A poética marinha de Fabio Daflon
Carioca e médico pediatra, Fabio Daflon se acostumou a vida na capital capixaba e hoje se dedica aos estudos literários e à escrita. Autor de sete livros, o poeta fala um pouco sobre sua obra mais recente, o livro de poemas Mar Sumidouro (2013), que foi publicado pela editora Cousa com patrocínio da Lei Rubem Braga.
Mar sumidouro é o seu terceiro livro de poemas e mais uma vez a água é uma questão comum na sua obra. Gostaria que você falasse um pouco da importância da água nos seus poemas.
Antes do Mar sumidouro, publiquei dois livros de poesias; o primeiro foi o Hipotenusa & Outros escritos e o segundo Mar ignóbil. Respondendo a sua pergunta: somos setenta por cento água e trinta por cento de carne, e é na carne que habita a alma. Na teoria de Darwin viemos do mar e para lá não retornamos, mas viajamos no mar, vivemos também do mar e é mais fácil flutuar na água salgada.
Fiz carreira como médico na Marinha do Brasil; naveguei em navio de guerra, andei de veleiro, conheci mar bravio em uma viagem às redondezas da Ilha de Trindade, vi baleias e golfinhos a seguirem ao lado da embarcação. A água na minha poesia é imagem, é inconsciente, é orgânica, a água é, então, para mim essencial não só à vida. É transparência e turvação, às vezes barrenta como sangue, alimenta a alimária em seus regaços, o mar, as enseadas, os istmos, os rios, todos eles feitos de água se afeiçoam a poesia. Isto é, a água não habita a carne, morada da alma, mas a circunda. A água em meus poemas é um instrumento de circum-navegação, acredito que alargue o alcance dos poemas que escrevo.
Você declaradamente prefere trabalhar com formas mais tradicionais como o soneto e já até admitiu uma certa dificuldade com versos livres. Por que essa preferência?
Não é exatamente uma preferência, talvez seja um pendor. Uma necessidade de convívio com a tradição. Paul Ricouer escreveu que quando a utopia se afasta da tradição há crise. Gosto de poesia em versos livres; aprecio Mallarmé – o poeta precursor da poesia contemporânea -, mas nunca fui estudante de letras, e deste não ser nasceu uma necessidade de dominar certas técnicas como as da feitura de sonetos.
Muito tempo atrás li o escrito de Umberto Eco “Mostres-me um soneto e dir-te-ei se és poeta”, procurei corresponder a esta premissa para me sentir poeta. Quando fiz o curso de Especialização em Estudos Literários na UFES, tive a oportunidade de aprender a partir de dicas do Professor Wilberth Salgueiro, nosso poeta Bith, como escrever sonetos em versos heroicos, sáficos ou alexandrinos. Pratiquei as modalidades até transcender os aspectos formais, isto é, meus sonetos não são feitos em uma fôrma. Não são poesias engessadas. Obviamente, escrevi sonetos que após amadurecer descartei por serem ruins, isto também ocorreu com Vinícius de Moraes.
Além disto, creio que muitos poetas sintam preguiça em cultivar formas tradicionais de expressão poética. Não estudam os instrumentos oferecidos pela tradição, não só para escrever sonetos, porque estes não são os únicos tipos de poemas com proposições formais pré-definidas. Existe o Gazal, o Haicai, a Galimatia, a Bengala em quatro batidas, formas onde se pode praticar boa, ótima ou excelente poesia. Há mais de cinquenta anos poetas apressados e críticos preguiçosos falaram no fim do verso histórico. Felizmente, ao menos no que depender de mim, isto não ocorreu nem vai ocorrer.
Entretanto no livro Mar sumidouro, percebe-se a quebra dessa forma fixa, abandono da métrica e do soneto na maioria dos poemas. Como foi experimentar esse novo formato? E trabalhar o ritmo sem a precisão da métrica?
Experimentei a leitura de poetas ótimos em versos livres, porém, antes de tudo, é preciso dizer que toda poesia é verbal e visual, isto não é apenas concernente à poesia concreta. Mesmo em versos livres o poeta desenha o poema. Em versos livres, foi Mallarmé quem ampliou as possibilidades do uso da página a limites antes nunca transgredidos. A poesia, como o conto definido por Júlio Cortazar, tem aspectos estéticos, históricos e metafísicos, mas transcende as possibilidades do conto. O conto é esférico, é fotografia, ainda segundo Cortazar, mas a poesia pode ser poliédrica, não ter limites formais por provocar estesias maiores. Cortazar também diz que o romance é poliédrico e, mais que fotografia, é cinema.
Você acertou ao perguntar “Como foi experimentar esse novo formato?”. Palavras jogadas ao léu sobre uma página jamais formarão boa poesia, porque o poema, como a elaboração pictórica de um quadro, também tem o aspecto formal. Vivemos na polirritmia da cultura afro-europeia de que descendemos, o samba é polirrítmico, devemos esta herança à África, a música europeia é polissônica, tenho filiação a essas duas culturas rítmicas. Identifico essas influências em alguns poemas. Trabalhar o ritmo sem a precisão da métrica veio de tudo isso. Por óbvio, não foi fácil, e se tivesse sido fácil não teria valido a pena.
