RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS
RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS
*MOURA LIMA
*(Texto extraído do livro do autor - ZÊNITE-A LINGUAGEM DOS TRÓPICOS-ensaios - 2007)
“O segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas de encontrar um objetivo para viver.”
A noite era de ar abafado e úmido, sob um céu cinzento de São Petersburgo; corria o ano de 1849; Dostoievski, na sua generalizada introspecção, sem fazer parte do grupo rebelde, assistia a uma reunião de intelectuais revoltados, que pretendiam mudar a alma dos povos e derrubar o Czar da Rússia e, em seu lugar, estabeleceriam uma nova ordem política, ou seja, uma república de homens livres, que sonhavam com a liberdade.
Portanto, sem ser revolucionário na acepção do termo, como prova a sua obra, que é de um reacionário , isto é, não fez parte da conspirada, no sentido político e social, como muitos pensavam no Brasil. Dostoievski, mesmo assim, foi injustamente preso, com os intelectuais radicais do círculo de Petrachévski, e enviados para a fortaleza de Pedro e Paulo.
No meio de uma madrugada fria, de céu tenebroso, onde a neve caía, Dostoievski acordou sobressaltado, após a sua condenação; toques de alerta ressoavam pelo ar pesado;as autoridades,cumprindo o ritual de execução penal, metem-no em uma carruagem, juntamente com os companheiros de infortúnio e levam-nos para o famoso campo de instrução, na praça Semenovski. Os carrilhões badalavam a chegada do natal. O ar era gélido e áspero . O movimento dos militares era de nervosismo. Outras carruagens chegavam trazendo mais presos políticos. Pelotões de soldados mantêm-se estáticos, aguardando a ordem para a execução da sentença que fora exarada do tribunal militar. Um padre, de balandrau negro como uma ave agoureira, com um grande crucifixo de ouro às mãos , no passo tardo, marcha à frente dos condenados, até as imediações de um tablado coberto de pano preto. Os prisioneiros são levados em pequenos grupos e amarrados em estacas, na frente do pelotão de fuzilamento. Dostoievski faz parte do terceiro grupo. Na lucidez de sua mente, imagina que lhe restam uns cinco minutos de vida e o que viria depois seria o desconhecido.
O comandante, no uniforme impecável, mas de acentuada arrogância, com gesto brusco e autoritário, ergue o braço e dá a esperada ordem de execução. Os tambores rufam e, quando os soldados levantam os fuzis, um mensageiro a galope surge riscando a praça e, brandindo a mão, uma ordem do Czar, de suspensão da sentença . A pena de morte fora comutada para prisão forçada na fria Sibéria. Tudo não passou de uma farsa, era uma execução simulada, com o intuito de causar tortura mental nos condenados. Mais tarde, Dostoievski narraria, no livro O Idiota, suas emoções desta terrível cena, onde acreditava ter apenas cinco minutos de vida antes do fuzilamento.
Em 23 de janeiro de 1850, Dostoievski, após uma penosa viagem debaixo dos rigores de um terrível inverno siberiano, chega à prisão de Omsk . E, ali, na Casa dos Mortos, explodem-lhe de forma violenta as suas maiores crises epilépticas. O Evangelho é o único livro permitido na prisão. E da sua leitura constante, passou a aceitar o seu sofrimento, e varreu da sua alma a idéia de injustiça,pois o verdadeiro cristão nunca julgará injusto o seu destino, que lhe vem para a expiação, purificação e regeneração do seu ser.
E desta forma começaram a delinear nos recônditos da alma atormentada de Dostoievski as suas futuras memórias – Recordações da Casa dos Mortos.
De um ponto de vista extremamente pessoal, venho há anos lendo e meditando sobre a obra de Dostoievski, a partir de Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázov, Os Demônios e O Idiota. Mas devo confessar, independentemente dos estudiosos, a que realmente me marcou foi Recordações da Casa dos Mortos, por ser o livro mais incomum na produção do grande romancista, onde o autor registra as memórias de sua prisão no presídio siberiano de Omsk. A obra, também do ponto de vista analítico , é uma síntese premonitória da sua futura obra literária superior; é como se fosse uma célula-tronco, que se multiplicou nos livros: Crime e Castigo, Os irmãos Karamázov, Os Demônios e O Idiota. E todas essas obras trazem uma característica peculiar: são livros de criminosos e pecadores, que crêem em Deus, e que também o negam.
