A Criação e o Fim - O Apocalipse e o Anjo.
“Vês? - disse o Anjo, enquanto me fitava com ares sérios - É sempre tudo muito semelhante; enquanto alguns lamentam, outros riem, e enquanto alguns afundam no orbe latente das imundícias mundanas, outros lutam para conter a fatalística realidade a que chamam fome. Desde que o homem habita o planeta que lhe foi dado, assim tem sido, e o Leão da Lei, a quem se paga com a Balança, há muito tem demasiado trabalho com aquelas almas.”
Eu ouvia muito atento às palavras do Anjo, e por vezes parecia-me sentir nele certa apatia em tudo o que ensinava, como se algo inútil e de já sabido final. Do alto do edifício abandonado da rua Treze onde nos achávamos, via-se muito bem grande parte da cidade: a pressa dos motoristas e transeúntes, a movimentação desgovernada nos comércios, os tantos barulhos que compõem a sinfonia bizarra da área urbana. Uma criança chorando aqui, um cão latindo lá, um vendedor anunciando em alto e bom tom a mercadoria... Mas eu ficava em silêncio, e ouvia o Anjo.
“Há muitos milhares de anos, quando esta terra era árida, Deus pos o corpo dos homens sobre ela, e neles, almas; e instruiu-lhes que fizessem das terras áridas, férteis, que tudo de que precisassem estaria ao alcance, e que sempre encontrariam refúgio Nele; mas que algo não saiu como o previsto, não se duvide. A alma, posta no corpo do homem, esqueceu Quem Era Deus, e esqueceu o que havia antes e depois da Terra. O corpo do homem, era matéria bruta animada pela alma, que era filha legítima das entranhas de Deus; mas algum fenômeno, que, penso eu, obra podre do Demônio enciumado, aconteceu na fusão, pois nasceu aí o mal no homem, que agora era corpo e alma, e o mal nunca mais saiu dele.
“Deus, amando muito a alma do homem, determinou que morresse o corpo depois de certo tempo, feito maquinário gasto, e, para tanto, limitou a ação da alma sobre ele. Mas, ah! Que decepção surpreendente foi para todos nós quando o primeiro corpo de homem morreu! A alma, ao sair dele, não saiu de todo consciente; ao notar tê-lo abandonado, quis voltar para ele, e ali ficou, até vê-lo apodrecer e tremeu de horror. E Deus, muito triste, decidiu expurgar-lhe todo o mal e dar-lhe um novo corpo, até que pudesse finalmente compreender o agir sobre a matéria, como fosse uma criança ainda no aprendizado. E fora em vão... Muitas e muitas gerações daquelas almas tem habitado outras tantas gerações de corpos, e efeito de melhora algum se observa.
“O homem, como tu o conheces, construiu tudo o que existe de construído; mas este conhecimento não veio do homem como o conheces, e sim da alma e só dela. Quando o mal do Demônio agiu sobre a sabedoria da alma, que construiu tudo o que existe de construído, muitas coisas más foram igualmente feitas, e o são, e o serão até o Fim; porque a alma esqueceu Quem É Deus, e esqueceu o que há antes e depois da Terra.”
E o Anjo, percebendo o medo e a angústia em minha face pelas revelações que a mim fazia, pousou a mão em meu ombro e consolou-me.
“É bem verdade que nem todas as almas são iguais; algumas delas, por boas filhas e alunas, são mais brandas e honestas. Mas também é verdade que no fundo, nenhuma é merecedora do Reino dos Céus e do amor de Deus, pois Lhe renegam como Pai, e caminham pelos vales das sombras com medo, e caminharão até o fim, pois não andam com Ele. Por isso, o Fim chegará para todos e a todos espancará com aço e ácido, para que todas as blasfêmeas ditas sejam por fim caladas e toda a maldição deste planeta seja desfeita. Tudo o que foi pelo homem criado de ruim será por ele engolido à seco, e digerido. Porque muitas provas já são dadas de tudo o que é certo e do errado, e todo o perdão tem sido dado, e as chances todas possíveis.
“Mas o pai que olha para casa e vê os filhos maltratando a mãe, e uns aos outros, e lhes instrui, e a eles tudo dá, assim os vê por longas e longas contagens de tempo, incalculáveis nas medidas que tu conheces, hora ou outra sentirá tristeza; e sentindo tristeza os abandonará à sorte. O filho que se conclui suficientemente capaz, e não o é, abandonado à sorte sucumbe fácil. E assim será muito breve com o homem.
“Disseram e dizem que a ira de Deus destruirá o mundo; não o mundo inteiro e os filhos todos que Ele há ditado, mas sim a este mundo, dos homens. Eis que é isto um equívoco. A ira é sentimento que parte do mal, e o mal não parte de Deus, que é infinitamente bom; se o mal não parte Dele, não poderia partir a ira; portanto, não há ira em Deus, apenas nos homens e nos Demônios. Tendo se percebido que a alma esqueceu quem é Deus, e o que vem antes e depois da Terra, atrapalhou-se nisto: o que destruirá o mundo será a ira e somente ela, e não Deus. Porque Deus abandonará tão em breve os homens à própria sorte; e eles colherão os frutos dos malgrados que semearam junto com o Demônio; e tendo Deus abandonado os homens da Terra, não é mais útil nada que venha deles para o Demônio, que só quer magoar a Deus.
“O Demônio teme que Deus abandone o homem, e por isso a cada dia pinta ilusões sobre este mundo; edifica igrejas para que os homens creiam, mas Deus, que tudo sabe, vê e detesta, pois é mentira.
“Quando este mundo for abandonado, o Demônio empreitará tomar dele conta, e desistirá, porque nao será mais útil e dará muito trabalho. Aí é que todo o caos será visto, em todas as partes, até que o Fim seja perfeito e certeiro, não restando pedra sobre pedra, nem alma em corpo algum. E as almas ficarão a esmo, e então procurarão a Deus. E o Juízo Final será feito, quando cada alma que se mostrar arrependida sincera e consideravelmente será perdoada e acolhida para os domínios do Pai, e as impuras e medrosas, que não arrependerem-se como disserem, mas, somente temerem desgraçadas ao Fim, serão deixadas nos domínios do Demônio, dos quais farão parte a Terra e todo o tormento que nela haverá.”
Depois, o Anjo ficou silente, e contemplou a cidade com olhos de misericórdia. Tenho para mim que pensou em algo que não me disse, algo ainda bem pior do que tudo o que disse. Ergueu-se então do meu lado, em toda a sua luz divinal, e foi-se embora, depressa, quebrar outro Selo.