ESTUDOS,LITERATURA, - A Territorialidade Tocantinense no Romance “Serra dos Pilões - Jagunços e Tropeiros”, de Moura Lima.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS

CÂMPUS DE ARAGUAÍNA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS DE CULTURA E TERRITÓRIO – PPGCult

DENIZE PASSOS DA SILVA

LITERATURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE NO TOCANTINS:

A Territorialidade Tocantinense imaginada no Romance “Serra dos Pilões - Jagunços e Tropeiros”, de Moura Lima.

Araguaína - TO

2019

DENIZE PASSOS DA SILVA

LITERATURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE NO TOCANTINS:

A Territorialidade Tocantinense imaginada no Romance “Serra dos Pilões - Jagunços e Tropeiros”, de Moura Lima.

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Estudos de Cultura e Território (PPGCult) da Universidade Federal do Tocantins (UFT) como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Estudos de Cultura e Território sob a orientação do Prof. Dr. Euclides Antunes de Medeiros e Coorientadora Profª Drª. Olívia Macedo Miranda de Medeiros.

Araguaína - TO

2019

DENIZE PASSOS DA SILVA

LITERATURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE NO TOCANTINS:

A Territorialidade Tocantinense imaginada no Romance “Serra dos Pilões - Jagunços e Tropeiros”, de Moura Lima.

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Estudos de Cultura e Território (PPGCult) da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Foi avaliada para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura e Território e aprovada em sua forma final pelo orientador e pela banca.

Data da aprovação: 27/11/2019

Banca examinadora:

Prof. Dr. Euclides Antunes de Medeiros (Orientador)

Universidade Federal do Tocantins

_________________________________________

Prof. Dr. Dernival Venâncio Ramos Júnior (UFT)

Examinador Interno

_____________________ _______________________

Prof.ª Dra. Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT)

Examinadora Interna

Prof.ª Dra. Heloísa Selma Fernandes Capel (UFG)

Examinadora Externa

Prof.ª Dra. Olívia Macedo Miranda de Medeiros (UFT)

Examinadora Interna (Coorientadora)

AGRADECIMENTOS

Inicio os agradecimentos expressando gratidão a mim mesma, por ser este ser inconformado com os caminhos que a vida me ofereceu e ter escolhido como instrumento de luta, o estudo. Gratidão por ter força para me construir e crescer como pessoa, profissional, ser humano. Agradeço a Deus, que acredito ser todas as forças do bem e do amor, pelo fôlego dado a mim durante todo o percurso da minha vida escolar e acadêmica, o que contribuiu para aumentar minha força.

Ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos de Cultura e Território (PPGCULT) da Universidade Federal do Tocantins (UFT), na pessoa da coordenadora Kênia Gonçalves Costa e do ex-coordenador Plábio Marcos Martins Desidério.

À banca externa, na pessoa da professora Dra. Heloísa Selma

Fernandes Capel, pela disposição em contribuir com esta pesquisa. Professora, muita obrigada.

Ao meu professor orientador, Dr. Euclides Antunes de Medeiros, por acreditar nesse projeto, na minha capacidade intelectual, mesmo com todas as dificuldades referentes à minha saúde, não desistiu em nenhum momento de ser meu orientador. Passar por quatro cirurgias em dois anos e meio cursando um mestrado é um desafio, tanto para uma mestranda quanto para o seu orientador. Obrigada professor, pelas palavras de motivação, de incentivo nos momentos mais difíceis e, principalmente, obrigada por me chamar atenção à leitura, à escrita, enfim, aos estudos, quando eu estava prestes a desanimar. Obrigada por ser um amigo, por inspirar, desde a época da graduação, ao justo, ao bem.

À professora Dra. Olívia Macedo Miranda de Medeiros, minha coorientadora, que desde a graduação também me incentiva a superar desafios. Aquela professora que fala o que você precisa ouvir num momento importante para sua vida acadêmica e pessoal. Professora, muito obrigada por sua paciência e inspiração.

Por falar em inspirar para o bem, não poderia deixar de expressar minha gratidão ao professor Dr. Dernival Venâncio Ramos, que foi o orientador da minha monografia na época da graduação. Foi ele que conheceu o meu percurso de vida escolar e acadêmica, das minhas angústias, e sempre que teve oportunidade, me incentivou e, especialmente me motivou para retornar aos estudos e ingressar no mestrado. Depois que fui mãe, achei por um momento que o professor Dernival desistiria de me incentivar, no entanto, ao notar meu esforço, continuou a me inspirar a lutar para o justo e para o bem.

Aos professores do PPGCULT, com os quais cursei as disciplinas que ajudaram também na construção desta pesquisa.

A todas/todos minhas/meus colegas de mestrado com os quais cursei as disciplinas. A minha colega e amiga Fernanda Silva Rodrigues, por inspirar-me sempre a pensar coisas boas, pela calma que me passou nos momentos difíceis da pesquisa, e especialmente, por fazer-me perceber como ela dizia: “cada um tem sua luta, cada um tem seu tempo”. Obrigada, minha grande amiga!

À Mery, uma pessoa muito especial, pelas contribuições, palavras de incentivo. Brasil e Venezuela unidos pela empatia. Gratidão, amiga Mery.

À Luciene Candia, por sua imensa disposição e contribuições.

Às minhas amigas, Suzana Amorim e Lidiane Gomes, por toda a ajuda na minha vida pessoal, com minha saúde e que não deixaram em nenhum momento de apoiar-me para não desistir do mestrado. Às minhas cunhadas, Francilda, por contribuir com minha paz ao olhar meu filho e deixar-me mais tranquila para as lutas diárias, à Vânia, que mesmo distante, lá de Goiânia, nos momentos de angústia me proporcionou conforto com suas palavras de fé, orações, quem me deu amor, que pra mim, é uma riqueza muito importante.

Expresso aqui a minha gratidão a todas e todos que motivaram direta e indiretamente para que eu continuasse no mestrado. Família, amigas e amigos, gratidão.

DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho ao meu filho, Davi

Antônio, minha maior fonte de inspiração, de amor. Mesmo o poeta mais inspirado, a poesia mais bela não conseguiriam expressar o

tamanho do meu amor por esta pessoinha.

Espero poder contribuir para que possa crescer consciente da história do território em que vivemos, e que possa construir um caminho mais justo para ele e para as sertanejas e sertanejos que vivem nessa região.

Ao meu pai, José Joaquim, não mais em vida. Meu primeiro exemplo de honra e dignidade.

Nas suas vivências, habitou e percorreu os sertões do norte de Goiás, homem de labuta na terra, da coivara, do plantio e da colheita.

RESUMO

A presente pesquisa buscou problematizar a narrativa do romance Serra dos Pilões Jagunços e Tropeiros (1995), do escritor Moura Lima a partir de uma construção interdisciplinar. A análise iniciou-se a partir do seguinte questionamento: Em que medida o romance regionalista de Moura Lima contribui para a construção de uma territrialidade tocantinense? Com os desdobramentos dessa problematização, objetivamos construir um diálogo entre História e Literatura. Para tanto, mobilizamos como aportes teóricos White (1994, 1995) e Frye (1957); problematiza-se a inserção social do autor e, nesse sentido, para tal análise, mobilizamos Bourdieu (2007); para a percepção da questão da memória na construção da narrativa, nos inspiramos em Ricouer (1997, 2003, 2010). Problematizamos ainda no romance, os elementos que entendemos constituidores da territorialidade imaginativa do Tocantins: a linguagem dos sertanejos figurada pelo escritor Moura Lima. Relacionamos também a construção dos heróis trágicos na obra, em certa medida com o herói trágico sugerido por Aristótetes (384-322 a.C.) e Frye (1957); problematizamos a figuração de costumes na obra a partir de Thompson (1998); analisa-se a presença da política e da história no romance como aspectos emblemáticos de uma construção territorial. Analisamos ainda aspectos da figuração no romance como um “arquivo” de memória do norte de Goiás da década de 1910. O estudo revela indícios da construção imaginativa de uma territorialidade no Tocantins. Para tanto, problematizamos a narrativa a partir da imersão do escritor Moura Lima na estrutura de sentidos de sua época. Defendemos a ideia de que o romance Serra dos Pilões em sua estrutura é metafórica, uma metáfora territorial.

Palavras-Chave: Estrutura de sentimentos/sentidos, narrativa, territorialidade, cultura.

ABSTRACT

The following research presents the narrative of Serra dos Pilões Jagunços e Tropeiros romance written by Moura Lima from an interdisciplinary construction. The analysis began with the following question: at what extend does the regionalist romance by Moura Lima contribute to the construction of a Tocantinense territory? With these divisions, the aim was to construct a dialogue between History and Literature. We used White (1994, 1995) and Frye (1957) as theoretical supports for doing it. We presented the social insertion of the author and for analyzing it, we used Bourdieu (2007). We studied Ricouer (1997, 2003, and 2010) for the perception of memory topic in the construction of the narrative. We also presented in the romance the elements that we understand as constituters of imaginative territoriality of Tocantins: sertanejos’ language figured by Mora Lima and we related the construction of tragic heroes in the oeuvre to some extend with the tragic hero suggested by Aristotle (384322 B.C) and Frye (1957). We questioned the figuration of manners in the romance from Thompson (1998). We analyzed in it the presence of Politics and History as emblematic aspects of a territorial construction and some aspects of the figuration as a memory file of northern Goiás from the 1910s. This research reveals the hints of an imaginative construction of a Tocantins territory. For that, we presented the narrative through the immersion of Mora Lima in his age framework senses. We defend the idea that Serra dos Pilões romance is metaphorical in its structure, a territorial metaphor.

Keywords: Feelings/senses framework, narrative, territoriality, culture

Sumário

INTRODUÇÃO 10

Memorial Formativo 10

Apresentação da pesquisa 13

CAPÍTULO 1 - A SOCIEDADE NARRADA PELA HISTÓRIA E PELA LITERATURA 19

1.1. Diálogo entre a História e a Literatura 19

1.2. Autor e Obra 27

1.2.1. A questão regional e o posicionamento social e histórico do escritor Moura Lima 27

1.2.2. O discurso regionalista e a questão da identidade no Tocantins: a construção narrativa de uma territorialidade tocantinense em Moura Lima 31

1.3. A Memória e a Estrutura de Sentimentos: a Linguagem em Serra

dos Pilões 34

CAPÍTULO 2 - TROPO, FIGURAS DE LINGUAGEM E AS FORMAS SIMPLES: A CONSTRUÇÃO NARRATIVA EM SERRA DOS PILÕES 44

2.1. Figuras de Linguagem e Formas Simples: Paisagens e as Vivências 44

2.2. A Metáfora do Herói Fundador (Cipriano) e do Herói Épico

(Labareda), Raízes Rizomáticas 53

2.3. A Linguagem Épica e a figuração da Jornada do Herói 59

CAPÍTULO 3 - TERRITORIALIDADES IMAGINADAS EM MOURA LIMA 64

3.1. A Narração Fantástica de Costumes 65

3.2. A trama tecida entre Política, História e territorialidade 74

3.3. Serra dos Pilões: um “Arquivo” de Memória 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS 90

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 92

APÊNDICE I - GLOSSÁRIO DO ROMANCE SERRA DOS PILÕES JAGUNÇOS E TROPEIROS DAS PALAVRAS DA LINGUAGEM DO SERTÃO UTILIZADAS NO LIVRO (MOURA LIMA, 2001, p. 229-233) 95

APÊNDICE II - ROTEIRO DOS JAGUNÇOS 102

APÊNDICE III - CAPA DAS FONTES UTILIZADAS 103

INTRODUÇÃO

Memorial Formativo

Durante as séries iniciais da minha vida escolar, encontrei na escrita e na leitura, uma forma de motivação pessoal e autoestima incrível! Morava na zona rural, na fazenda de um irmão mais velho por parte de pai, com meu pai, a companheira dele, uma irmã e o filho da minha madrasta.

Ir à escola Municipal Nossa Senhora da Penha, a 4 km de nossa casa, em uma vila chamada Vila Nova (vulgo some-home), era uma das minhas diversões mais emocionantes. Era também uma forma de não ir trabalhar na roça com meu pai. O período de coivara e plantio era agradável e a companhia de meu pai me deixava ainda mais feliz. Porém, no período da colheita (de milho, por exemplo) nem a companhia de meu pai aliviava a fadiga.

Na escola, da segunda a quarta série, éramos todos juntos na mesma sala (multiseriado). Nas disciplinas de português, ciências, estudos sociais eu sempre tirava boas notas, o que deixava meu pai muito feliz. Ia bem na leitura e na escrita, porém matemática da 4° série em diante comecei a achar chata.

Esses anos na escola as lembranças são bem fortes, pois parecia mais uma extensão da minha família: a chegada até à escola, o professor Domingos Saraiva, a quem tenho apreço até hoje, a companhia das outras crianças da vizinhança, o medo pela estrada transamazônica até a chegada à vila. Quando vinha qualquer tipo de automóvel, nos escondíamos dentro do mato, a não ser o ônibus da transbrasiliana que conhecíamos de longe e confiávamos. Havia um boato na região (conhecida como São Pedro, que fica entre São Geraldo do Araguaia e São Domingos do Araguaia) que pessoas roubavam crianças e as levavam para vender fora.

Foi uma época muito feliz e intensa, na qual a alegria está ao receber os cadernos novos, os lápis, o cheiro do material escolar e até dos livros era contagiante. A paisagem do mato, da matinha que beirava a transamazônica é hoje, em minha mente urbana, apaixonante. O professor com sua calma e fé na vida passava paz. Era a pessoa que eu mais admirava depois de meu pai, o professor Domingos Saraiva. Eu amava aprender, e a cada prova bem sucedida eu tinha uma certeza do que queria ser: professora. Todos ao meu redor elogiavam a minha desenvoltura na leitura, o que me dava uma alegria imensa.

Meu pai, com a sabedoria de quem já havia passado dos 70 anos, mesmo sendo um homem da lavoura, aconselhava-me que não seria uma boa escolha essa profissão. Mas havia um romantismo em mim que me fazia ter um apreço e afeto pela profissão, seja pela figura do professor que admirava, seja pela ajuda à minha irmã mais velha nas tarefas da escola, o que me dava muito prazer.

Do 5° ano em diante, em mudança para a cidade, já que na zona rural tinha somente até a 4° série, foram anos de muita luta e persistência pelos estudos. Terminei o ensino médio na Escola Dorgival Pinheiro de Sousa, na cidade de Imperatriz – Maranhão.

Ingressei na Universidade Federal do Tocantins no ano de 2007. Estava feliz e empolgada, parecia que tudo que sonhei começava a ter uma ponta de realização. Trabalhava o dia todo em uma loja, pois precisava manter as despesas em casa, pois minha mãe, já de idade, não trabalhava e não tinha renda. Mas prometi para mim mesma que não ia desanimar, ia persistir. E meu tio Amâncio dos Passos logo motivou mais ainda. Lembro-me como hoje ele falando “toda mulher precisa de uma motinha pra andar, você tem que comprar uma pra ir ao trabalho e à faculdade”. E assim fiz, com todas as dificuldades, pedindo dinheiro emprestado (pra ele meu tio), mas fiz o consórcio dela que foi minha companheirinha até o ano de 2014, época em que meu filho nasceu.