Dostoievski, além de escritor, foi pensador e vidente profundo, que fez fulgir com a iluminação de sua mente a literatura do século XIX. A sua obra literária oferece duas vertentes: uma da angústia do homem de seu tempo, a outra do homem universal que almeja a libertação dos grilhões terrenos, num vislumbre de eternidade.
Pode parecer, ao leitor desavisado, à primeira vista, que Recordações da Casa dos Mortos é uma obra literária sem estrutura técnica e que seja tão-somente um frio relato, um tanto desleixado, para não chamar a atenção dos censores, com relação ao que não devia ser contado dos anos que o autor passou na prisão.
A obra em si revela um escritor terra-terra, sem a análise minuciosa dos estudos profundos da mente, que tanto o consagrou, mas registra, uma outra faceta do romancista, a de um arguto observador do mundo exterior, com suas causas e realidades.
Essas qualidades surpreendentes, ora apontadas, de Recordações da Casa dos Mortos são, de fato, uma das explicações plausíveis do enorme sucesso da obra entre os seus contemporâneos, em detrimento das outras.
A cena dantesca do banho dos forçados, em Recordações da Casa dos Mortos, mostra a grandeza de Dostoievski em retratar com pinceladas artísticas o quadro. Vejamos o sabor de algumas das passagens :
-“ Não havia um palmo de chão onde não houvesse um preso de cócoras, jogando sobre si a água de um balde. [...] Via de regra, nas costas fumegantes dos presos ressaltavam, claramente, as cicatrizes dos golpes ou chicotadas recebidos no passado, de maneira que as costas pareciam ter sido flageladas há poucos instantes. Cicatrizes horríveis ! Eles derramavam mais águas ferventes nos tijolos quentes e nuvens de vapor denso e quente enchiam toda a casa de banho; todos riam e gritavam. Por entre as nuvens de vapor vislumbravam-se costas cheias de cicatrizes, cabeças rapadas, braços e pernas dobrados [...] Cheguei a pensar que, se um dia estivéssemos todos juntos no inferno, havia de ser muito parecido com esse lugar.”
Recordações da Casa dos Mortos é um testemunho vivo da desumanidade do sistema penitenciário,que ressoa, hoje, no século XXI, para nós brasileiros, como denúncia do fracasso do sistema prisional dos dias atuais, que é marcado pelas rebeliões e fugas de prisioneiros, ou, como uma verdadeira universidade do crime,que não educa nem regenera o criminoso.. Assim sendo, vejamos a opinião do clarividente romancista, que sentiu na carne essa dura realidade, conforme narrada em suas memórias:
- “ Jamais constatei entre os prisioneiros o menor remorso, o menor rebate de consciência ; no seu foro íntimo, a maioria deles considerava que agira bem.[...] O presídio, os trabalhos forçados, não melhoram o criminoso; apenas castigam, e garantem a sociedade contra os atentados que ele ainda poderia cometer. O presídio, os trabalhos forçados, desenvolvem no criminoso apenas o ódio , a sede dos prazeres proibidos, e uma terrível indiferença espiritual. Por outro lado, estou convencido de que o famoso sistema celular consegue atingir apenas um resultado enganador, aparente. Suga a seiva vital do preso, enerva-lhe a alma, enfraquece-o, assusta-o, e depois nos apresenta como um modelo de regeneração, de arrependimento, o que é apenas uma múmia ressequida e meio louca.”
Não obstante , o humanismo generoso que pervaga o livro, Dostoievski mostrou com simpatia os criminosos e proscritos, com suas histórias e psicologia individual, dando a eles a oportunidade de contar de viva voz a sua própria tragédia existencial. E, assim, ao longo da narrativa, o autor soube iluminá-la com uma intensa luz humana de grande poder humanístico, procurando ver em cada criminoso o ser humano escondido na sua latente exclusão social, como parte da humanidade sofredora.