ENGENHO CORREDOR - SANTUÁRIO de JOSÉ LINS DO REGO
ENGENHO CORREDOR - SANTUÁRIO de JOSÉ LINS DO REGO
MOURA LIMA
— O meu avô era um santo plantador de cana!...
Com o solão arregalado das 6 horas da manhã, de céu claro e de brisa mansa soprando do mar, deixo acompanhado de minha esposa Alvininha, o apartamento do meu filho Leonardo, no bairro Manaira, em João Pessoa, a cidade mais verde do mundo, depois de Paris, e dirijo-me à BR-101; logo entro na BR-230, sentido Campina Grande e, a poucos minutos de percurso, adentro-me à várzea do Rio Paraíba, cenário natural da vasta obra literária de José Lins do Rego. Aí, o coração dispara, e aflora-me uma emoção grande, pois me sinto integrado na paisagem que me é tão familiar. E dos meandros subterrâneos da mente, ao compasso da busca investigativa, saltam-me os livros Menino de Engenho, Bangüê e Fogo Morto, que me vão conduzindo, aos pinotes, de surpresa em surpresa, pela paisagem deslumbrante. Ato continuo, reduzo a marcha do meu carro e vou saboreando o verde da várzea, quando avisto a placa indicativa da cidade de Pilar, terra de Zé Lins. Faço a manobra convencional e pego a estrada da antiga Vila do Pilar; a 10km de marcha, eis que me surge, na extensa baixada, a bela Pilar!A mesma dos livros de Zé Lins, com a torre da igreja do Carmo apontando para o céu!O carro desliza suave pelo asfalto, e devagar vou entrando na vila, para não profanar o santuário eterno de Zé Lins; pego a avenida Grande, que traz o nome de seu avô - coronel José Lins Cavalcanti de Albuquerque -, o velho Zé Paulino, de Menino de Engenho. No final da avenida, deparo-me com o prédio centenário da câmara municipal, que abrigava na parte de baixo a cadeia, aonde Zé Lins, quando ainda menino, levava alimentos para os presos, ou acompanhava o velho Paulino nas sessões do júri, conforme narra em Menino de Engenho. Estaciono o meu carro em frente ao prédio, hoje, Fundação Menino de Engenho, e sou recebido de forma acolhedora pela diretora da instituição, Maria José Alves Mathias, que, gentilmente, vai-me mostrando as dependências do prédio. Na parte de cima, informa-me que funcionava, ali, no passado distante a Câmara Municipal da Intendência; aí me bordeja à mente a cena de Dom Pedro II, atirando naquele mesmo soalho antigo o seu grande chapéu - do - chile, e, em razão do cansaço, deitando-se na rede encardida do pedreiro que fazia os reparos para a visita de sua majestade ao Pilar. Mas que, por urgência dos compromissos públicos, adiantara a chegada, para o desespero das autoridades do burgo que não foram recepcioná-lo. O presidente da província mandou prender o vereador responsável pela cerimônia, aliás, tio de Zé Lins, pelo desastre.
Portanto, lá fora, rumores de vozes, vindos da rua, chegavam-me pelo janelão antigo: era o povo, a gente boa do Pilar, que entrava no prédio para conhecer o escritor do Tocantins. Desço os degraus vetustos do pavimento superior e vou para a sala de recepção, onde autografo os meus romances: Serra dos Pilões – Jagunços e Tropeiros, Chão das Carabinas-Coronéis, Peões e Boiadas, e Negro d’Àgua-Mitos e Lendas do Tocantins, e, também, aproveitando a oportunidade, repasso para o acervo da instituição o livro Moura Lima: A voz Pontual da Alma Tocantinense, da professora e notável critica brasileira de Goiás, Moema de Castro e Silva Olival. Agradeci as pessoas presentes e externei-lhes a imensa satisfação da visita ao Pilar, à terra de Zé Lins! Fiz também um breve comentário sobre a cultura goiano-tocantinense não esquecendo, é claro, de divulgar a minha cidade de Gurupi, a capital universitária do Sul do Estado do Tocantins.
E assim, cercado de hospitalidade, deixo a Fundação Menino de Engenho, e dirijo-me para o Engenho Corredor (o Santa Rosa), berço de nascimento do festejado escritor brasileiro.
A distância do Engenho à vila do Pilar é de 2km, e a estrada poeirenta é cercada de ambos os lados por arame farpado, formando um retilíneo corredor, daí o nome do Engenho. Pela estrada encontro um negro velho, de bengala, no passo trôpego, arrastando as alpercatas de rabicho, e logo me lembro dos personagens de Zé Lins, e de que, por aquela antiga estrada, já passaram o capitão cangaceiro Antonio Silvino e seus cabras, bem como o cabriolé tilintando de seu Lula de Holanda, do Santa – Fé; o desbocado fogoió Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-Rabo, e o recalcado mestre José Amaro, de Fogo Morto, e tantos outros vultos fantásticos da obra do escritor paraibano.As lembranças fervilhavam numa fulgência estupenda, quando dei fé, estava no Engenho Corredor. O susto foi grande, de verdadeiro pânico e decepção, pois não encontrei mais a aconchegante Casa-Grande dos livros de Zé Lins; mas, sim, um taperão de melão-de-são - caetano e de morada de marimbondo cavalo-do-cão. A senzala, os currais, os barracões de bezerros, tudo em ruínas, desabados, um fogo morto. A grandeza do Santa Rosa agora era uma terra arrasada, um cemitério abandonado.
