de anjos, o conhecimento de mim mesmo e a transcendência do nirvana. Insistentemente tenho tentado e quase consigo. Digo quase, porque quando imaginei que havia ficado sem pensar, acordei e voltei a realidade sobressaltado. Então devo ter ficado sem pensar um pequeno, ínfimo tempo, que nem eu sei explicar. O leitor que já passou por essa experiência com lucidez e sóbrio sabe muitíssimo bem o que estou tentando explicar. Mas enfim, paciência.
O que aconteceu para que chegasse à essa letargia de pensamentos, foi que naquele dia, acordei numa masmorra dos diabos. Preguiça avassaladora, daquelas que todo Brasileiro rumina ao sair para trabalhar: “caraca, hoje tô numa inhaca dos diabos. Putz trampar, carregar marmita, ônibus lotado e lorota de chefe até 17h, ninguém merece”!
Naquele momento da aurora, tudo para mim era motivo de encosto. Porém, sabia que o problema era preguiça mesmo e pura falta do que pensar. Daí, a pseudo-ideia de que havia ficado alguns segundos sem pensar. Talvez até tenha ficado, sei lá entendi?
A letargia era tamanha que tentei escrever: não consegui concatenar as ideias nas frases e posteriormente, os parágrafos. Tentei ler: não consegui interpretar o que lia. Para elucidá-lo das dificuldades, as minhas vistas embaralhavam as palavras nos parágrafos; quando notei, o livro estava de ponta-cabeça. Tentei ir ao banheiro: fracassei. Lembrei que, apesar do mal hálito bucal matinal constante, já havia escovado os dentes e naquele exato momento, minha barriga não doía e nem havia nenhum desarranjo estomacal.
Tentei olhar fixo para a parede à minha frente, mas a cor do vermelho-ferrugem da pintura ofuscava minha visão. Diante de todos esses acontecimentos, foi que cheguei a conclusão de que, se não aconteceu naquele instante, poderia acontecer em outros instante e consequentemente, ficaria alguns segundos sem pensar. Insisti. O mestre dos mestres é aquele que reconhece que existe o tempo ideal para tudo. Sem afobação, pacientemente e respeitando o tempo ideal para a realização do feito, aguardava o instante.
Desliguei-me do barulhento computador, que nesses momentos só servem para extraviar a energia vital através do magnetismo; recostei relaxadamente na cadeira, estirei os pés com as meias sujas sobre a mesa e procurei esquecer que a vida é feita de pensamentos, sonhos e ilusões. Nada. O cheiro vindo dos pés incomodava as minhas narinas. Levantei-me, fui ao banheiro – agora tinha significado a minha ida até lá – tirei as meias e lavei os pés bem lavados; pois com citado: já havia escovados os dentes. Sentia-me como o humilde Jesus Cristo lavando os pés dos poderosos discípulos e apóstolos.
Tirei a camisa e a bermuda. Prendi o cabelo, como se amarra rabo de cavalo. Fiquei só de cueca e sentei em forma de ioga sobre o tapete da sala: joelhos dobrados em cruz até o peito e as mãos abertas, como quem pede esmola. Fechei os olhos e concentrei: tudo sumiu. Vazio absoluto; repentinamente tudo reapareceu, naquele momento, imaginei ser um iniciado. Pensei: “se consegui, embora inconscientemente a proeza de rondar o vácuo e as profundezas da leveza humana, posso repetir o feito, porém totalmente lúcido. Quero ter a certeza de que consegui ficar sem pensar. Deve ser algo indescritível!”
Achando o lugar meio desconfortável, coloquei as meias e os tênis, vesti a camisa e saí sonâmbulo, batendo nas coisas, tateando as paredes da casa. Quando cheguei em frente ao portão ouço alguém dando risadas. Olho em mim: estava seminu. Voltei desapontado e lépido para dentro de casa. Em verdade vôs digo que fiz todo o trajeto totalmente fora de mim e sem ouvir o mínimo ruído sequer, porém pensando.