Durante o ano de 2009, em escolha para o tema do meu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), conheci o professor Dernival Venâncio que ministrava a disciplina História do Tocantins, a qual eu cursava.

Em uma conversa com o professor Dernival sobre pesquisa, o informei sobre o meu projeto de pesquisa, que tinha como tema: “Movimento Camponês no Bico do Papagaio”, pois havia lido um livro (presente do meu tio Amâncio), do autor Siney Ferraz, que tratava do tema. O professor achou muito interessante, mas questionou-me o que eu achava de Literatura? Bem, eu pensei, não tenho a mínima ideia do que fazer. Ele falou-me sobre um romance, que também tratava da vida rural, só que na década de 1910. O romance em questão é Serra dos Pilões Jagunços e Tropeiros, do autor Moura Lima, publicado no estado do Tocantins no ano de 1995.

Tratei de comprar o livro e começou meu caminho pelo estudo da Literatura. O meu Trabalho de Conclusão de Curso - TCC, sob a forma de monografia, foi concluído em 2011, mesmo ano em que conclui o curso de História na Universidade Federal do Tocantins – UFT.

Nesse mesmo ano (2011), mudei de trabalho, queria ingressar na área da educação, então comecei a trabalhar como assistente de Professor (a) em uma escola do munícipio de Araguaína. Os estudos continuaram, complementei a formação com o curso de Pedagogia e uma especialização em Psicopedagogia Clínica. Passei no concurso para professora das séries iniciais do Ensino Fundamental, através do qual ingressei como professora no município de Araguaína, em 2013. No ano de 2018, ingressei no Mestrado pelo Programa de Pós - Graduação em Estudos de Cultura e Território – PPGCULT, da Universidade Federal do Tocantins – UFT, tendo como projeto de pesquisa, o estudo do romance Serra dos Pilões Jagunços e Tropeiros, de Moura Lima, no sentido de problematizar em que medida há a construção de uma territorialidade tocantinense na obra.

O fato de ter estudado em escola pública durante toda a vida escolar, e da minha história de vida, e vários outros fatores, fez-me perceber a literatura com um sentido intenso. Um exemplo foi o livro O Cortiço, de Aluízio de Azevedo, no qual tem a história da personagem Bertoleza, uma escrava fugitiva que ajuda o seu companheiro Romão a ser um homem bem sucedido financeiramente, e depois ele a trai em compromisso com a filha de Miranda, um comerciante com relações burguesas bem articuladas. Obra naturalista, O Cortiço figura a crueza de um suposto “instinto” humano sobre as questões psicológicas, morais. Depois de ler essa obra, sempre me pego relacionando a história de vida de mulheres negras, inclusive eu, com a da personagem figurada no final do século XIX. Uma mulher negra, que tem o seu valor na força do trabalho, como se um tipo de “seleção macabra” pela cor da pele e condição social indicasse a função social de exploração através do trabalho. Na minha percepção, não poucas vezes percebo esse tipo de relação sobre as mulheres negras durante a minha história de vida. Comigo, já percebi situações em que algum tipo de preconceito ou de sobrecarga advém de algo que aos olhos de outras pessoas não é possível identificar, ou se percebem, preferem não declarar. São situações no meio familiar, do trabalho, estudo, amorosa e outros tipos de relações sociais, em que de forma sutil sempre aparece um “mas você dá conta”, “toda mulher dá conta, por que você não dá?!”, “tem muita gente que trabalha e estuda, cansaço é desculpa de preguiçoso, de quem não quer lutar, quer as coisas fáceis”, e outras frases típicas e situações em que percebo o preconceito por causa da minha cor de pele e tipo de cabelo, condição social e familiar, etc.

O Cortiço foi uma obra que despertou algo que meus sentidos já percebiam desde pequena com a minha peculiar forma de perceber situações de injustiças, de questionar as mesmas situações e ser cada vez mais oprimida, o que me deixava cada vez mais intrigada. Talvez a minha situação familiar contribuísse bastante para isso, meus pais se separaram quando eu ainda era pequena. Fiquei morando com meu pai na casa de outras pessoas da família, e outros fatores também contribuíram para que eu me sentisse, muitas vezes, injustiçada. Mas com a leitura da obra de Aluísio de Azevedo, relacionei de forma sutil com a história de vida de outras mulheres negras que tinha visto, e tentava a todo custo não me deixar ficar numa situação de injustiça ou próximo do que ficou a personagem Bertoleza. Não percebia conscientemente os sentidos de uma literatura na minha vida a tão longo prazo assim (já que li O Cortiço enquanto estudava o ensino médio no final da adolescência). Mas que em alguma medida contribuiu para as minhas escolhas de vida, tomadas de decisões, isso sim.

Pois bem, foi assim que trilhei os caminhos do estudo e do trabalho (já que desde os 12 anos de idade trabalho durante os dias e estudo às noites). Tentando não me deixar cair em uma situação de vulnerabilidade, tentar me proteger o quanto posso, sob o escudo do estudo. Quando do falecimento do meu pai, (eu com 14 anos de idade) que apesar de bem idoso, foi a figura mais protetora que eu conheci na minha vida, tive a certeza que precisava perseverar cada vez mais para poder obter uma vida digna.

Apresentação da pesquisa

Para o Programa de Mestrado, tive a oportunidade de dar seguimento ao estudo da literatura iniciado na graduação. Agora, com a orientação do professor Dr. Euclides Antunes, a pesquisa é conduzida no sentido de perceber e problematizar em que medida o romance regionalista de Moura Lima contribui para a construção de uma territorialidade tocantinense numa época em que o estado havia conquistado a autonomia, desmembrado do norte de Goiás. No entanto, para este estudo, considera-se a estrutura de sentidos que o escritor Moura Lima está imerso, da qual surgiu a narrativa do romance Serra dos Pilões Jagunços e Tropeiros .

O escritor Jorge Lima de Moura nasceu em 02 de dezembro de 1950, na fazenda Capim-Puba, próximo da atual Heitoraí, distrito de Itaberaí, situado às margens do rio Uru, no Estado de Goiás. Filho de Guiomar Rodrigues de Moura, de Porangatú e de Conceição Lima de Moura, de Igarapava. Neto de Pedro de Moura de Alencar, de Teresina do Piauí e Doralice Rodrigues de Prado, de Patos de Minas, Minas Gerais, lado paterno. E materno, de seu

Antônio Alves de Lima e Carolina Lazara de Souza, de Buritizal e IgarapavaSP, respectivamente .

Reconhecido por publicar o primeiro romance no estado do Tocantins, dentre outras obras, Moura Lima é membro das seguintes instituições: membro fundador da Academia de Letras do Estado do Tocantins, da qual já foi Vice Presidente; do Instituto Histórico e Geográfico; do Conselho de Cultura do Tocantins e pertence também à Academia Piauiense de Letras, além de outras entidades sociais, culturais e de classe, dentre as quais, Ordem dos Advogados do Brasil, União Brasileira de escritores e do Conselho de cultura do Tocantins. Dentre suas obras está o romance: Serra dos Pilões – Jagunços e Tropeiros (1995).

Além de “Serra dos Pilõe”s escreveu também “Veredão-contos regionais e folcloricos” (1999), com prefácio de Eduardo Campos, “Poemas Errantes” (1972), “Sargentão do Beco” (1972), “O Caminho das Tropas”, “Solidões do Araguaia”.

A obra Serra dos Pilões foi publicada em 1995, no estado do Tocantins, é considerada a primeira obra literária publicada no estado após a emancipação política em 1989. O romance regional de Moura Lima traz em seu

enredo o conflito entre jagunços, no norte de Goiás, alimentados pelo sistema então vigente na primeira república, principalmente no interior do Brasil: o sistema coronelista. Antes de se colocar a trama e suas características, podese fazer algumas perguntas sobre as quais esta pesquisa se propõe problematizar: qual é a relação entre história, literatura e sociedade na perspectiva de pesquisa abordada neste trabalho? Qual o contexto social e histórico do autor? Em que medida a imersão do escritor Moura Lima na estrutura de sentidos da sua época contribui para a construção narrativa do romance Serra dos Pilões? Qual a forma da linguagem apropriada no romance e o que ela revela sobre essa estrutura de sentidos? O que os costumes figurados na obra evidenciam sobre articulações culturais, políticas e econômicas constituidoras de territorialidade? Por toda a sua temática e forma, percebemos a obra de Moura Lima como um “arquivo” de memória sobre o norte de Goiás na década de 1910. Na problematização de tais questionamentos, percebe-se que o romance regionalista de Moura Lima contribui para a construção de uma territorialidade tocantinense.

Adiantamos, contudo, que é em grande medida sobre a estrutura de sentidos que move o escritor a narrar, de certa forma, as experiências humanas figuradas na obra, e da autoridade da literatura em instituir uma memória para o recém-fundado estado que será direcionada a pesquisa.

O romance figura um processo histórico que ocorreu na década de 1910, na Vila de Pedro Afonso, por motivos dos desdobramentos do coronelismo na região. O processo foi desencadeado pela intriga política e o ataque à vila com o assassinato de moradores e a destruição do povoado por jagunços, a mando de coronéis advindos da Bahia e a posterior perseguição deles em busca de vingança pela região do Jalapão por jagunços apoiados por Cipriano (provável morador de Pedro Afonso).

A obra tem sua trama pautada no conflito entre dois grupos de jagunços rivais: o grupo do Capitão Labareda, que procura vingar o assalto à Vila de Pedro Afonso na década de 1910 e o grupo chefiado por Cacheado, que procura acabar com os atos de injustiças praticados na região Norte de Goiás. Esses grupos de homens armados, a serviço da intriga política da primeira república no Brasil, eram parte viva do sistema coronelista, como se percebe na História da república velha. No decorrer dos episódios, é possível conhecer tropeiros, padres, andarilhos, nômades, fazendeiros e agregados, sertanejos que sobrevivem em meio à violência dos homens no norte de Goiás no início do século XX.

No caso de Pedro Afonso, na figuração do romance, o primeiro grupo era “patrocinado” por Cipriano, personagem histórico, o qual no enredo é colocado como o defensor da cidade. Já o grupo de jagunços comandados por Cacheado são as personagens do “mal” no romance. Estes são criaturas extremamente cruéis e estão a serviço de Abilio Batata, outra personagem histórica de Pedro Afonso (Abílio Araújo), encontrado no livro de Moura Lima.

A aventura pelo Jalapão é narrada pelo escritor através da construção da paisagem e das personagens da região. A jornada destes homens pelo território que hoje é o Tocantins é narrada em Serra dos Pilões com a figuração dos viveres, dos princípios, das histórias e estórias da memória das personagens.

A narrativa da obra Serra dos Pilões figura aspectos da construção do mito sobre os heróis que fundaram o estado do Tocantins. No caso da trama são os heróis: Cipriano, Labareda e todas as outras personagens que numa situação extrema de exposição tomaram atitudes também extremas no sentido de defender o seu território.

Essa pesquisa foi efetivada através de uma construção interdisciplinar entre História, Literatura e mobilizando alguns conceitos da Geografia que ajudam na análise dos objetivos propostos. Além da leitura da fonte, Serra dos Pilões, foram feitos fichamentos, análise das imagens de mapas e do glossário da obra. Ainda para o entendimento da narrativa, foram analisadas fontes secundárias como o romance Chão das Carabinas Peões e Boiadas, também do escritor Moura Lima, estudos de críticos literários imbuídos dos mesmos ideais do escritor como Ensaio Moura Lima: Do Romance ao Conto – Travessia Fecunda Pelos Sertões de Goiás e Tocantins, de Francisco Miguel de Moura (2002); Moura Lima: A voz pontual da alma Tocantinense, de Moema de Castro e Silva Olival (2003); das pesquisas acadêmicas que fizeram parte da nossa leitura temos Leitura de textos de Autores Tocantinenses, um estudo coordenado pelo professor da UFT (Universidade Federal do Tocantins), José Emanuel Sanches da Cruz e colaboradores (2002); além da minha pesquisa da graduação que culminou na minha monografia Identidade, Memória e Literatura no Tocantins: um estudo de Serra dos Pilões Jagunços e Tropeiros de Moura Lima” na UFT (Universidade Federal do Tocantins), em 2011, sob a orientação do prof. Dr. Dernival Venâncio Ramos.

Para problematizar a relação entre história e literatura, nos atentamos às proposições sobre o tema de Hayden White (1992); (1994), Northrop Frye (1957), assim como a respeito da aproximação entre as narrativas literárias e históricas para analisar as formas do “comportamento linguístico” (White, 1994) de ambas.

Esta pesquisa propôs-se a contribuir com estudos de literatura, história e geografia no Tocantins, tendo como fonte, uma obra literária produzida no estado no contexto da pós-emancipação.

O texto está estruturado com introdução, três capítulos, considerações e dois apêndices. No primeiro capítulo, tratamos da relação entre história, literatura e sociedade, se problematiza os dados a partir da aproximação entre a história e a literatura, a partir daí, contextualiza-se o autor e a obra e problematiza-se, a partir da questão regional e o posicionamento social e histórico do escritor Moura Lima, o discurso regionalista e a questão da identidade no Tocantins, relacionando com a narrativa de Moura Lima. Ressalta-se a memória e a estrutura de sentimentos evidenciadas na linguagem em Serra dos Pilões.

Para tanto, se considera os estudos de Rosy de Oliveira (2004) sobre a CONORTE (Comissão de estudos de problemas do Norte Goiano) no processo de construção da história tradicional sobre o processo de emancipação do estado do Tocantins. Mobilizamos na construção teórica deste primeiro capítulo, Pierre Bourdieu (2007), Paul Ricouer (2003) (2010), Hayden White (1992); (1994) e Northrop Frye (1957). Sobre a estrutura de sentidos que move o escritor Moura Lima, ressaltamos os estudos de Raymond Williams (1979). Além dos estudos sobre literatura e sociedade de Antonio Candido (2000) e Nicolau Sevcenko (1989).

No segundo capítulo mobilizamos Hayden White (1994) sobre a natureza do tropo narrativo. David Gonçalves (1981) ressalta a importância da apropriação da linguagem sertaneja por autores regionalistas, o autor propõe a atualização das formas simples na obra Tropas e Boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos, e a partir desse estudo, percebe-se a mobilização de ditados, dizeres, metáforas, causos, dentre outros aspectos da linguagem cristalizada do sertão por escritores do gênero regionalista, desde Hugo de Carvalho Ramos. Analisa-se ainda, a construção da paisagem pelo escritor, como ele percebe a natureza em relação às forças políticas e figura na trama, uma imagem de imponência da natureza e das relações políticas.

No terceiro capítulo, problematizamos a construção de uma territorialidade no romance Serra dos Pilões, destacando os costumes apropriados pelo autor Moura Lima e a construção da teia de relações políticas na obra. Para tanto, mobilizamos E. P. Thompson (1998) para analisar como os costumes podem caracterizar um imaginário comum de um determinado grupo de pessoas, e como isso é expresso na linguagem. Relacionamos os estudos do autor para ressaltar a importância dos costumes na construção cultural no romance. Dentre as expressões que compõem os costumes para Thompson (1998), destacamos passagens que figuram o destaque da religiosidade como rituais, cerimônias e outras práticas como a contação de causos, dentre outros hábitos que fazem parte dos viveres do sertão. Ressalta-se a contribuição de Claude Raffestin (1980) na problematização do conceito território; Rogério Haesbaert (2007), Marcos Aurelio Saquet (2009), no que diz respeito à discussão sobre territorialidade, além da relevante contribuição de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) sobre a questão do conceito territorialidade.

