REFLEXÕES DA MADRUGADA 1
Pensei em comida. Quando as coisas começam a desandar, não é qualquer cozinheiro que põe a receita no ponto novamente. Empelota ou vira água. Ao pano velho, remendo velho. O remendo novo rompe o tecido velho e o corpo fica nu.
E por falar em nudez, como faz falta. O jardim do Éden era o paraíso por muitos motivos, mas a coroa das razões era o estavam ambos nus e não se envergonhavam. Isso é o paraíso das relações: a nudez. O conhecer cada centímetro do outro e não se ter vergonha disso. Nem segredo dos defeitos, nem do cansaço. As roupas surgiram e cobriram tudo. E as pessoas compram às arrobas. Para sempre esconder mais e mais.
E ao falar em esconder, não se pode brincar de esconder depois que se cresce. Adulto não cabe embaixo da mesa, atrás da porta, ou agachado no meio muro sem que seja visto. Adulto precisa de outras brincadeiras, que não são tão empolgantes, nem tão satisfatórias. De esconder não dá pra brincar. Geralmente não dá tempo pra voltar pra base e contar até três.
E por falar em contar, já se perdeu a conta de ser gente? Já não se conta mais as gratidões e os sacrifícios, os benefícios e os sorrisos? Onde se escondeu o material dourado, a régua de Cuisenaire, que, porque se ocultaram os palitinhos e se amputaram os dedos para que não se conte mais o que deve ser somado? Por que o abandono frio da tabuada, relegada a uma pilha de revistas emboloradas, venceu e não se multiplicam mais os sorrisos com base na generosidade e no respeito mútuo?
E por falar em respeito, quando foi que deram força ao incapaz e autoridade à besta fera para que a ignorância reinasse sobre o bom senso e sobre a razão? Em se desrespeitando os ossos de Kant, anulou-se o que o ético, moral, correto e imperativo em nome de um falso hedonismo, onde o prazer não é felicidade e a verdade perdeu sua garbosidade para virar palha (seca). Ao desrespeitoso, deixaram alcançar o altar do fogo, assim a palha se consome e consome tudo em volta. Ficam as cinzas. Com elas nada se faz. Nada se ergue. Nada se constrói.
E por falar em construção, contrata-se engenheiro. Com engenhosidade. Pedreiros, com resistência de pedra. Carpinteiros com doutorado em boa ação e poder de cura. Eletricista que carregue consigo a anergia e uma lâmpada pronta para acender. Arquitetos que saibam mudar tudo de lugar e deixar tudo especial. Mesma na casa velha, o cheiro de novo, como a velha roupa preferida que se coloca para quarar, aplica-se anil e espera-se a brisa da tarde com seu hálito quente para secar devagarinho. E depois se engoma, deixa-se entre os sachês de lavanda para vestir em um domingo de festa. Contrata-se pintores que saibam combinar as cores da alegria e da sobriedade, mas que reservem espaço para o infante desenhar seus sonhos…
CVG/cvg - 18/11/23-0218