Coloquei a bermuda, fiz uma breve concentração no tapete, tateei as paredes, tranquei a porta da sala e cheguei próximo ao portão. Enfiei a chave no buraco da fechadura, trancando-o por fora. Pensando que as pessoas iriam saber que eu estava em transe absoluto e fora de mim, lembrei-me dos óculos escuros e coloquei-os na cara e levei o celular à orelha; assim ninguém poderia imaginar e zombar do meu transe. Dei o primeiro passo. Ouço um barulho seguido da frase: “Buuum!! Feche a porta”. Virei o corpo e toquei no portão: realmente estava fechado. Pensei: “feche a porta”.
Voltei e conferi a porta: fechada. Se em casa tudo estava em plena perfeição o alerta só poderia ter vindo da rua. Olhei por debaixo dos óculos e vejo uma adolescente em trajes todo preto, chegando num corredor de casinholos mal acabados e com tudo aparente. Cambaleante, com os cabelos esvoaçados, dançava a valsa: dois para lá, dois para cá. Pisando no rabo do cão vira-latas que veio saudá-la, trazia nas mãos uma ponta de cigarro acesa e uma garrafa de bebida; nos pés, botas que iam até o joelho com o cadarço desamarrado.
Chegou em frente à um dos casinholos, chamou: “mãe, abre a porta. A senhora esta em casa, ou também foi à festa?” Não saiu vivalma lá de dentro. Caminhou em direção à outra: “vizinha, abre a porta. Você está em casa, ou foi também à festa?” Foi em outro e outro. Sempre os mesmos dizeres: “vizinha, abre a porta. Você está em casa, ou foi também à festa?” Vendo que não saía ninguém, empurrou a porta de um deles e pulou para dentro.
Uma vez que já estava com eles, ajustei os óculos no rosto e pus-me na estrada.
Agora totalmente desperto. Sabia que depois da cena, deixar de pensar, jamais. Ao passar pelo centro, certo rebuliço: de um lado uma trupe dos personalizados com bonés de banda, calça penduradas no meio das nádegas, grossas correntes nos pescoços, celulares e bebidas nas mãos e tatuagens bem vívidas. No meio, mulheres com vestimentas estranhas de libélulas, mariposas, fada madrinha, branca de neve, bicho preguiça, galinhas. Máscaras no rosto, adornos de metais pelo corpo e tropeçando nas sombras.
No outro lado, o bando dos padronizados: senhores de ternos, babando nas gravatas, falando polidamente, encostado nos carros. O único que distoava do bando era o senhor fantasiado de Chapolin. Para animar a festa: nos falantes, uma mistura de ritmos dos diabos e dos deuses.
Meus ouvidos escutavam e os meus olhos, mesmo estando cobertos pelos óculos escuros, observavam.
Mais tarde, passado a ressaca e tomando “uma” para rebater a da noite anterior, o comentário geral era: “você foi à festa, ontem? Pô cara, foi bombástica! Os DJs explodiram a galera com o som metálico e a batida de uma nota só, nas caixas! Teve “nego” que saiu de quatro, chamando Jesus de Genésio e trocando jiló por banana”. Pensei comigo: “que palavriado mais tosco”.
Agora, confidencialmente, como é difícil atingir o estágio de nirvana. Quando estou livre do ego e no ápice da minha busca interior, aparece pequenos detalhes para me atrapalhar.
Acredito que o motivo seja os ambientes onde busco o silêncio e a inspiração para tal, sabendo-se disso, vou procurar outros ambientes para relaxar e o primeiro deles será refugiar-me na festa à fantasia que vai rolar mais tarde no clube NTV: “Nós Travamos Veio”. Estou velho e ultrapassado, mas ainda posso gozar um pouco no meio dessa juventude transviada, cujo lema é: “os pais fizeram e fazem e se os pais fazem é de responsabilidade deles continuar fazendo, mano! Eu quero é mais degustar do néctar do prazer. Doa em quem doer"!
Festa à fantasia é como mosca em carne seca: voa uma, vem duas para ocupar o lugar da que voou. Participando dos eventos que rolam na night, ficar sem conhecer a si, somente quem quer. Festa à fantasia é o início da revelação da alma, o script do ensino interior, a leveza espiritual e o resto é conversa fiada e consequências futuras.