CAPÍTULO 1 - A SOCIEDADE NARRADA PELA HISTÓRIA E PELA LITERATURA

1.1. Diálogo entre a História e a Literatura

Mobilizamos os apontamentos de Hayden White (1994), na discussão a respeito da aproximação entre história e literatura. O autor considera que as duas áreas têm como temáticas experiências humanas. As estruturas das narrativas também se aproximam para o autor e evidencia os tropos do discurso que, segundo ele, nenhum texto histórico ou literário que se pretende uma representação da experiência humana consegue escapar.

Uma das bases para o autor afirmar a aproximação entre a narrativa

literária e a histórica é a seguinte

[...] a insistência, por parte dos modernos críticos estruturalistas e do texto, em que é preciso suprimir a distinção entre prosa e poesia a fim de identificar-lhes os atributos partilhados como formas de comportamento linguístico que tanto constituem os seus objetos de representação como refletem a realidade exterior, de um lado, e projetam os estados emocionais interiores, de outro. (1994, p. 141142).

Nesse ponto, White (1994), ao fazer a relação da aproximação entre história e literatura, afirma que o “comportamento linguístico”, objeto de representação de ambas, evidencia a significação da realidade exterior (social) e lança as subjetividades (pessoal) que pairam sobre determinada estrutura de sentimentos , no caso desta pesquisa, a estrutura de sentidos na qual o escritor Moura Lima está imerso. Entendemos essa subjetividade como sendo o substrato dos estados emocionais interiores partilhados mais ou menos por sujeitos imersos na mesma estrutura de sentidos, que são figurados na narrativa, nomeada aqui de emoções coletivas representadas na sua arte.

Raymond Williams (1979) faz uma crítica à separação estanque entre o social e o pessoal e à percepção das “obras de artes como formas explícitas e acabadas” das representações do real. Das instituições em que nos encontramos envolvidos, o autor enfatiza que é nas artes e na literatura que encontramos a evidência de que essas instituições não são “todos formados”, mas sim, “processos em formação e formativos” (p.130-131). Daí, ao relacionar com o posicionamento de White (1994), é possível compreender que da relação entre o pessoal (as subjetividades) e o social (histórico) emergem formas de representações e narrativas tanto na história como na literatura.

No caso desta pesquisa, na narrativa de Moura Lima, percebem-se evidências desses apontamentos teóricos ao relacionar a trajetória pessoal do escritor ao meio social e histórico dos quais ele advém. Observa-se que a relação da história, literatura e sociedade na formação do escritor é de fundamental importância para se entender o seu estilo literário. É o que se percebe na perspectiva do crítico literário também imbuído dos mesmos princípios e valores do autor, que comenta sobre a obra:

Com o material colhido em pesquisas e na vida cotidiana, o autor não apenas o registra, mas o faz introduzindo-o na narrativa dos contos. E isso com tal habilidade, que o leitor menos atento não percebe a solução estética por ele dada ao texto. Observe-se, a respeito, que após a narração da lenda, do mito, ou do fato folclórico, vezes várias ele termina destacando um final conclusivo, em frase solta, como se fosse um poeta buscando uma chave de ouro para um soneto ou moral apropriada de fábula. (SAMPAIO, in: MOURA, 2002).

Para esta pesquisa a estrutura narrativa da obra Serra dos Pilões, o tropo narrativo é a metáfora. Desse modo, há no romance, a construção de uma metáfora territorial. Seguindo esse raciocínio, Serra dos Pilões é uma metáfora de longo alcance. A estrutura é poética, porque é uma imitação da realidade de longo alcance, por isso metafórica: “[...] é uma das maneiras de que a cultura dispõe para tornar inteligíveis tanto o passado pessoal quanto o passado público.” (White, 1994, p.102).

Nessa pesquisa, compartilhamos da ideia de que a obra Serra dos Pilões representa o tropo metáfora, inspirados no que diz Hayden White (1994) sobre o tema. Na seguinte passagem o autor esclarece a função da metáfora em uma obra histórica.

A narrativa histórica não imagina as coisas que indica: ela traz à mente imagens das coisas que indica, tal como o faz a metáfora. Quando um dado concurso de eventos é narrado no modo da “tragédia”, isto significa apenas que o historiador descreveu dessa forma os eventos para nos lembrar aquela forma de ficção que associamos ao “trágico”. Corretamente entendidas, as histórias nunca devem ser lidas como signos inequívocos dos acontecimentos que relatam, mas antes como estruturas simbólicas, metáforas de longo alcance, que “comparam” os acontecimentos nelas expostos a alguma forma com que já estamos familiarizados em nossa cultura

literária. (p.108)

No segundo capítulo desta pesquisa aprofundaremos sobre a construção tropológica da obra Serra dos Pilões.

Sobre a forma, White (1994), ao abordar a questão das proximidades entre História e Literatura no tópico O Texto Histórico como Artefato Literário (p.97-116), afirma que o que torna válida uma grande obra histórica “é a sua forma, a forma que é a sua ficção” (p.106), e essa forma é mítica. A forma para nossa leitura se revela através do gênero romântico, irônico, trágico e cômico. Para se entender os sentidos dessa discussão, White (1994), baseado em Frye (1957), diz o seguinte:

Frye se refere inclusive a diferentes tipos de mitos históricos: mitos românticos, ‘baseados numa busca (ou peregrinação) de uma cidade de Deus, ou de uma sociedade sem classes’; mitos cômicos, ‘mitos do progresso mediante evolução ou revolução’; mitos trágicos, de ‘declínio e queda, como as obras de Gibbon e Spengler’; e mitos irônicos, ‘de recorrência ou de catástrofe causal’. (White, 1994, p. 99).

Para White (1994), os historiadores, ao lidar com os fatos dados para dar forma a sua narrativa e torná-la válida, se valem do que R. G. Collingwood chamava de ‘imaginação construtiva’, aspecto que revela que a “história não processada” carece absolutamente de sentido.

Nas suas formas, essas narrativas ao serem construídas, atribuem sentidos, significados às experiências narradas. Tanto na narrativa histórica quanto na literária é o ato construtivo, ou, apontado aqui como enredo, que atribui o sentido, pois uma narrativa ao se propor ‘real ou ficcional’, é neste aspecto também imaginada.

Ao considerar o aspecto construtivo das narrativas como expressão do pensamento humano, White (1994) defende que o “conteúdo temático das ficções são estruturas de enredo pré-genéricas, ou mythoi” (p.99). E, seguindo os passos de Northrop Frye (1957), White afirma que, essas estruturas podem ser definidas como “estruturas de enredo ou mythos” e a estrutura dessa narrativa é o que a define como cômica, romanesca, trágica ou irônica. Nesse sentido, as narrativas históricas e literárias se aproximam quanto à forma e à estrutura como problematizaremos ainda neste tópico.

White (1994) afirma que a narrativa histórica, ao ser construída, é realizada essencialmente

[...] uma operação literária, vale dizer, criadora de ficção. E chamá-la assim não deprecia de forma alguma o status das narrativas históricas como fornecedoras de um tipo de conhecimento. Pois não só as estruturas de enredo pré-genéricas, mediante as quais os conjuntos de eventos se podem constituir em estórias de um tipo particular, são limitadas em número, como Frye e outros críticos arquetípicos sugerem; como também a codificação dos eventos em função de tais estruturas de enredo é uma das maneiras de que a cultura dispõe para tornar inteligíveis tanto o passado pessoal quanto o passado público. (p. 102).

Ambas as narrativas são míticas pela construção do enredo, do sentido que é construído de forma pré-figurativa e imaginativa, guiadas por um ideal. A representação dessas narrativas sendo uma imitação de uma ação ou ações humanas, sejam elas imaginadas ou reais, é construída pelos narradores conforme uma série de fatores relacionados na própria imersão deles nas estruturas de sentimentos de sua época. Daí se figura a trama com seus episódios, nó, clímax e desenlaces. A elaboração do enredo, nesse sentido, é um constructo social, histórico e artístico.

Percebemos o romance Serra dos Pilões com uma estrutura de enredo trágica: tem um ideal a ser seguido, que é a defesa do território do então norte de Goiás, com a figuração da saga dos heróis Cipriano e Capitão Labareda como líderes.

Desse modo percebemos as personagens Cipriano e Capitão Labareda com outra metáfora dentro da obra. A metáfora de territorialização raízes. Sendo a saga da personagem Cipriano figurando a raiz que finca na terra e figurando as raízes que se espalham, a rizomática jornada do Capitão

Labareda, já que este nasceu na região do Jalapão, como representado na

passagem do capítulo 21, em que Labareda fala para dona Bela da sua vida, de como iniciou na sua empreitada de jagunço.

- A vida da gente, Dona Bela, é uma imensa roda que vai girando, girando, levando a gente para lugares distantes e situações nunca pensadas. É uma teia de aranha complicada, ora de tristeza, ora de alegria. Eu, por exemplo, fico aqui ruminando nos meus miolos as ideias e as dúvidas da existência. Eu nasci, Dona Bela, na região compreendida entre Almas e Novo Acordo, no lugar próximo, à Serra dos Pilões. O meu pai possuía uma fazenda de gado igual à da senhora. O velho gostava de fartura. O seu maior prazer era ver a tulha cheia, o paiol abarrotado de milho e a vacada berrando no curral. No mês de maio, era a moagem de cana. Aí é que a fartura corria igual a um rio.

De ano em ano, eu acompanhava o velho pela estrada do sal, com a burrama sacolejando as bruacas, rumo à Bahia. Íamos buscar sal, passávamos pela vila do Duro e descambávamos pra Barreiras. Era um tempo bom, de muita alegria na minha vida de molecote, Dona Bela! Mas estava para terminar. A roda da vida girou trouxe-me a tristeza, naquela manhã de agosto. Eu e meu pai estávamos na roça, encoivarando a pauzeira pra botar fogo. O velho não descuidava de suas obrigações. No mês de agosto, era o preparo da terra, e em setembro jogava-se a semente no pó, pois as chuvas não tardavam. E ali naquela manhã, dois cavaleiros, montados em burros, foram chegando de súbito, na roça, e se dirigiram na direção do meu pai que, de costa, amontoava a coivara. O cavaleiro da frente adiantouse, de garrucha na mão, e despejou os tiros em meu pai, pelas costas, que não teve tempo de reagir. E eu, ali no sufragante, na agonia, não podia fazer nada. A valência foi a minha corrida pro mato. Os homens procuraram, procuraram e não me acharam. Teve hora que passaram rente a mim, ali agachado na moita, com o coração na boca e a respiração presa. Um dos homens esbravejou!

-É preciso matar o menino; ele viu tudo.

O outro retrucou:

-Vamos embora, senão aparece gente e a coisa piora. (LIMA, 2001, p. 133-134).

Percebe-se nessa passagem, que Labareda entrou nessa vida numa situação de exposição extrema que foi o acontecimento catastrófico, a morte do pai, um assassinato de forma covarde, o que nos leva a relacionar a narrativa de Serra dos Pilões com certo aspecto trágico sugerido por Northop Frye (1957), estendendo assim, um pouco o sentido de poesia trágica apontada por Aristóteles, em que o herói pode ser posto à prova não apenas por um ato falho seu, mas pode ser por motivos de ser uma personalidade forte frente a uma situação em que tem que tomar uma decisão importante, como foi o caso do capitão Labareda frente a sua realidade, na narrativa de Moura Lima. Frye assim esclarece

A “harmatía” ou “falha” de Aristóteles, portanto, não é necessariamente um ato mau, muito menos fraqueza moral: pode constituir simplesmente uma questão de ser um caráter forte em posição exposta como Cordélia. A posição exposta é comumente o posto de liderança, no qual uma personagem é excepcional e isolada ao mesmo tempo, dando-nos aquela curiosa mistura do inevitável e incongruente que é peculiar à tragédia. (1957, p. 44).

Para Frye, “o fato particular denominado tragédia, que acontece ao herói trágico, não depende de seu status moral”, mas sim, na “inevitabilidade das consequências do ato” (1957, p.44). Ao relacionar o posicionamento do autor com a narrativa da obra Serra dos Pilões, percebemos a construção de um enredo que sugere a “inevitabilidade” das ações praticadas por aquelas personagens, principalmente as que têm posição exposta de liderança, que revela alguns aspectos do herói trágico: Cipriano e Labareda.

A estrutura de ambas as narrativas, histórica e literária, por esse viés de pensamento, se aproxima da poética , e se achegam justamente pelo aspecto da imitação da realidade presente nas narrativas históricas e literárias. Nesse sentido, há a referência em “A Arte Poética”, de Aristóteles, obra em que o filósofo trata de normatizar os procedimentos para se fazer poesia na Grécia Antiga. É necessário ressaltar que Aristóteles trata das normas de narrativas e melopeias em prosa ou versos que procuravam, segundo ele, expressar a “imitação da realidade”, finalidade essencial da poesia. Na poesia, ocorre essa imitação da realidade de forma bela, expressando assim, de forma mais sentimental.

Aristóteles dividiu a poesia em imitação de seres inferiores que seria a comédia, e imitação de seres superiores que seria a tragédia e a epopeia. No gênero tragédia é essencial a construção do mito, que segundo o filósofo é a construção do enredo, uma estória com princípio, meio e fim, e que se caracteriza pelo declínio e queda do herói. Esse trágico final do herói é resultante de alguma falha da personagem.

Citando Frye (1957), White (1994) afirma que as formas de narrativas históricas problematizadas aqui, trabalham a partir do que ele (historiador) acredita ver nos fatos, não “a partir de uma forma unificadora, como faz o poeta, mas com vistas a ela”. (p.99). Nesse aspecto, Frye acrescenta que

‘quando o projeto de um historiador alcança certo nível de abrangência, ele se torna mítico na forma e, assim, se aproxima do poético na estrutura’ (p.99).

A respeito da aproximação entre a história e a literatura, Sandra Jatahy Pesavento (2006) afirma que

[...] História e Literatura correspondem a narrativas explicativas do real que se renovam no tempo e no espaço, mas que são dotadas de um traço de permanência ancestral: os homens, desde sempre, expressaram pela linguagem o mundo do visto e do não-visto, através das suas diferentes formas: a oralidade, a escrita, a imagem, a música. (p.13-14).

A história e a literatura se ocupam, desde sempre, dos homens e, por conseguinte, da linguagem que utilizam para demonstrar a sua cultura no tempo e no espaço. Este, acreditamos que é o aspecto em que ambas as narrativas mais se aproximam e os pontos de divergências entre estudiosos do tema diminuem. Nesse sentido, literatura e história “são representações que se referem à vida”, que consideram “o real como referente para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão ou ainda para ultrapassálo” (p.14).

