Onírico
“E digo ótimo porque o fato de sonharmos toda as noite é um vínculo que liga toda a humanidade, numa união, digamos tácita, que comprova também a natureza transcendental do Universo, coisa que os comunistas não acreditam, pois consideram os sonhos irrealidades, e não visões que efetivamente tiveram. Por isso dedico este livro de sonhos às rosas do porvir”. Jack Kerouac
Apaga-se a luz, tenta se entrar limpo na cama sem trazer conosco as impurezas do mundo lá de fora – como em um ritual. Agora sim, dentes escovados, hálito fresco e cabelos levemente úmidos. Do momento que a cabeça recosta no travesseiro – aquele teu, velho de infância que até nome tem – e a partir dali não se pertence mais aos mortais. Entra na aventura do mundo simbólico; és agora um ser onírico. Munido apenas de suas experiências e significados ocultos, seguirá esse caminho, reto sem perdão, que lhe é inexorável. Os portais – olhos – estão cerrados, não há como voltar; prepare-se. Os passos iniciais são dados com cautela, olhando atentamente para onde se pisa, e aí vive-se ainda em um mundo misto, onde os fatos reais estão ali, mas o cansaço misturado com o silêncio, tira sarro da cara da realidade, e por capricho, espicha, arredonda e faz tudo aquilo se transformar em uma bomba, pronta para explodir. Não tenha medo, avance mais. O sono vem leve, passa desapercebido pela criança. Quando se deu por si, estava em uma canoa com um amigo urso indo desbravar os mares. Há uma mão invisível que te conduz, fazendo uma força sutil; não é a sua, nem de ninguém que conheces, é uma mão sedosa que vai te embalado, ninando e deixando aos poucos suscetível a viagem, vais deixando o chão sem pegadas, flutuas agora em uma neblina inebriante, que de tão calma e hipnótica passa calma. Aqui fora tudo em paz, alguns grilos e cães, mas não altos e nem interessantes o bastante para que você se importe. As imagens escondidas lá no fundo, coisas racionalmente sem importância, vão se formando sem lógica, ao bel-prazer de Abraxas; que tal o suor percorrendo a face com frescor, o toque mínimo de um estranho ao passar atrasado, e você estando também - que rápido e efêmero -, ou talvez aquele menino no sinal que lhe estende a mão e que se percebe apenas pela rabeira dos olhos.
De repente, sente outra mão, com um tom áspero e também incisivo, que faz uma força que não respeita a tua vontade, uma coisa forçada, como quem diz: “Venha e logo”. Sentir essa gélida sensação de estar sendo conduzido, onde se confia demais. Ao virar, se dá de frente ao corpo daquela mão. E que esbelto era Abraxas, com corpo viril e cabeça predestinada de galo reprodutor; paladino da autoridade. Porém, suas pernas eram cada uma serpentes esguias. Um escudo e um chicote. Mas quantas semelhanças haviam com pessoas conhecidas. Na primeira impressão, lembra-te a ti mesmo; um pouco mais fantasioso, com ar de superior e austero. Mas estranhamente, conserva feição hermafrodita, seus olhos um quê de crueldade, alongados como quem desenha um olhar de gato, uma silhueta exótica. Já a boca é carnuda e macia, conserva a harmonia. Os cabelos claros, médios e cacheados. Um anjo? Ao falar, lembrou a voz do pai; ao explicar, a mãe.
- Passaremos agora por ti, por todos os caminhos, as ruelas, becos sujos. Veremos, viveremos e contaremos. Tu vai encontrar a ti mesmo, sem censura, sem metáforas. Não vai entender, mas sentir. Sentir o mal, para também, sentir o bem. Abraxas começa a exercer sua força, ficando cada vez mais forte; e daí passa não a conduzir, e sim forçá-lo pelo caminho. E a fumaça branca começa a condensar-se, o sono já está profundo, em uma queda livre para os confins de sua mente. E ela mente? Nos olhos divinos começa a mudar forma e cor, do antes de um marrom qualquer, para agora um verde, como de um réptil ardiloso e fala assustadoramente idêntico a ti, copiando a voz:
- Ninguém me conhece, ninguém mesmo. Acho que dentro de mim tem um líquido preto e viscoso, piche, e de onde saem as maiores atrocidades do mundo. Gosto de ser mal, frio e calculista, mentiroso e manipulador; toda vez que faço uma vileza, pego uma grande unha e me arranho. Minha maldade é aquela tortura mental, nada saudável; que tem que ser meticulosamente articulada para causar a maior dor possível, donde depois, o louco fica no canto encantado com a ferida que produziu e tirando dali um prazer sexual. Mas não entendam mal, eu não seria capaz de fazer nada a ninguém - não deliberadamente -, os alvos das minhas artes são a mim mesmo. E como sou um carrasco impiedoso; diferindo golpe a golpe de maneira sofrida e lenta; mas eu gosto, não queria, mas gosto.
E dois passos para trás, três, quantos forem. Virar e fugir, correr. Mas a voz ecoa com o vento, não só nos ouvidos, mas nos pés e cabelos. Forte na cabeça, falando direto de dentro do ouvido, e sussurrado. Os lençóis estão ensopados e bagunçados. Contorce-se, calado e sofrendo só. Literalmente brigando consigo. Uma batalha épica, digna de estratégia, generais e pedidos de paz. Ousa gritar e abrir os olhos?
Os sonhos são presságios, te dizem o tempo todo o que tu és. Para mudar o seu redor, precisa-se encontrar a caverna de sua essência: o não-ser. Ele não é, mas sente que é. E se não for lá e iluminar a caverna, um segundo sequer poderá passar em sono tranqüilo e sereno. Estará tomado por seus sentimentos sem vivência. Seus significados sem signos. Será o que é, não sendo. E outras mil histórias viverão esses seres oníricos. A virgindade, provavelmente, perderá por lá. Tudo que fizeres pela primeira vez, isso, ostenta como rei; se não aqui, aonde? E em sonhos lindos irás flutuar. Corre rápido pelo gramado, mais e mais, para avistar penhasco. A palpitante dúvida acompanha as passadas, a brisa faz um barulho ensurdecedor, atordoando, e; um pulo, estás voando. Alto, para brincar com a forma das nuvens e por elas sentir o amor, vão juntar-se a ti.
O melhor e o pior, convivendo juntos formando o teu mundo, teu ovo. E para se encontrar tem que se quebrar o ovo, estraçalhar e acordar. Novo despertar para experienciar e viver, o que só naquele mundo ambíguo se sente. O que haveria depois das nuvens, do céu? Muda-se o mundo mudando a si mesmo, se entendendo e se enfrentando. Faz-se criança inocente; inquisitória. Cheia de perguntas, um bilhão de “por quês?”.E agora?
O galo canta, Abraxas cacareja. As portas se abrem e o encanto acaba, és mortal; carne e sangue. Os sonhos quando acordava pareciam fugir pelas pontas dos dedos, que ele começava a formular frases para descrevê-los e como borracha ia se apagando, caprichosamente, para o fundo da sua memória. Acordava ou feliz ou triste, sem saber o por quê. Quando se lembrava, as descrições eram borradas e sem graças; portanto, mantinha só para ele. Mas aquilo afeta de alguma maneira.
E quando se levanta, os lençóis desgrenhados, o hálito podre e os cabelos revoltos, sinais visíveis da guerra travada, nada fácil e que deixa marcas. Ao se nascer não há que se esperar que os primeiro passos sejam gentis e ordenados. A cola que grudava os olhos ainda está por lá, a abertura foi feita apenas parcialmente. Quebre e siga.