O amor, o ciúme, filhos, viagens são alguns dos temas do Mar Sumidouro, como foram nascendo os temas desse livro? Você já escreveu pensando em um conjunto para a obra?
Os temas foram nascendo da vida, que é a parteira de tudo que a manifesta. Sentimentos, seres humanos, passeios imaginários além da viagem concreta. O título Mar sumidouro enseja muito: sou um homem do século XX sem a maioridade do século XXI. Vivi a cinquentena e, ao final dessa década de vida, publiquei o Mar sumidouro. Victor Hugo escreveu que os quarenta anos são a juventude da velhice e os cinquenta a velhice da juventude. A cinquentena é parecida com a adolescência, marcada por alterações no corpo, diminuição das capacidades funcionais e fisiológicas, e o Mar sumidouro fala dessas perdas e das miragens advindas então. O que não é alcançável, ou não é mais alcançável, e o que foi alcançado são o tripé temático do livro, um livro, assim, mais de despedida do que fáustico. Não venderia minha alma ao diabo para um retorno à juventude.
Você é médico, a sua profissão de alguma forma influencia na sua forma de escrever? E como foi conciliar essas duas vocações?
Sou um pediatra. Especializei-me também em medicina psicossomática. Por décadas colhi histórias de pacientes e realizei exames físicos. A pediatria monitora o crescimento e o desenvolvimento. Crescimento é um processo exclusivamente orgânico. Ao fim desse processo teremos uma forma corporal e uma altura. Talvez dos estudos do crescimento, dependentes de processos hormonais complexos, porque é a testosterona que determina o fim do crescimento com a estimulação à solidificação dos ossos, talvez tenha surgido paralelamente meu interesse pelos estudos dos aspectos formais da poesia. Ao pediatra interessa a forma da cabeça da criança, a do tórax, se ao fim do crescimento o paciente vai ser brevilíneo, normolíneo ou longilíneo. Somente a cirurgia plástica lida mais com aspectos formais do que a pediatria.
Na plástica o cirurgião intervém sobre o resultado, o pediatra em muitos casos intervém sobre o processo. A medicina psicossomática, se alguma influência exerce, é sobre a prosa, não sobre a poesia. Além disso, a biblioteca técnica de um médico é sua literatura médica. O exercício da medicina é arte médica. Por demasiadamente humana, a medicina modifica quem a exerce. Às vezes fico triste por crer que dei à medicina muito mais do que dela recebi. Hoje compreendo que essa “tristeza” manifesta minha gratidão profissional.
E como a literatura entrou na sua vida?
Sempre gostei de ler. Foi assim. Gosto do que o Paulo Mendes Campos disse “A literatura para mim é uma divindade necessária.”. Na adolescência, escrevia no porão da minha casa. Nada guardei da fase pueril. Publiquei meu primeiro livro em 1980. Um ensaio sobre a história da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, onde me graduei em medicina. Depois só voltei a publicar em coautoria com meu pai, Alberto Daflon, em 2002, o livro Vento Passado_ memórias do recruta 271_, sobre a passagem dele na Segunda Guerra Mundial, no teatro de operações de guerra da Itália. Publiquei também o Estrela miúda _ breve romance infinito _ , também de memórias, estas da minha juventude. Creio que não só essa necessidade memorialística me motivou a escrever. Escrevo também sobre o que ocorre hoje e vai ser memória amanhã. Temas afetos ao “eu lírico”, tão abominado hoje em dia, e sobre assuntos atuais – os mais diversos de mim.
Em breve, você vai lançar o seu quarto livro de poemas, Vagalume-Farol, gostaria que você falasse um pouco sobre essa nova obra e a previsão do lançamento.
Tanto o vaga-lume quanto o farol são piscas-piscas para quem os vê. Quando menino, na fazenda de meu avô Fortunato, havia constelação de vaga-lumes não fugidios, peguei entre as palmas das mãos este inseto espetacular. Durante a realização do livro estudei a biologia dos vaga-lumes, seus modos de vida, alimentação. Simbolicamente, a metaforização do inseto-luz lhe dá sentido e significado político, ecológico, humano. O farol, na instância que ocupa no livro, não tem a mobilidade do vaga-lume, é fixo em sua nobre missão, a de evitar naufrágios. O ideal é que um vaga-lume envelhecido pudesse se transformar em farol. Este é o leitmotiv poético do livro.
Costumo fazer uma provocação para os poetas que eu entrevisto, afinal, para que serve a poesia?
A poesia, ao menos a boa poesia, serve para edificar o status ontológico de um povo. Foi por isto que certa vez Carlos Drummond de Andrade se perguntou “O que fiz pelo meu país?” ou “O que deixei para meu país”. Cito-o, aqui, de memória. Deixou muito, tanto é que teve grande consagração popular, e chegou a ser homenageado por uma escola de samba. Há, hoje, poeta bastante lido, Paulo Leminski, por exemplo, bom poeta, mas o legado de um Jorge de Lima, uma Cecília Meireles, será sempre maior. Estes poetas citados cumpriram integralmente a função da poesia e mostraram cabal para que serve a poesia e sempre servirá.
Entrevista concedida a Lívia Corbelari.