Por essa perspectiva, a literatura não representa a realidade, ela representa as sensibilidades, os valores, os princípios, os desejos, é um instrumento simbólico de manifestação da realidade, tal como expressa a autora

A sintonia fina de uma época fornecendo uma leitura do presente da escrita pode ser encontrada em um Balzac ou em um Machado, sem que nos preocupemos com o fato de Capitu ou do Tio Goriot e de Eugènie de Rastignac terem existido ou não. Existiram enquanto possibilidades, como perfis que retraçam sensibilidades. Foram reais na “verdade do simbólico” que expressam não no acontecer da vida. São dotados de realidade, porque encaram defeitos e virtudes dos humanos, porque nos falam do absurdo da existência, das misérias e das conquistas gratificantes da vida, porque falam das coisas para além da moral e das normas, para além do confessável, por exemplo. (PESAVENTO, 2006, p.15).

Em entrevista ao Jornal de Gurupi, o escritor Moura Lima, na época da publicação do romance Serra dos Pilões, demonstra ter consciência do seu papel na literatura.

De acordo com os estudiosos, dois pontos são fundamentais na elaboração de um texto literário: a universalidade e a multissignificação. Portanto, o leitor munido de sua bagagem cultural pode mergulhar nos espaços ocultos do texto e colher as emoções análogas às que habitam o seu mundo psicológico. Resumindo: polissemia e universalidade é que vão determinar a grandeza de uma obra literária e, consequentemente, a sua permanência diante do tempo. (in: MOURA, 2002, p.11).

As “emoções análogas” são possíveis de se despertar no leitor, graças à imersão de autor e leitor na estrutura de sentimentos, na qual se compartilham mais ou menos os mesmos significados e valores e dividem o espaço e tempo histórico situados numa determinada sociedade. Assim, o literato, enquanto artista atinge seu objetivo ao representar de forma inteligível à sua sociedade aspectos da realidade, que sendo plural na sua essência, atinja a universalidade desses significados comuns.

Da mesma forma, Aluysio Mendonça Sampaio (2002) , ao comentar a obra (na sua contra capa) de Moura Lima, assim afirma:

O regionalismo deste livro de Moura Lima não é negação da cultura nacional, pela prevalência dos aspectos regionais. Mas, ao contrário, é afirmativa da unidade nacional da nossa cultura, dado que toda unidade é múltipla em seu conteúdo, pois o geral é constituído do particular. Importa salientar que a literatura de Moura Lima, na junção do erudito ao popular, do real ao mágico, é afirmativa dessa unidade e da elevada expressão cultural de seu autor.

A “afirmativa da unidade nacional” através da literatura regional do crítico literário sugere que o erudito representaria o nacional, e o popular o regional, com isso, o papel do literato seria de intermediar a junção de ambas através da obra literária. Nunca o embate, mas a expressão em que sensibilize o sentimento de pertence da unidade maior: a nação. Nesse sentido, equiparamos o regionalismo ao nacionalismo, o que indica em certa medida aspectos da estrutura de sentimentos dos sujeitos que compartilham mais ou menos os mesmos significados e valores do autor Moura Lima, analisando nesta pesquisa como pertencentes aos fatores para entender a narrativa do escritor. Assim, para o que interessa neste estudo, a narrativa do autor Moura Lima situa em que medida a estrutura de sentimentos que move o autor para

figurar o já referido tema, e seus desdobramentos na narrativa da obra Serra dos Pilões.

Acreditamos em uma perspectiva que dilua as fronteiras e que relativize a dualidade verdade/ficção, a oposição real/não-real, ciência ou arte, como aborda Pesavento (2006). Em uma literatura que é a figuração de um processo histórico, como é a narrativa do romance Serra dos Pilões, em que se articula memória e história.

1.2. Autor e Obra

1.2.1. A questão regional e o posicionamento social e histórico do escritor Moura Lima

A luta política em torno da emancipação do estado do Tocantins teve nas estratégias simbólicas uma das principais aliadas para o processo de reconhecimento do movimento emancipatório. Segundo Rosy de Oliveira (2004), o Tocantins foi “inventado”, a partir da construção desses discursos. Um exemplo foi a volta ao passado para demarcar o início da luta pela separação do estado, e que ocorre no sentido de legitimar o movimento separatista da década de 1980. Neste contexto discursivo é que inventa uma relação entre uma figura histórica, Teothonio Segurado e as novas lideranças como Siqueira Campos, que seriam continuadores dos ideais do primeiro. De qualquer forma, o retorno ao passado, reinventando-o, é uma forma de legitimar politicamente as escolhas do presente. Nesse sentido, a produção de um romance que retorna ao passado também pode ser uma forma de buscar “na tradição”, formas de agir no sentido de consolidar uma certa imagem do presente.

Nesse sentido, percebe-se esse movimento da elite política do norte de Goiás como sendo parte do processo de construção do aparato simbólico do período pré-emancipação do estado do Tocantins. O resgate da figura de

Teothônio Segurado indica um retorno ao passado como forma de imbuir um

sentimento de identificação de ideais dos então representantes do estudo na década de 1980, com o movimento de Teothônio Segurado no começo do século XIX.

Assim, a narrativa de Moura Lima apresenta o então norte de Goiás, agora Tocantins, uma representação imaginativa dos viveres do povo nortense e paisagística do espaço geográfico da década de 1910. A ficção figura um processo desencadeado por conflito situado em um período histórico em que o coronelismo como prática política ditava as relações sociais.

Portanto, ao figurar a tragédia histórica da vila de Pedro Afonso, do começo do século XX, o autor mobiliza conhecimentos históricos, geográficos, antropológicos, sociais, dentre outros, e revela aspectos políticos e econômicos da região norte de Goiás nesse período histórico, considerando que o autor se vale da memória ao figurar o fato histórico. Ao estudarmos os “sentidos” que são utilizados esse conhecimento e a “forma” da linguagem utilizada, percebemos como uma narrativa dita “regionalista” constrói, valida ou autoriza discursos ideológicos de atores sociais hegemônicos.

O romance é enquadrado como “regionalista” pelos críticos literários coadunados com os ideais do escritor. Assis Brasil (2001) assim comenta na capa do livro de Moura Lima: “O romance é classificado de regionalista porque se convencionou, entre nós, que vocabulário, expressões, modismos, temáticas dão tal feição à obra”.

Sobre o discurso regionalista, Pierre Bourdieu (2007) afirma

O discurso regionalista é um discurso performativo, que tem em vista impor como legítima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada – e, como tal, desconhecida – contra a definição dominante, portanto, reconhecida e legítima que a ignora. (p. 116).

O discurso regionalista, de que escreve o autor, permite entender o contexto da emancipação do estado do Tocantins. Pois, de acordo com Rosy de Oliveira (2004), a CONORTE (Comissão de Estudos dos Problemas do Norte Goiano), por meio dos seus representantes, organizou um estudo sobre a região do então norte de Goiás, com o objetivo de tornar conhecida a região em vários aspectos. Os aspectos negativos que seriam o abandono do governo com relação à região norte do estado foram usados como um fator legitimador da reivindicação separatista e as potencialidades da região foram anunciadas como uma justificativa das condições estruturais que o estado possuía, e não eram devidamente aproveitadas, por motivos do abandono, o qual proporcionava uma desigualdade na distribuição econômica do estado.

Pierre Bourdieu (1980), ao problematizar sobre a noção de espaço social e gênese das classes, destaca que o espaço social é formado por todas as relações entre os agentes aí estabelecidos, e que esse espaço é composto pelas relações de forças. Nesse sentido, é sempre desigual, em que estão em jogo os capitais econômico, cultural e simbólico.

Esses estudos servem como um guia histórico para o entendimento das práticas fundamentadas nos “ismos”. Visto que essas práticas são na maioria guiadas por um projeto ideológico de estado fundamentadas no jogo de poder dos atores sociais aí engajados. Assim, Serra dos Pilões é um romance enquadrado no dito “regionalismo”.

Portanto, compartilha-se da ideia de que o romance, por ser arte, tem toda uma estrutura estética. Contudo, o autor é situado socialmente e historicamente, e faz parte de um imaginário, próprio de sua classe e dos ideais do seu grupo social, à medida que a relação social permeia a criação da arte do escritor. Assim, para Sevcenko (1989), “[...] todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma vez que seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade e seu tempo, (...) e é destes que eles falam”. (p.20).

O contexto histórico e a subjetividade do escritor sugerem assim como outros fatores, a tragédia histórica da Vila de Pedro Afonso para tema do romance. O retorno ao passado do estado como uma forma de imbuir no novo estado um sentimento de pertence, de identificação, de luta do povo por defesa de seu território, e mostrar a esse povo que o seu estado tem história.

Para adentrar nesse mundo do sertanejo, Moura Lima diz ter vivenciado, juntamente com seu pai, na fazenda Capim-Puba em Hetoraí – Goiás, durante a sua infância e adolescência, e também da experiência de vida do seu avô

paterno, Pedro de Moura Alencar, de Chapada do Corisco – Teresina – Piauí.

Segundo o escritor

Meu avô paterno cruzou esse chão bruto do Nortão de Goiás, hoje Tocantins, provindo do Piauí, nos idos de 1915, no lombo de burro, seguindo pelos trilheiros machucados pelos cascos das tropas e das boiadas, ao tilintar das esporas no arco de ferro, dos cincerros e do estalar da taca, e foi bater com os costados em Descoberto (Porangatu), nas margens do rio do Ouro, onde situou sua fazenda de gado. (MOURA, 2002, p.14) .

Nessas andanças em que passavam pelo “Nortão de Goiás”, hoje Tocantins, foram vivenciadas experiências religiosas, compartilhando costumes e tradições, percebida a paisagem do Tocantins, sentindo as emoções do povo daquela região, apropriadas pelo escritor e figurada na obra literária.

No argumento do literato fica evidenciada a relação com o Piauí e, também, essa proximidade no romance Serra dos Pilões, em que a relação com o nordeste é constante, mais especificamente com o Piauí, Maranhão e

Bahia, como evidenciado nessa passagem

A trilha dos tropeiros se estende além, para aquela região do Jalapão; [...] È uma trilha pisada e conhecida dos tropeiros, que a chamam de “caminho das tropas”. Já para os boiadeiros é “trilha de gado”, e parte de Pedro Afonso, Piabanha e Porto Nacional e atinge na lonjura as fronteiras do Piauí, Maranhão e Bahia. Por aquelas trilhas inóspitas, passam andarilhos, de pé, em arribada com famílias inteiras, vindos do Piauí ou Maranhão, para habitar o Norte de Goiás. Quantos e quantos não passam fome ou são devorados por onças, atacados por índios naquela região? È uma imensidão que se perde de vista e causa medo aos boiadeiros e tropeiros. Conforto, só nos pousos certos, a léguas de distância, no Vieiro-do-gado, no povoado PauFula, lá pelas bandas do rio Caracol. (LIMA, 2001 p.38).

Por tais aproximações, “a invenção do Tocantins”, sugerida por Rosy de Oliveira (2004), pela CONORTE no período de luta pela emancipação do Tocantins, (com o resgate do curto período do estabelecimento da comarca do norte, promovido pelo ouvidor Teotônio segurado, em 1821) faz parte do aparato simbólico do novo estado projetado pela elite do norte de Goiás. O romance Serra dos Pilões de Moura Lima, por ter sido publicado logo após a emancipação do Estado, por retornar na história e figurar a tragédia da Vila de

Pedro Afonso na década de 1910, se coaduna com os ideais dessa elite do

novo Estado, por ser um dos precursores na representação da identidade do Tocantins, se colocando assim como contribuidor da cultura do seu povo.

1.2.2. O discurso regionalista e a questão da identidade no Tocantins: a construção narrativa de uma territorialidade tocantinense em Moura Lima

O contexto do pós-emancipação é de procura por um sentido, para o estado que havia conquistado a autonomia política institucionalmente. Entendemos que os aspectos culturais e simbólicos fazem parte das construções sociais, como afirma Bourdieu (1980). Para o autor, os sistemas simbólicos “religião, arte, língua” exercem um tipo de poder que só é exercido com a cumplicidade dos que são sujeitados a ele, de modo tal que não conseguem perceber essa subordinação ou o seu exercício (p.7-8).

Nesse sentido, Raffestin (1980) mostra que o exercício de construção do território se dá através da relação de atores sociais com o espaço, e que o território é sempre imaginado, projetado antes da sua existência. Também afirma que há um esforço para isso e, nesse esforço, está o conhecimento. Nessa perspectiva, a publicação do livro de Moura Lima no ano de 1995 logo após a emancipação do estado do Tocantins, demonstra um conhecimento do mundo material e simbólico que o torna autorizado a “escrever” sobre esse mundo.

Para o grupo interdisciplinar de alunos da Universidade Federal do Tocantins (UFT), coordenados pelo professor José Manoel Sanches da Cruz e colaboradores (2008), o livro de Moura Lima, Serra dos Pilões tem alguns dos aspectos básicos do romance moderno brasileiro, “a articulação entre ficção, história e memória.” (p.44)

Nessa articulação, entre memória e história, o livro Serra dos Pilões é como um lugar de memória que traz o conhecimento sobre a região do Tocantins com a construção da paisagem, a apropriação da linguagem de homens e mulheres da região, dos costumes, a religiosidade, e também sobre um passado do estado com suas tramas históricas e políticas, que iam delineando o espaço e formando um território. Acreditamos que essa relação é possível graças à autoridade que a literatura construiu ao longo de sua história no Brasil e possibilita a vinculação através de obras de ficção de certos discursos. Ao ter essa percepção, atores sociais hegemônicos formulam narrativas que podem orientar ações (Sevcenko, 1989) e legitimar socialmente práticas que beneficiem seu grupo social e os interesses por eles defendidos.

Dominique Maingueneau (2006) afirma a importância desse tipo de discurso fundador, pois, “ele associa, dessa maneira, intimamente, o trabalho de fundação no e pelo discurso, a determinação de um lugar vinculado com um corpo de locutores consagrados e uma elaboração de memória.” (p.61).

Os integrantes da CONORTE (Comissão de Estudos dos Problemas do Norte) - e outros líderes políticos da época se colocaram como os “locutores” representantes dos interesses do povo tocantinense e a conquista da autonomia como algo benéfico para toda a população. Dentre essas personalidades que possuem essa autoridade no contexto, o literato é uma figura relevante, como afirma o próprio Bourdieu (2007). Nesse sentido, também Maingueneau (2006) aponta que a literatura faz parte de uma instituição que tem autoridade nas palavras: a categoria do “discurso constituinte”, o qual: “[...] designa fundamentalmente os discursos que se propõem como discursos de origem, validados por uma cena de enunciação que autoriza a si mesma”. (p.60).

A entrevista do escritor Moura Lima ao jornal Folha de Gurupi em 2001 mostra que ele tinha claro o lugar da literatura no processo de reconhecimento do Tocantins. Sobre a literatura da qual ele faz parte, o escritor assim se posiciona: “[...] o nosso trabalho é independente e regional. Tem um só objetivo: resgatar e contribuir para a independência cultural do Tocantins, em relação aos outros estados.” (MOURA, 2002, p.7-11).