E ali, no meio dos escombros e ruínas, fiquei a me questionar, em sinal de protesto, pela negligência das autoridades para com a memória histórica do patrimônio cultural do país. E perguntava-me, num diálogo mudo, por que o governo da Paraíba não tomava providências, juntamente com o Prefeito de Pilar, para recuperar o Engenho Corredor e transformá-lo em uma Fundação, onde abrigaria o acervo e as relíquias pessoais de José Lins do Rego, tão relegadas a segundo plano, num pequeno museu de João Pessoa? E esse gesto grandioso seria interpretado como de respeito para com o maior vulto da literatura brasileira e da própria Paraíba!Não encontrando resposta para tamanho menosprezo, repeti o velho bordão dos conformistas:
— O Brasil é assim mesmo, tem memória curta!
Um bando de pássaros, em estridente alarido, após circunvoluções pelo espaço, pousa suave nos arvoredos e nas cajazeiras da tapera, chamando-me a atenção e despertando-me das minhas reflexões; olho à direita e vejo, no alto das ondulações da várzea do rio Paraíba, as ruínas do Engenho Santa –Fé, do velho e decadente senhor de engenho, Lula de Holanda Chacon. E, em profunda introspecção, num átimo, vejo os fantasmas dos personagens de Zé Lins, saltando e povoando a Casa-Grande; os gritos do velho Zé Paulino com os negros de sua mansa escravidão, nos eitos ásperos dos canaviais; as traquinagens do menino Carlinhos, com os moleques da bagaceira, e suas safadezas com a quenga Zefa Cajá e a negra Luíza; o cheiro bom do mel-de-furo; a fumaça do bueiro do Santa Rosa melando o céu; o apito do trem do Pilar, passando. E outra vez ouço a voz do velho coronel Zé Paulino, contando a grandeza de sua riqueza, dos seus nove engenhos, das partidas de cana, do imenso rebanho de gado. E, no silêncio modorrento da tarde que descambava pras bandas de Itabaiana, quedei-me em postura de monge rezando, naqueles ermos de paz de cemitério, e ouvi, sutilmente, nas paragens da alma, a voz da eternidade:
— Veja aí, nessas ruínas, a marca da estupidez e da fragilidade humana; tudo é ilusão! Tudo é vaidade das vaidades! É correr atrás do vento!...
E o próprio Zé Lins tivera essa premonição de que tudo viria abaixo, seria condenado a morrer, a apodrecer, diante da marcha implacável do tempo. E numa visão gloriosa ergueu para o futuro, no meio dos escombros, das ruínas, um monumento perpétuo, com o cheiro da terra e da energia de seu povo, que é a sua obra, onde registrou com letras de fogo a decadência do patriarcalismo dos senhores de engenho, com suas tragédias e misérias humanas, de um mundo perdido, que se foi para sempre.
Sem delonga, entro no meu carro, e, mais uma vez, volta-me a imagem fantasmagórica do enterro do velho coronel Paulino, que foi acompanhado por mais de mil pessoas, que desciam do Itaipu, do Riachão, para o cemitério de São Miguel. E o mais interessante é que o caixão soberbo do velho patriarca, fundador da aristocracia rural, disseminada no vale do rio Paraíba, foi carregado debaixo da mais pura emoção, pelos negros de sua mansa escravidão, no dizer de Zé Lins:
— O meu avô era um santo plantador de cana!...
Atordoado pelo poder imagético das cenas surrealistas que me dominavam, de forma tirânica, não espero mais, e, lépido, dou partida no meu carro, e deixo para trás aquelas ruínas fúnebres, palco de tantas tragédias e testemunha secular da decadência aristocrática rural dos arrogantes senhores de engenho do vale do rio Paraíba. Dirijo-me para o Engenho Oiteiro, localizado no município de São Miguel de Itaipu.
De todos os engenhos relatados por José Lins do Rego, o Oiteiro destaca-se como um dos mais belos da Várzea Paraibana, pela beleza arquitetônica da Casa-Grande, pelo conforto e a nobreza da decoração de suas dependências. A Casa-Grande encontra-se em perfeito estado de conservação, sendo depositária de verdadeiras preciosidades de valor artístico e histórico, inclusive a famosa “caixa de música”, tão apreciada por José Lins do Rego, em Menino de Engenho.
Os outros engenhos, citados por Zé Lins, como Maravalha, Itapuá, Massagana, estão em ruínas.
Ao cair da tarde, deixo o Vale do rio Paraíba e retorno a João Pessoa, e fico pensando na grandeza da obra literária de José Lins do Rego, que rompeu os grilhões do prosear extraído da gramática, para revelar a alma e a genuína linguagem do povo brasileiro, numa obra eterna, para a glória da literatura universal.