Aqui, a entrevista do literato nos remete à passagem que Bourdieu (2007) deixou a respeito da luta identitária:

Sabe-se que os indivíduos e os grupos investem nas lutas de classificação todo o seu ser social, tudo o que define a ideia que eles têm deles próprios, todo o impensado pelo qual eles se constituem como «nós» por oposição a «eles», ao «outros» e ao qual estão ligados por uma adesão quase corporal. È isto que explica a força mobilizadora excepcional de tudo o que toca à identidade. (p.124)

Quando argumenta da questão da “independência cultural” como um objetivo a ser alcançado, o escritor Moura Lima deixa claro quais as expectativas que se tem com relação à literatura regional: contribuir para a formação de uma “identidade” tocantinense. O regionalismo aqui assume proporções “semelhantes” ao nacionalismo, afirmado por Antônio Candido (2000), pois procura defender o que Moura Lima chama de independência cultural: algo divisional, regional, afirmando, assim, diferenças e desejos de superação com relação “aos outros estados” do país. Esse tipo de discurso pronunciado por uma “autoridade constituída” tem uma validade significante, pois contribui para o “sentimento de pertence” de uma região, de acordo com Bourdieu (2007):

A eficácia do discurso performativo que pretende fazer sobrevir o que ele anuncia no próprio acto de o enunciar é proporcional à autoridade daquele que o enuncia: a fórmula «eu autorizo-vos a partir» só é e o ipso uma autorização se aquele que pronuncia está autorizado a autorizar, tem autoridade para autorizar. (p.116-117).

E essa autoridade ainda segundo o autor não se dá apenas pelo fato do

“reconhecimento consentido” que esses “locutores” possuem. O conhecimento,

[...] depende também do grau em que o discurso, que anuncia ao grupo a sua identidade, está fundamentado na objectividade do grupo a que ele se dirige, isto é, no reconhecimento e na crença que lhe concedem os membros deste grupo assim como nas propriedades econômicas ou culturais que eles têm em comum, [...], portanto, uma visão única da sua identidade, e uma visão idêntica de sua unidade. (p.117)

Ao defender uma identidade do estado, na verdade se cria simbolicamente uma espécie de ligação entre todos os extratos sociais aí presentes. Atenua o fato do escritor fazer parte de um determinado grupo social, e que compartilha mais ou menos os mesmos princípios que esse grupo acredita ser benéfico para seus interesses, o que se transforma naturalmente com a sua criatividade literária na ficção, na “defesa dos interesses comuns”.

Na pesquisa de doutorado de Ana Elisete Motter (2010), ela aborda, dentre outros aspectos, a relevância da literatura para a compreensão das questões identitárias no Tocantins. Considera que “[...] a importância da literatura para o estudo dos processos identitários se assenta no fato de que a mesma pode revelar indícios, traços desse processo e, também, contribuir para a consubstanciação do mesmo.” (p.15).

A pesquisadora Ana Elisete Motter (2010), embasa sua posição a partir de Baczo (1985), ao citar a forma como este autor percebe a importância da literatura no meio social como um instrumento de consolidação de práticas que ao serem socializadas se tornam comuns, através dos seus imaginários sociais, uma coletividade elabora certa representação de si, “exprimem e impõe crenças comuns” e constrói um código de bom comportamento mediante modelos formadores tais como o do “’chefe’, ‘o bom súdito’, ‘o guerreiro corajoso’, etc.” (p.16).

Nesse sentido, o romance Serra dos Pilões é como um artefato cultural que mobiliza a memória histórica e pessoal do autor e defende uma identidade do povo nortense e constrói uma territorialidade tocantinense.

1.3. A Memória e a Estrutura de Sentimentos: a Linguagem em Serra dos

Pilões

Paul Ricouer na sua conhecida obra A Memória, A História, O Esquecimento (2007), aborda a questão da memória como sendo a matriz da história, numa discussão profunda sobre os aspectos e procedimentos da escrita da história e o papel do esquecimento nesse processo. Mais recentemente, o autor proferiu uma conferência na qual acrescentou a problematização de uma “hermenêutica da receção” , cujo ponto de vista foi a partir da leitura interpretativa da história.

A partir daí, o autor extraiu questionamentos mais no que dizem respeito à recepção da história do que a sua escrita: “As questões dizem respeito à memória, já não como simples matriz da história, mas como reapropriação do passado histórico por uma memória que a história instruiu e muitas vezes feriu.” (2003, p.1). A memória é instruída pela história no sentido que ela

seleciona o que lembrar e o que recordar. Assim, Ricouer (2003) faz uma breve discussão do que se entende por memória no estudo desse tema

Mas esta modificação do ponto de vista não implica que abandonemos a descrição fenomenológica da memória em si, seja qual for a sua ligação com a história. Não poderíamos falar seriamente da reapropriação do passado histórico efectuado pela memória, se não tivéssemos considerando previamente, os enigmas que incomodam o processo da memória enquanto tal. (p.2).

Ricouer (2003) aborda, antes de tudo, a problemática relação da história com a memória, que a memória tal qual encontramos na história ou na literatura, não significa a memória fenomenológica. Esta se entende relacionada mais às imagens / lembranças tal qual aconteceram, e na memória histórica e literária há uma seleção do que lembrar. Assim, segundo o autor, a descrição fenomenológica da memória sugere que

[...] uma recordação surge ao espírito sob a forma de uma imagem que, espontaneamente, se dá como signo de qualquer coisa diferente, realmente ausente, mas que consideramos como tendo existido no passado. Encontram-se reunidos três traços de forma paradoxal: a presença, a ausência, a anterioridade. Para o dizer de outra forma, a imagem-recordação está presente no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve. (p.2).

Ainda sobre o entendimento da memória, o autor afirma que uma metáfora tem um papel importante para a elucidação da questão

[...] da impressão, como o da marca do sinete na cera; a noção de rasto faz, também ela, parte do mesmo conjunto de metáforas úteis. Mas permanece o mesmo enigma: a impressão ou o rasto, ambos, estão plenamente presentes, no entanto, pela sua presença reenviam para a chancela do sinete ou para a inscrição inicial do rasto. [...] Compreende o sentido da distância temporal, do afastamento, do afundamento na ausência, marcado na nossa língua pelo tempo verbal ou por advérbios como “antes”, “depois”. Reside aí o enigma que a memória deixa como herança à história: o passado está, por assim dizer, presente na imagem como signo da sua ausência, mas trata-se de uma ausência que, não estando mais, é tida como tendo estado. Esse “tendo estado” é o que a memória se esforça por reencontrar. Ela reivindica a sua fidelidade a esse “tendo estado”. A tese é que o deslocamento da escrita para a receção e a reapropriação não suprime esse enigma. (p.2)

O autor afirma que a reivindicação da memória é no sentido de cobrar a sua fidelidade ao “tendo estado” e é o problema que a memória deixa como herança à história. Entendemos como sendo uma problematização crítica do autor à história, por ser seletiva na memória, talvez não abranja essa reivindicação da memória. Esse posicionamento assumido por Ricouer leva a entendê-lo numa perspectiva que percebe a “relação entre a memória e a história de um modo não linear, mas circular” (p.2).

O acolhimento e a reapropriação do passado histórico pela memória é, nesse sentido, já no seu processo conflituoso, pois a história instrui a memória sobre o que lembrar. No que se refere à memória apropriada pelo literato na literatura, no caso estudado, é preciso entendê-la dentro do contexto histórico no qual está situado o escritor Moura Lima. A memória apropriada e narrada aponta para esse imaginário do qual o autor faz parte e que sugere uma cultura que tem como referência o mundo rural, a linguagem dos sertanejos, a violência presente no processo de ocupação e formação do território, essa mesma violência que se irradia à vida social como demonstração de poder sobre as pessoas, os bens, as relações sociais de um modo geral.

Com isso, a ideia da reapropriação da história pela memória que Ricouer (2003) sugere, inspira a reflexão da narrativa de Moura Lima como fazendo parte de um esforço da consciência em reivindicar a sua autoridade como contribuidor da história tocantinense, como forma de deixar seu “rastro” na construção de uma territorialidade, que sendo novo na institucionalização, como primeiro romance publicado no estado, se torna assim também, comprovado e deixado para a posteridade, a existência de uma tradição que tem História e é situada num espaço: a cultura sertaneja, no território que corresponde ao estado do Tocantins, emancipado politicamente do sul de Goiás em 1989.

Assim, pela memória que tem de “si”, do “próximo” e dos “outros”, se concebermos o pensamento de Ricouer, o autor constrói a sua narrativa em Serra dos Pilões, se reapropriando da “memória social” que foi construída ao longo da sua vivência com experiências, com pesquisas, com o trabalho fundiário. A narrativa de Moura Lima representa desejos, sensibilidades, valores que pairam na memória social dele próprio, de sua família, e dos outros sujeitos que compartilham dos mesmos sentidos, como problematiza a pesquisa de Euclides Antunes de Medeiros sobre o tema .

A memória de si, Moura Lima diz ter da própria vivência ‘ – Nasci na era dos carros de boi e ali na labuta do dia-a-dia, por aqueles rincões, fui candeeiro de meu pai, por caminhos esbrugados e baixadões. ’ (Jornal Folha da Cidade in: Moura, 2002, p.14). Nessa passagem, a memória de si e do próximo que o autor possui é da sua própria experiência de vida com sua família.

A memória dos outros seriam as memórias dos sujeitos da época que são fazendeiros, agregados, jagunços, tropeiros, padres, ou seja: sertanejos. Neste tipo de memória, consideramos uma relação da história conhecida socialmente com as experiências do escritor Moura Lima. Na narrativa do capítulo 32, a personagem Professora Marcolina narra a sua experiência ao Capitão Labareda, quando chegou ao norte de Goiás,

-Como eu ia dizendo, Capitão, cheguei aqui, no ano de 1906, isto é, na era de seis, vindo de arribada, de Remanso, na Bahia, com a cangalha na cabeça. O meu marido era um homem de coragem. Mas, infelizmente, morreu logo. Deus quis assim. E eu fiquei rolando, briquitando como muxingueira, daqui e dali, e de fazenda em fazenda, dando aulas pros mulecotes. Ensinando as primeiras letras, até que eu vim pra vila. Aqui, de primeiro, Capitão, era uma vila sossegada mas, de uns tempos pra cá, virou um calderão do demônio. São jagunços descendo da Bahia, Piauí e Maranhão, e se escondendo nesses pés de Serra. No ano passado, passou por aqui Abílio Batata e seus duzentos jagunços, vindos de Pedro Afonso. Eu o ouvi dizendo, com aquelas suas mãos cheias de anéis de diamante faiscando, que ia deixar nessa região o jagunço Cacheado, pra fazer uma sebaça de respeito. Era pra limpar tudo e levar o gado pra Formosa do Rio Preto e São Marcelo. E que ninguém se atrevesse a barrar seu caminho, que ele mandaria mais cabra da Bahia. (LIMA, 2001, p.177-178).

A fala da Professora Marcolina procura retratar essa parte da “História”. Ela, uma senhora funciona no enredo como uma espécie de arquivo vivo da memória nortense. Ela sabe, ela viveu. Sua fala está na memória-livro de Moura Lima. Igual a essa personagem existem muitos outros que interrompem a jornada de Capitão Labareda e contam eventos históricos que vivenciaram, saberes de outras fontes, as fontes da oralidade que o livro parece querer reproduzir.

Então, é possível perceber a construção dos sujeitos que se formam na memória do escritor e os relacionando com as personagens do romance Serra

Antunes de. Os Vales dos Rios Araguaia e Tocantins: A História, A Memória, A Literatura p. 3875. In: Cultura da Violência na Região dos Vales dos Rios Araguaia e Tocantins – 1830/1930. Uberlândia, 2012. Disponível em https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/16305

dos Pilões, como bem representa o capítulo 16, com a figuração da paisagem da fazenda Capão-da-Onça, o seu proprietário e a relação com as demais personagens, com os outros sertanejos da região e os costumes da população.

À beira do brejo Estrebuchão, na volta do caminho onde o ribeirão e o capão de mato abrem rasgão fugaz para o surgimento no alto dos cerradões, o João Saracura erguera o rancho e, pouco mais abaixo, plantara as roças. De pomar bem plantado nos fundos, com casa-defarinha ao lado, em breve o capurreiro domina por cima da tranqueira o arrozal ondulante que se estende pela restinga afora, extremamente verde, dessa verdura de fazer água cair da boca do vaqueano sedento das longas viagens. È a senha da fartura. Paiol abarrotado de milho e capado gordo no chiqueiro. Vive à barriga forra.

[...] Os sertanejos das regiões circunvizinhas deslocam-se pelos caminhos, com mulheres e crianças, para a alegre pescaria. E a fazenda Capão-da-Onça, do senhor João Saracura, é o ponto de encontro. Vão chegando aos magotes, com os cacaios às costas demonstrando imensa satisfação. (LIMA, 2001, p.93).

O escritor se apropria da linguagem dos sertanejos, dos costumes, das tradições, constrói a paisagem da região do jalapão mobilizando o conhecimento geográfico que possui sobre o norte de Goiás, agora Tocantins. Atribui vida a personagens, que tendo existido no sertão, expressam na trama subjetividades, desejos, sentidos dos quais nos propomos a problematizar neste trabalho. Apontamos para a construção de uma territorialidade na narrativa do autor, se concebermos a contribuição de Haesbaert (2007) sobre este conceito, considerando que o escritor concebe a paisagem, as relações sociais e econômicas das personagens, seus costumes, tradições, religiosidades, valores, todo um modo de vida da população nortense na década de 1910.

White (1994) define ainda alguns dos pontos de encontros entre historiadores e literários, dos quais se pode compreender o que ele expressa como “sensibilidade a protocolos linguísticos alternativos, vazados nos modos da metáfora, metonímia, sinédoque e ironia, que distingue os grandes historiadores e filósofos da história dos seus congêneres menos interessantes”. (p.145-146).

Nesse sentido, o livro Serra dos Pilões institui territorialidades, pois é um lugar de história e memória, entrelaçando uma narrativa ficcional em que abre espaço para o mito, para o improvável, para os mistérios da fé, estabelece no espaço vivido uma teia que vai além das relações políticas e econômicas.

Rogério Haesbaert (2007), ao se reportar a Sack, afirma que:

A territorialidade, além de incorporar uma dimensão mais estritamente política, diz respeito também às relações econômicas e culturais, pois está "intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar". (p. 22).

Ao atentar para a questão da linguagem apropriada por Moura Lima no romance, consideramos o estudo de David Gonçalves (1981) em Atualização das formas simples em Tropas e Boiadas, cuja pesquisa a respeito da linguagem literária de Hugo de Carvalho Ramos, um inspirador, digamos assim, para os escritores “regionalistas” do século XX, chama de formas simples a “fala cristalizada” e de caráter coletivo, apropriada pelo escritor na obra literária. As expressões populares são metáforas cristalizadas, ditados, “são regionais, postulam uma cosmogonia essencialmente local.” (p. 93). Para o autor, “[...] o aproveitamento dos ditados quase a nível das expressões populares remete para dois pontos: a) a realidade inconsciente da superstição; o linguajar regional utilizado pelo autor.” (p. 103), conforme se encontra no capítulo 3 de Serra dos Pilões:

O herói da resistência, Cipriano Rodrigues, curiboca, mulato atarrancado, façudo, de lábios grossos, caminhando para gamela. Olhar de lobo guará. No seu jeitão de barranqueiro destemido, como se não tivesse compromisso com a vida e os mortos do barulho. Acabanado, indolente, dependura os braços por cima do caibro de cega-machado, que circula o quadro de paus fincados, no largo.

[...]

Cipriano, ali encostado nos moirões, é despertado das suas recordações pelo jagunço Queixada-de-Burro, que lhe diz:

- O que foi, Chefe, está aí parecendo um espichado por riba dos paus?

- É isso mesmo, Queixada. Estou aqui como um couro de boi morto, e bem esticado. A minha vida é só sofrimento e desgraceira. Mas vamos deixar de pabulagem de cabra frouxo. Eu estou mesmo é esperando Anca-de-Jumento. E assuntando os fatos e a traição dos chefões. Os tutanquebas da política estão serrando de cima. Eu não sou besta. Estão querendo malquerença, botar questão, só porque tomei alguns possuídos e defuntei uns cabrassafados, depois do assalto na vila. Mas na hora de enfrentar Abílio Batata, os Solinos e os grandes da terra me mandaram chamar. Agora viram as costas e cospem no prato.

- Mas, Chefe, político é como feijão em panela de água, só sobem os podres!

- Você tem razão, é como merda de vaca, seca por cima e por baixo uma porcaria!

Cipriano, endireitando os braços nos paus e arrumando a máuser na cintura [...] (LIMA, 2001, p.24-26)

A narrativa do romance Serra dos Pilões se apropria da linguagem dos sertanejos, no começo do século XX, como já mencionamos aqui, figura sobre o conflito na vila de Pedro Afonso e seus desdobramentos na década de 1910. Na passagem supracitada pode-se destacar metáforas cristalizadas da linguagem dos sertanejos, ou com alguma modificação ao estilo do autor como:

- Mas, Chefe, político é como feijão em panela de água, só sobem os podres!

- Você tem razão, é como merda de vaca, seca por cima e por baixo uma porcaria! São ditados que resumem o sentido do que se quer falar, e quem participa da conversa entende, revelando a “cosmogonia local” apontada por David Gonçalves (1981). No segundo capítulo desta pesquisa problematizaremos os sentidos da linguagem no romance, assim como a presença de palavras do sertão, as quais constam no glossário na obra de Moura Lima, e que indicam um conhecimento por parte do escritor de palavras e expressões dos sertanejos.

A obra é figurada por meio do estilo de Moura Lima, é conhecida por ser inserida no chamado regionalismo, como já problematizado aqui. Apresenta uma linguagem que evidencia aspectos da estrutura de sentimentos que o escritor está imerso, percebe-se ainda o desejo do escritor de demonstrar que conhece, portanto que tem legitimidade para escrever sobre costumes, tradições, a política, a paisagem, por meio da linguagem própria dos sertanejos, ou apropriada por Moura Lima, como preferimos mencionar nesta pesquisa.

Em uma passagem no capítulo 26 de Serra dos Pilões há um sentido metafórico no enredo. Na figuração, compreende-se uma extensão simbólica do sentido de “traição”. Capitão Labareda, em conversa com seus homens de confiança, Gavião e Corta-Cabeça, chegam ao assunto da suspeita de dois traidores infiltrados no bando de jagunços.

- Uma outra coisa, Capitão, que me preocupa são os cabras Zico Bodoque e Militão Caolho, que poderão baldear informações pro inimigo. È apenas suspeita. Mas não confio neles. Macaco em lagoa de piranhas toma água de canudo, e jacaré nada de costa.

- Eu também não confio neles. Vamos mantê-los sob vigilância, e na primeira prova de traição mando fuzilá-los sem piedade.

Quando o capitão acaba de pronunciar a última palavra, desgruda do teto de piaçaba uma imensa aranha caranguejeira, bem peluda, e cai no seu rosto. Só se ouve o baque fofo:

- Plof!...

Gavião e Corta-Cabeça ficam petrificados e apavorados. CortaCabeça, num gesto instantâneo, acena com a mão, para que o

Capitão fique quieto e imóvel. [...] (LIMA, 2001, p. 162).

A passagem representa formas da linguagem apropriada na narrativa do romance e a alusão à traição de membros do grupo, (efetivada nos capítulos seguintes) com a queda da aranha no rosto do Capitão, como uma forma emblemática de um “aviso” em consonância com a forma ritualística de eventos que ocorrem no decorrer da trama.

Em Raymond Williams (1979) percebe-se o exemplo da estrutura de sentimentos, para a qual o autor defende o papel da língua na produção de sentidos e evidencia os sentidos da construção cultural. Assim,

A ideia de uma estrutura de sentimentos pode estar especificamente relacionada com a evidência de formas e convenções – figuras semânticas – que, na arte e literatura, estão com frequência entre os primeiros indícios de que essa nova estrutura se está formando. (p.135)

A apropriação por parte do autor da linguagem “interiorana” revela sua imersão nessa estrutura de sentimentos, o que inclui tradições, religião, costumes, percepção da paisagem, gerando uma maneira de falar, de expressar, que se convencionou a categorizar a sua literatura no dito “regionalismo”.

A linguagem sertaneja que o escritor se apropria e expressa na figuração do romance, com base nos estudos de Williams (1979), aponta para a subjetividade que o autor está imerso, evidencia a representação de um modo de vida e revela a intenção de “mostrar que sabe”, que conhece.

A “imaginação humana”, a “psique humana”, o “inconsciente”, com suas “funções” na arte, no mito e nos “sonhos” faz surgir as formas novas e deslocadas de análise e categorização social, as quais sobrepõe-se às condições sociais. É o caso da linguagem de Moura Lima, enquanto sujeito social alocado na sua função social, mas transcende na sua arte um sentimento de pertence ao se apropriar do falar de homens e mulheres sertanejas da década de 1910 no interior do Brasil.

A consciência revela essa apropriação, ao narrar o livro, um artefato cultural que contém experiências humanas das mais diversas, das quais a religião, os costumes, os princípios, as crenças, os laços entre os atores sociais são evidenciados nas memórias e a formação de um território são figurados na narrativa de forma que muitas vezes se confundem história e imaginação.

Assim como em White (1994), Frye (1957) e Paul Ricouer (2003, 2007), encontramos a ideia de preconcepção da estrutura de uma narrativa. No caso, White, inspirado em Nortrop Frye, afirma que “os sentidos fundamentais de todas as ficções, o seu conteúdo temático, consistem, segundo Frye, nas “estruturas de enredo pré-genéricas”, ou mythoi, derivadas dos corpora da literatura religiosa clássica e judaico-cristã.” (1994, p.101).

Essa “estrutura de enredo pré-genérica ou mythoi”, é pré-configurada segundo alguns imperativos que para o autor são “históricos, ideológicos, estéticos ou míticos” (1994, p.101). Essa preconcepção é possível, segundo os pressupostos de Williams (1979), devido à imersão do sujeito na estrutura de sentimentos de sua sociedade.

Outra maneira de conferir sentido a um conjunto de acontecimentos que parece estranho, enigmático ou misterioso em suas manifestações imediatas é codificar o conjunto em função de categorias culturalmente fornecidas, tais como conceitos metafísicos, crenças religiosas ou formas de estória. O efeito dessas codificações é tornar familiar o não-familiar; e em geral esse é o modo da historiografia, cujos “dados” sempre são imediatamente estranhos, para não dizer exóticos, simplesmente em virtude de estarem distantes de nós no tempo e de se originarem num modo de vida diferente do nosso. (WHITE, 1994, p.102).

O historiador e o literato precisam mergulhar nos “conceitos metafísicos, crenças religiosas ou formas de estória” que são categorias culturalmente fornecidas pela história dos sujeitos estudados, e são originados num modo de vida desses sujeitos. Isso para White (1994) é “outra maneira de conferir sentido a um conjunto de acontecimentos que parece estranho, enigmático ou misterioso”, e o “efeito dessas codificações é tornar familiar o não-familiar”. (p.102).

Portanto, os fatos podem estar lá no passado, mas a estrutura de enredo, as categorias utilizadas para explicar, narrar aqueles fatos são categorias que fazem parte da dotação cultural de leitor e autor, e assim ele urde e a torna uma estória inteligível para o seu público.

Ainda sobre a interpretação da narrativa, Paul Ricouer esclarece que o ato de “narrar”, se constitui como ação linguística, portanto que traz consigo significados. Viver e interpretar precede a narração, para o autor, que a concebe como uma ação elaborada com uma inteligibilidade própria de “um ser-a-dizer que tem precedência ao dizer” (RICOUER, 1997, p.57) . Nesse sentido, para Ricouer narrar é um texto, inspirado na fenomenologia e na hermenêutica, para ele existe o fenômeno, que seria a experiência crua, depois acontece a apreensão e a percepção pelo sujeito, e a narração só acontece posteriormente a essa sequência. Daí cada sujeito teria uma forma de narrar um determinado fenômeno.

CAPÍTULO 2 - TROPO, FIGURAS DE LINGUAGEM E AS FORMAS SIMPLES: A CONSTRUÇÃO NARRATIVA EM SERRA DOS PILÕES

Analisamos neste capítulo o romance Serra dos Pilões como uma metáfora de longo alcance: um tropo. Problematizaremos como o romance faz lembrar aspectos da saga de um povo em defesa do seu território, como os heróis são figurados na trama de uma forma que o leitor perceba a necessidade e a inevitabilidade das tomadas de decisões frente à tragédia que assola a Vila de Pedro Afonso. Nas passagens analisadas, problematizamos como a construção da paisagem está em consonância com o imaginário político e social do autor.

Na articulação entre memória e história, o romance evidencia em seu enredo a percepção da paisagem, a apropriação dos falares do sertão, dos costumes, dentre outros aspectos do modo de vida dos sertanejos do norte de Goiás, na década de 1910. A paisagem percebida pelo autor é parte importante da obra, a utilização da sonoridade da natureza, da representação da geografia do norte de Goiás cria uma imagem para o leitor do que seria o Tocantins na década de 1910, como viviam os sujeitos históricos representados na narrativa.

2.1. Figuras de Linguagem e Formas Simples: Paisagens e as Vivências

Passemos a analisar os sentidos das figuras de linguagem presentes em algumas partes de Serra dos Pilões. Neste capítulo, o coronelismo e a natureza são evidenciados como temas. O autor constrói a paisagem, ressaltando a grandeza dos aspectos naturais do espaço correspondente à região do Jalapão e um panorama das relações políticas, nas quais o coronelismo era prática comum.

A trilha dos tropeiros se estende para além, para aquela região do Jalapão; ora desaparece, ora brota igual a uma serpente na brancura da areia. É uma trilha pisada e conhecida dos tropeiros, que a chamam de “caminho das tropas”. Já para os boiadeiros é “trilha do gado”, e parte de Pedro Afonso, Piabanha e Porto Nacional e atinge na lonjura as fronteiras do Piauí, Maranhão e Bahia. Por aquelas trilhas inóspitas, passam andarilhos, de pé, em arribada com famílias inteiras, vindos do Piauí ou Maranhão, para habitar o norte de Goiás. Quantos e quantos não passam fome ou são devorados por onças, atacados por índios naquela região? É uma imensidão que se perde de vista e causa medo aos boiadeiros e tropeiros. Conforto, só nos pousos certos, a léguas de distância, no Vieiro-do-Gado, no povoado Pau-Fula, lá pelas bandas do rio Caracol. (LIMA, 2001, p.38).

Nessa passagem, o escritor procura criar uma imagem para o leitor da natureza de forma épica, de forma que sinta, imagine, desperte sentidos do que ele quer representar da paisagem construída, em que os significados de grandeza, da riqueza natural do estado do norte de Goiás são representados. Há também uma expressão presente desde Hugo de Carvalho Ramos para designar o espaço percorrido pelas tropas. Curioso é que as duas expressões são substantivadas em Tropas e Boiadas, título do livro de Hugo de Carvalho Ramos, leitura, por assim dizer, obrigatória de literatos ocupados com a literatura regional no Brasil, desde o começo do século XX.

Além disso, é possível identificar a formação do mapa de relações espaço-socioeconômicas, estabelecendo territorialidades, prefigurando a construção de um território, se pensarmos na concepção de Haesbaert (2007) e sua discussão sobre esses conceitos. Nessa passagem, evidencia-se também a territorialização a partir da relação com o nordeste, presente na narrativa de Moura Lima e o aspecto do desbravamento da região, da natureza implacável e da coragem de homens e mulheres que povoaram o norte de Goiás por volta da segunda década do século XX.

Na passagem seguinte, a narrativa continua com a representação do coronelismo

As forças do governo não chegam àquela região, pois, para atingi-la, gastariam, no mínimo, oito meses de marcha forçada, de Vila Boa até às margens do rio Caracol. O Caiadismo, mesmo assim, estende os braços por meio dos coronéis de Pedro Afonso, Porto Nacional e Boa Vista. É um sertão bravio marcado pela violência e dureza dos homens. (LIMA, 2001, p.38-39).

A expressão metafórica “as forças do governo” pode representar também a ideia de um paradoxo, pois logo após denominar “as forças” do governo, que tem seu centro no sul do estado de Goiás, afirma que elas não chegam à região, indicando um abandono e, ao mesmo tempo, uma supremacia das relações ali estabelecidas. Um norte de Goiás esquecido pelo sul, mas ao mesmo tempo, rico em natureza, com relações econômicas articuladas com alguns estados do nordeste como pode se constatar na leitura no decorrer da trama. Em outra expressão metafórica, “O Caiadismo, mesmo assim, estende os braços por meio dos coronéis de Pedro Afonso”, percebemos uma catacrese, conotativa dos sentidos do que o artista quer transmitir: enfatiza que esse sistema político, o coronelismo, impõe o seu poder de coerção nas relações sociais, e que diante disso, o governo do sul se torna impotente.

Na construção da paisagem, o narrador descreve:

A natureza tece um tapete verde por cima da areia. Os pés de puçás, as corriolas e os bacuparis, nas grotas dos ribeirões, as cagaiteiras, as mangabas e os muricis completam a fartura da mãe natureza

[...] O verde toma conta de tudo. A invernia desaba fogosa. Os olhos d´ água rebetam à flor da terra, em choros copiosos pelas grotas, cerradões e pelos trilheiros. A água jorra à vontade, por toda parte. Gorgoleja aos rebolões, ora agressiva, ora serenando-se pelas calhas dos riachos, ribeirões, e vai muito longe empanturrar os rios, golfando para os brejos e impueiras.

[...] As capivaras, as antas e os porcos-queixadas, de forma indolente, madornam por baixo das capembas fechadas, à frescata, esbojando nos barreiros e alagadiços, alheios ao vigor ubertoso das seivas nativas.

[...] O viço, como uma tropa de ocupação, invade à bandalhona, as campinas, matarias e os chapadões, que mudam de roupagem na alquimia opulenta das verdes ramagens.

[...] Os sertões adustos do Jalapão se refazem na magia das seivas cansadas e renovadas. O capim-agreste brota vigoroso do solo arrento. É o milagre da vida, no concerto eterno da periodicidade cíclica do grande teclado cósmico. (LIMA, 2001, p.39)

A expressão metafórica “a natureza tece um tapete verde por cima da areia” dá continuidade à ideia de exuberância da natureza, que é o tema do capítulo, associado à representação do coronelismo. A figura de linguagem personificação ou prosopopeia é mobilizada pelo escritor ao longo de toda a obra, e nessa passagem, identifica-se por: “A invernia desaba fogosa”; “Os olhos d’água (...) em choros copiosos pelas grotas [...]”; “A água (...) Gorgoleja aos rebolões, (...) e vai muito longe empanturrar os rios, golfando para os brejos e impueiras.” “O viço, como uma tropa de ocupação, (...) que mudam de roupagem na alquimia opulenta das verdes ramagens. Os sertões adustos do Jalapão se refazem na magia das seivas cansadas e renovadas (...) É o milagre da vida, no concerto eterno da periodicidade cíclica do grande teclado cósmico.” Na mobilização intensa dessa figura de linguagem, percebemos o quanto a magnificência da natureza é expressada em Serra dos Pilões.

A narrativa traz uma percepção da paisagem que intenciona criar na mente do leitor uma imagem do “real” sertão tocantinense de forma épica, idealizada. Neste capítulo analisado aparecem também os nomes (codinomes) de alguns sujeitos historicamente conhecidos pelo envolvimento nos acontecimentos que culminaram com o conflito na então Vila de Pedro Afonso.

Entendemos que os sentidos da representação do coronelismo conjugado à construção da paisagem pelo escritor por meio de uma descrição minuciosa , mobilizando as figuras de linguagem, induzem o leitor a relacionar o aspecto social e político (o coronelismo) com a natureza, a força, imponência de ambas. O coronelismo conjugado à paisagem na narrativa configura uma junção de forças, metaforicamente, faz lembrar ao leitor a mensagem da grandeza que tiveram homens na história do estado do Tocantins, que tomaram medidas extremas frente à realidade social e natural do espaço que corresponde ao estado, a partir de 1989.

Assim, Clóvis Moura prefacia o contexto social, político e imaginário em torno da narrativa de Serra dos Pilões

Isto porque o contraponto dramático que une toda a ação do romance é a violência no seu sentido primário e imediato. Os romances que retratam o comportamento dos grupos que habitam as zonas pioneiras, nas quais os espaços sociais ainda não foram ocupados e devem ser conquistados para se estabelecer um nível de hierarquia (poder) posterior institucionalizada é a violência através da qual os grupos e os indivíduos conseguem se reagrupar socialmente e socializar os níveis de poder. E ela (a violência) vem com todas as formas possíveis para estabelecer os reajustes posteriores. (LIMA, 2001, DO PREFÁCIO DA 3° EDIÇÃO).

Desse modo, percebe-se no enredo a questão do “necessário”, do “inevitável”, principalmente no que diz respeito à violência tão presente naquela realidade, especialmente a praticada pelo grupo do Capitão Labareda e Cipriano, as personagens que encabeçam “o bem” na obra. De acordo com Vitor Nunes Leal, o sistema coronelista era “[...], sobretudo como um compromisso, uma troca de favores entre o poder público cada vez mais forte e o poder dos chefes locais, notadamente nas zonas rurais, cada vez mais fraco

com relação ao primeiro.” (LEAL apud MACHADO, 2004, p. 288) . O historiador Antônio Filho da Silva Machado (2004) ressalta que outros autores também deixaram sua contribuição para o estudo do tema “coronelismo”, como Ibarê Costa Dantas e Maria Izaura Pereira de Queiroz. Tais autores acrescentaram o fator “bélico” como preponderante nas relações coronelistas. E, seguindo essa linha de raciocínio, Machado mostra que no norte de Goiás, no período citado, o desfecho de tais conflitos era, na maioria das vezes, resolvidos com o uso da violência, como no caso de Pedro Afonso entre 1914 e 1916, sobre o qual trata o romance de Moura Lima.

Ao relacionar o argumento do crítico Clóvis Moura, com os estudos do conceito e a narrativa do romance Serra dos Pilões, entende-se que ao que tudo indica a construção da teia de relações culminou com o coronelismo enquanto sistema político e social que impôs o seu domínio através do poder de coerção e posse das armas. “Um nível de hierarquia posterior institucionalizada” (fala de Clóvis Moura), seria o estágio posterior a esta violência narrada, justificada (a tal violência), porque necessária, inevitável na trama, porque os atores sociais envolvidos não tinham opção a não ser lutar por seu território, em outras palavras, as condições de sobrevivência. No enredo, as personagens tinham um papel importante na construção social naquele momento definidor para o norte de Goiás. Entendemos o romance Serra dos Pilões como uma metáfora de longo alcance, pelos sentidos que despertam no leitor.

Marcos Aurélio Saquet (2009) situa a respeito dessa construção de territórios “(...) a) os atores sociais e todas suas ações e reações múltiplas e cotidianas em forma de redes (práticas objetivas e subjetivas; [i]materiais), efetivadas em diferentes escalas (transescalaridade).” (SAQUET, 2009, p. 8889). O romance de Moura Lima funciona como uma metáfora de longo alcance, no sentido de que procura provar/legitimar que já havia a construção de uma territorialidade no espaço que hoje é o Tocantins, institucionalizado em 1989. A emersão na história, com a memória ali presente na narrativa de um fato

histórico que foi o conflito na cidade de Pedro Afonso, os atores sociais que protagonizam a teia de relações na época são representados na obra como Cipriano, Capitão Labareda, (as personagens que encabeçam o bem). Já os atores sociais que ocupam um papel de destaque na história oficial e reivindicam a luta pela autonomia do estado do Tocantins na década de 1980 estão, em certa medida, imersos na estrutura de sentidos do escritor Moura Lima.

Se Maingueneau (2006) argumenta sobre o discurso constituinte, esses discursos que se pretendem instituidores de uma ordem, e enquadra a literatura nesse tipo de esforço da consciência, Bourdieu (2007) indica que esse tipo de discurso possui uma performance, ele é performático. Logo, entendemos que a construção da natureza, em meio à trama, nos seus aspectos da fauna, da flora, os recursos hídricos do território, demonstra um conhecimento real do espaço que hoje é o Tocantins, e aponta para parte dessa performance do autor Moura Lima em Serra dos Pilões. A forma como é narrado, o estilo do autor sugere uma ação performativa, que tem sua base, segundo White (1994), na estrutura tropológica.

Assim, percebemos também no capítulo 4 da obra, uma linguagem ornamentada com figuras de linguagem e um linguajar característico do estilo do autor, na qual há uma mistura da linguagem de sujeitos que vivem no sertão com expressões que parecem ser uma recriação do autor bem próximo do que David Gonçalves (1981) chama de “formas simples”, as quais seriam a linguagem regional apropriada pelo escritor na obra literária.

- Zé Galhão, Veja lá, entrando no capuão de mato, um pé-duro, talvez trasmalhado, e está de rego-aberto.

E, apontando o rebenque de couro de lapichó na direção da rês, continua:

- Os surrões estão de fundos vazios, é hora de prevenir a matalotagem. Vê se me traz o garrote no casco do cavalo. E não me venha com maturrangos no traquejo. A diversão é sua!

- Ora, Capitão, isso é mangoça de sua parte. Eu fui criado, alimentando-me com pirão escaldado num cozidão de bode. Não é agora que vou abrir as unhas. Pode tirar certidão do meu palavreado.

É hora da onça beber água, Capitão!

Gavião, ao lado do Capitão, pilheria:

- Vosmicê, Capitão, acaba de encostar o homem na cerca!

- Eu sei disso, Gavião, que acabo de benzer pólvora com tição-defogo!

E rindo, acrescenta:

- O cabra tem tutano no cachaço!

Zé Galhão, rindo também da gaiatice do cabecilha do grupo, montando no cavalo não titubeia e solta a sua última bravata: - Dou um boi pra não entrar numa briga, mas dou uma boiada para não sair!

E o vaqueiro das ribeiras do Gurguéia, agora feito jagunço, sentindo pulsar no peito o desafio, esporeia resoluto o cavalo e sai a toda brida, no encalço do garrote, cantarolando a sua modinha de guerra, que enche de saudades das vaquejadas no Vale do Ronca:

“Naquelas serras sem fim

Procurava um boi fujão...”

E a cabroeira, no maior assanhamento, contempla a destreza do vaqueiro-jagunço, pernas firmes no estribo, o corpo inclinado para frente, mãos na rédea, e lá se vai, furando no peito o capão de mato, na culatra do curraleiro infuleimado que, sentindo-se perseguido, vaza do outro lado da restinga no balançar dos paus, a tropo-galhopo, deixando para trás o cheiro de chifre queimado, pelos troncos desgrenhados dos paus terras, cachamorras, e vai espirrar a campo aberto, negaceando, virando e pulando os brocotós. E numa evolução perfeita faz um círculo longo campo afora, e penetra à esquerda num carrascaisagrato impiedoso, cheio de japecangas, unhas-de-gato, para brotar como um raio novamente no campo limpo, na direção do grupo, com Zé Galhão no pega-pega à unha. Labareda, assim que o vaqueiro se aproxima, gesticulando grita:

- Dê a mucica, homem! Dê a mucica!...

[...] E o vaqueiro-jagunço, cravando as esporas no vazio do tordilho, emparelha com o tucura e, tarrafeando-o barbaramente, dá a quebra no bicho, que rodopia no ar de casco pra cima, caindo de mocotó passado, batendo as canelas aos urros. O vaqueiro salta do cavalo e peia a rês no chão. (LIMA, 2001, pp.31-32).

A forma da linguagem, palavras encontradas no mundo sertanejo, outras que parecem atualizadas pelo escritor (utilizando o termo de David Gonçalves), vão dando um ritmo à narrativa com o figurar de experiências próprias do sertão, da labuta do dia-a-dia de quem conhece as vivências dos sertanejos. A presença nas personagens da “palavra dada, palavra cumprida”, típico de sujeitos que possuem raízes na terra. Eli Brasiliense prefacia que Serra dos Pilões interessa

[...] não somente àqueles que conhecem os sertões dos velhos tempos, na época do domínio dos Bundões, mas por todos que desejam conhecer-lhes a personalidade, suas crendices, sua fidelidade à palavra dada para o desempenho de tarefas perigosíssimas. (Prefácio da primeira edição, LIMA, 2001, prefácio).

Encontram-se os significados das seguintes expressões no Glossário de palavras do romance de Moura Lima: capuão de mato (mato crescido no meio do campo, o mesmo que capão); dar a quebra – O mesmo que dar a mucica - dar um puxão na cauda da rês para derrubá-la; mucica – O mesmo que dar a quebra; Surrões (surrão – (s.m.). Saco de couro que resguarda da chuva os objetos (Sobretudo cereais)); matalotagem (matolão – Alforje de couro em que os sertanejos conduzem seus pertences, em viagem); cabroeira – Conjunto de cabras (jagunços); tucura – Curraleiro, pé-duro. Espécie de gado bovino de qualidade inferior ou de raça pouco apurada, de reduzido valor comercial. (p. 229-233). São expressões da linguagem sertaneja encontradas no enredo de Serra dos Pilões em meio a outras palavras populares e cultas em que os significados são facilmente identificados no dicionário formal. O escritor figura a obra com essa mescla de linguagens procurando dar significados às experiências narradas, de forma que vivências são figuradas com uma extensão de sentido em coerência com a estrutura de sentidos que permeiam o imaginário do autor.

A apropriação da linguagem sertaneja, a articulação da memória, a construção da paisagem da região , a expressão dos costumes na obra, evidenciam a intencionalidade do escritor em demonstrar que conhece o Tocantins, desde quando era apenas norte de Goiás, manifestar a autoridade que possui ao representar a cultura do estado, como ele mesmo se declara representante. Desse modo, apontar para o conjunto de relações que culminam na notoriedade do romance Serra dos Pilões como sendo a primeira obra literária publicada no estado. As sentenças que elaboramos as quais demonstram a autoridade dessa literatura podem ser assim expressas: o que escrever sobre o estado em um determinado momento histórico, quem tem autoridade para escrever sobre o tema, de que maneira falar (linguagem), e por meio do que escrever (literatura).

Ainda sobre a linguagem, o autor se apropria de termos na figuração dos eventos, em meio a ditados conhecidos do mundo rural, nos quais demonstra ter conhecimento dos falares populares dos sertões, os quais estendem os sentidos da mensagem que se quer passar, evidencia a “cosmogonia local”, expressão de David Gonçalves (1981), que seria os princípios em comuns de um determinado grupo, expressos na linguagem. Assim, percebemos nas

expressões: É hora da onça beber água, Capitão; - Vosmicê, Capitão, acaba de encostar o homem na cerca!; Não é agora que vou abrir as unhas; - Eu sei disso, Gavião, que acabo de benzer pólvora com tição-de-fogo!; O cabra tem tutano no cachaço!; - Dou um boi pra não entrar numa briga, mas dou uma boiada para não sair; - Dê a mucica, homem! Dê a mucica!....

Na linguagem do sertão encontramos mais ou menos esses sentidos das sentenças citadas, respectivamente: a expressão "Hora da onça beber água" ou "hora do vamos ver" são expressões populares que significam: uma situação ou momento difícil, tenso, que exige uma solução imediata”, segundo o dicionário informal. No imaginário do sertão é “a hora que a coisa aperta”, ou seja, são necessárias habilidades como inteligência e agilidade para tomar uma atitude. Essa expressão popular metafórica nos remete aos sentidos mencionados, de forma que a sentença faz lembrar da importância da mensagem que se quer transmitir, mas escrito em outros termos.

A onça é um animal que faz parte do ambiente do sertão e a imagem da sua imponência eleva a linguagem sem que seja preciso escrever com mais detalhes do temido animal. A sentença “- Vosmicê, Capitão, acaba de encostar o homem na cerca!”, também metafórica, indica que colocou pressão no sujeito, e é utilizada para várias situações em que se está em questão a palavra dada. A expressão “Não é agora que vou abrir as unhas” indica que a personagem não vai entregar os pontos mesmo com a pressão. O ditado “[...] que acabo de benzer pólvora com tição-de-fogo!” é uma metáfora hiperbólica, pois remete à ideia de perigo que o escritor quer enfatizar de forma exagerada, expressa que o homem foi desafiado perigosamente, tal como alguém passar perto da pólvora um tição de fogo. Em “cabra tem tutano no cachaço!” significa que o cabra é “macho”, “corajoso”, “habilidoso”, “tem palavra”. Em outra expressão, “- Dou um boi pra não entrar numa briga, mas dou uma boiada para não sair”, caracteriza-se como ditado bem popular nos falares do norte, que tem o sentido de que não é da escolha entrar numa briga, mas se acontecer, se for necessário, se enfrenta com coragem. Por fim, em “- Dê a mucica, homem! Dê a mucica!...”, palavra “mucica” não foi encontrada no dicionário,

apenas no glossário de Moura Lima, e no imaginário popular de homens e mulheres do sertão. A sentença significa “o mesmo que dar a quebra - dar um puxão na cauda da rês para derrubá-la” (LIMA, 2001, p.231). Para David Gonçalves,

[...] Nos provérbios e nos ditados identificamos o significante de uma fala cristalizada coletiva como mediador, composto de um plano de expressão cristalizado que nos comunica a significação no processo de passagem para o plano de conteúdo (axioma ideológico), assumindo a perspectiva de uma estrutura permanente. A significação, para tal processo, se resume em um pólo de circularidade entre dois planos, ou se quisermos, entre o significante e o significado. (GONÇALVES, 1981, pp.94-95).

A estrutura que sustenta a linguagem que se torna coletiva, pelo que podemos constatar aqui, vai muito além da expressão em si. Forma-se através da relação social, em que o imaginário coletivo vai construindo aquilo que pode ser chamado de “compartilhado” para um determinado grupo ou comunidade, e comunicado de forma enfática e menos trivial possível, os sentidos que se quer iluminar, inspirar ou até mesmo persuadir.

2.2. A Metáfora do Herói Fundador (Cipriano) e do Herói Épico (Labareda),

Raízes Rizomáticas

Na passagem da apresentação da Vila de Pedro Afonso, no capítulo 2 da obra, problematizamos a questão da apropriação da memória coletiva e individual no meu trabalho de conclusão de curso, como mencionado aqui. O começo da construção do enredo sobre a saga de Cipriano é assim figurada:

Tudo Calado. Vila morta. Bagaço de tapera. Um cemitério. Do alto da igreja de adobos, em construção, um menino pardo, de gongó, apoiado nos botaréus de aroeira, repica o sino. No interior do templo, crianças brincam. As badaladas quebram o silêncio mortuário. O som vai longe, atravessa a vila morta, o rio Tocantins, para se perder pelos cerradões distantes; vai a mais de meia légua, sendo levado por aquele vento bondadoso dos gerais. O som vai sumindo, verrumando as distâncias, entrando nos emburrados, nos boqueirões

sombreados das matarias, onde os capelões ou padres-mestres emitem os bramidos rudes e bárbaros, como se fossem rangidos de toscos engenhos moendo cana.

A Vila de Pedro Afonso, outrora cheia de vida, com os batelões descarregando mercadorias no porto local e saindo carregados com os produtos da terra, para o Maranhão e Belém! E agora? Um cemitério! Uma tapera! Parecendo povoado fantasma, depois do assalto da jaguçama de Abílio Batata. O sangue correu em riacho gorgolejando para o Tocantins e o rio do Sono. Os papos-amarelos repicaram a catinga da morte. Urubus ficaram com o bico doce de tanto comer cadáver.

O sol abrasante ilumina os escombros. Os fedegosos, as buchas, os carurus-de porco, os carrapichos, as bostas-de-baiano, os melões de são caetano invadem as ruínas e a quintalama. As densas revoadas de periquitos, maracanãs e joões-congos assaltam as árvores frutíferas. As abelhas, os marimbondos vão se alojando nas taperas. Aqui e acolá, paredes desabadas e sinais de bala pra todo lado. Uma miséria! Terra arrasada! E lá embaixo o rio Tocantins segue o seu curso eterno. Alheio às desgraças dos homens. As piraíbas fogosas dão rabanadas no dorso do rio. (LIMA, 2001, pp. 23-24).

Moura Lima, ao construir o enredo de Serra dos pilões, mobiliza o fato da destruição da Vila de Pedro Afonso, fato este como parte de um processo histórico. E nessa passagem, se percebe claramente isso. A narração aqui aparece como algo da memória coletiva, o autor fala como se estivesse vivido aquele episódio, não menciona nenhum personagem. Moura Lima se apropria da História e realiza o ato artístico, orquestrando o enredo conclusivamente com a representação da paisagem.

Nessa pesquisa, compartilhamos da ideia de que o tropo metáfora representa a obra Serra dos Pilões. Na seguinte passagem, White (1994) esclarece a função da metáfora em uma obra histórica.

A narrativa histórica não imagina as coisas que indica: ela traz à mente imagens das coisas que indica, tal como o faz a metáfora. Quando um dado concurso de eventos é narrado no modo da “tragédia”, isto significa apenas que o historiador descreveu dessa forma os eventos para nos lembrar aquela forma de ficção que associamos ao “trágico”. Corretamente entendidas, as histórias nunca devem ser lidas como signos inequívocos dos acontecimentos que relatam, mas antes como estruturas simbólicas, metáforas de longo alcance, que “comparam” os acontecimentos nelas expostos a alguma forma com que já estamos familiarizados em nossa cultura literária. (p.108).

Para definir metáfora, nos inspiraremos nas considerações de White (1992); (1994) e Frye (1957). Genericamente e pouco profundo, em uma definição comum, a metáfora ocorre quando é utilizada uma substituição de termos que possuem significados diferentes, atribuindo a eles o mesmo sentido. Tem algo que faz lembrar o que se quer comparar, a longo alcance ou não. Não é uma comparação explícita como ocorre na figura de linguagem comparação. É um exercício que leva o leitor a imaginar qualidades compartilhadas entre as coisas comparadas, de forma que essa comparação é possível de se fazer entendendo o contexto.

White (1994) ressalta o seguinte,

A metáfora não imagina a coisa que ela procura caracterizar; ela fornece diretrizes que facultam encontrar o conjunto de imagens que se pretende associar àquela coisa. Funciona como um símbolo, e não como um signo: vale dizer, ela não nos fornece uma descrição ou um ícone da coisa que representa, porém nos diz que imagens procurar em nossa experiência culturalmente codificada a fim de determinar de que modo nos devemos sentir em relação à coisa representada.

(p.108).

Assim, a metáfora traz imagens à mente de coisas que ela pretende fazer lembrar, de forma que os sentidos daquela coisa descrita nos leve a comparar com alguma situação em que desperte mais ou menos os mesmos sentidos, e a metáfora pode orientar simbolicamente na construção desses significados.

As narrativas que tentam instituir identidades sociais, não poucas vezes, lançam mão de metáforas territoriais. No caso de Serras dos pilões, de Moura Lima, o primeiro romance tocantinense, não foi diferente. Édouard Glissant (2005) afirma que existem dois tipos de metáforas territoriais: metáforas de raiz e metáforas de rizoma. As metáforas de raiz estabelecem relações essenciais com o território, atemporais. No caso do rizoma, a territorialização se dá pela errância e pela jornada de reconhecimento do herói fundador. É o que pretendemos mostrar com o episódio do umbigo do Cipriano e da jornada de Capitão Labareda.

Em certo momento de Serra dos Pilões ocorre um fato que entendemos como demarcação territorial e da identidade nortense. O romance conta, como

já foi dito, a história do ataque de um grupo de jagunços à cidade de Pedro Afonso e da posterior perseguição que o Capitão Labareda e seu grupo de homens empreende contra os responsáveis pela destruição da cidade. Cipriano, um dos defensores de Pedro Afonso, cidade arrasada com o ataque de Cacheado e seus homens, ao ser comunicado por mais um de seus conterrâneos (Anca-de-Jumento), o qual irá se “arrancar” de Pedro Afonso por motivos de a cidade ter virado um “cemitério” após o ataque dos jagunços de Abílio Batata, tem a seguinte reação: “É o que eu sempre digo: quem quiser irse embora, que vá! Agora eu não vou. Aqui enterrei o meu umbigo, e aqui vou morrer, como Deus for servido!” (MOURA, 2001, p.29).

O umbigo é um símbolo identitário e acreditamos que esse trecho do romance é simbólico, pois é um dos momentos mais importantes da narrativa, mostrando a coragem e resistência do povo nortense, representado por Cipriano, personagem histórico, que foi um dos defensores de Pedro Afonso quando da invasão da cidade por jagunços na década de 1910. Mas há mais, pois enterrar o umbigo é uma prática muito difundida no Brasil e seus significados se relacionam com o que chamo acima de territorialização raiz.

Sariza Oliveira Venâncio (2010), no texto “Práticas culturais em torno do umbigo de recém-nascidos”, revela o resultado de sua pesquisa a respeito desse tema na cidade de Goiânia. Para ela, o enterro do umbigo dos recémnascidos é uma prática popular difundida em todo o Brasil. O interessante, contudo, é o significado dessa prática. Segundo esse estudo, essa prática é uma territorialização simbólica; as narrativas que se referem ao enterro do umbigo são narrativas que estabelecem uma relação essencial entre os donos do umbigo e o território onde ele foi enterrado.

No contexto do enredo, personagem Cipriano é “daqui”, enterrou o umbigo “aqui”, e “aqui” ele pretende ficar. Acreditamos que esse trecho, que está colocado em um momento definidor do futuro da cidade de Pedro Afonso, estabelece uma demarcação da relação da identidade dos personagens com o território, como eles mesmo chamam, “nortense,” o seu lugar de identidade, onde estão enterradas suas raízes.

Assim, as raízes se contrapõem aos rizomas. Contrapõem e completam. Rizomas são tipos de raízes que, ao invés de fincar na terra, espalham-se, são plantas horizontais, que escalam obstáculos, as gramas, por exemplo. Essa característica foi transformada por Édouard Glissant (2005), numa metáfora da territorialização dinâmica e movente, como é o caso das viagens e jornadas territorializantes do Capitão Labareda, que se comporta como uma espécie de herói fundador.

O herói fundador das histórias sempre cumpre uma jornada antes de fundar a ordem social a qual são vinculados. Assim foi com Abraão, no texto bíblico ou com Ulisses, na epopeia de Homero. Como parece indicar Campbell (1949) , o herói se legitima pelo périplo. Esse também parece ser o caso do Capitão Labareda, em torno do qual o enredo do romance, em grande medida, gira. Ele está perseguindo Abílio Batata, que atacou e destruiu a cidade de Pedro Afonso, mas se coloca como benfeitor dos pobres, dá conselhos, protege os fracos, vinga os desamparados e estabelece uma representação da territorialidade nortense, onde, segundo ele, em se plantando tudo dá. São percebidas essas características na passagem do Capítulo 6, em que o Capitão Labareda passa por um “rancho” simples e encontra uma família sofrendo de inanição. Uma criança vem a óbito na presença do grupo de jagunços, e percebendo que o motivo da morte era a fome e a falta de condições necessárias para a sobrevivência, o Capitão se indigna com o chefe daquela família e o chama para uma conversa.

- Venha cá pra fora, que vou lhe dar uns conselhos.

O homem, com seus passos tardos, que demonstram o seu viver de forma gagosa da caridade de seus vizinhos, acompanha o Capitão, que vai desembainhando a língua–de-peba. E o homem, apavorado, solta aos berros:

- Não me mate!.. Não me mate!

O capitão, [...] responde-lhe ríspido:

- Cale a boca, cabra frouxo!

E continua:

- Não tem vergonha não, seu cabra preguiçoso? (PREGUIÇOSO) Fica aí curtindo fome e deixando seus filhos morrerem à míngua, comendo terra!...

O homem treme, batendo o queixo. O Capitão ergue a voz num tom ameaçador:

- Escuta bem o que vou dizer: No fim das próximas águas estou de volta. E quero ver fartura nesta casa.

O homem, com a voz trepidante, engasga as palavras, com os joelhos batendo-se em tremura sezão, e responde: - Dou a minha palavra, que vou mudar de vida!

- È o que basta. Pois sertanejo quando dá a palavra é como se dá a própria vida. E, se me tentar enganar, pode ir cortando a mortalha. O Capitão abre a guaiaca e deposita na mão do capiau o dinheiro e diz:

- É para comprar machado e enxada.

E apontando um capão de mato que circunda a baixada, diz-lhe:

- Quero ver muita fartura saindo deste chão!

E por último, o Capitão, num gesto enérgico, acrescenta;

- Assim que der cova ao menino, abra o pé na estrada e vá buscar mastruz pra dar pra sua família, senão as lombrigas destroem os outros meninos.

O capitão, retornando ao grupo que o espera debaixo do pé de pequizeiro, diz-lhe:

- O tabocudo é um cabra preguiçoso, bom de peia! (LIMA, 2001, p.9192)

Passagens como essa podem ser encontradas em todo o texto. O périplo (aqui entendido como uma jornada demarcadora do território) de Labareda distribui justiça e proteção aos “abandonados” do norte de Goiás. Além dessa cena, ele impede um estupro e salva a vida de uma fazendeira local. O Capitão Labareda cumpriu sua tarefa heroica ao defender a vida daquelas pessoas indefesas, mesmo que para isso fosse preciso lançar mão da violência. O que é importante destacar é a jornada enquanto momento simbólico de fundação/demarcação de certos espaços e paisagens que compõem o território tocantinense.

Ainda de acordo com Campbell (1949), o herói conclui sua missão com a partida: “O último ato da biografia do herói é a morte ou a partida. Aqui é resumido todo o sentido da vida.” (p.180). É o que se percebe ao final da trama de Moura Lima, com o destino anunciado pelo corajoso Capitão Labareda ao se despedir do seu grupo de jagunços: “– Aqui os deixo, meus companheiros. Quero agradecer a lealdade de cada um. Nova estrada se abre à minha frente. Vou depois de amanhã, de rota batida pra Bahia.” (LIMA, 2001, p.216).

A partida do Capitão Labareda representa a conclusão da sua missão, caso se considere a ideia citada anteriormente de Campbell (1949). Após sua jornada de luta pela defesa dos princípios e do território do povo justo e honrado do Norte de Goiás, ele segue seu caminho, e deixa o espaço livre para que outros “heróis” continuem a saga pela demarcação do território que hoje é o Tocantins. Foi o caso da Vila do Peixe, que posteriormente Moura Lima também transformou em um romance histórico. O conflito é encontrado em Serra dos Pilões num contexto de despedida do Capitão Labareda quando é comunicado sobre o estado de organização de homens armados para o conflito em outra vila do então norte de Goiás, o Capitão Labareda assim responde: “- O meu destino, seu Timóteo, é a Bahia, senão, ia-me juntar a esses cabras machos-remachados-do-cangote-empinado!” (LIMA, 2001, p.225).

Essas jornadas se completam à passagem do umbigo de Cipriano: se ele tem uma raiz fincada em uma territorialidade, a rizomática jornada de Labareda ajuda a definir contornos de um espaço ainda em formação.

2.3. A Linguagem Épica e a figuração da Jornada do Herói

Apontamos no capítulo 1 de Serra dos Pilões, e o final do capítulo 15, aspectos da jornada do Capitão Labareda, figurada na obra como uma missão em que não poucas vezes essa personagem aparece como um corajoso líder justiceiro, ao cumprir a sua jornada pela região do Jalapão.

Manhã de sol arregalado, que se estende além, no infinito azul daquele céu de veranico de janeiro. O vento sopra, como se estivesse saindo da boca de fornalha, e a temperatura vai-se elevando cada vez mais naquela terra sáfara e pobre. É só areia e mais areia, na imensidão da planície, salpicada aqui, acolá, de canela-de-ema e tucum rasteiro, daqueles prontos para espetar a canela do infeliz. Os raios do sol refletem a brancura da terra, e o correr em ziguezague das emas, como um desafio de que a vida existe naqueles ermos.

A Serra do Jalapão projeta-se, azulada, na linha do horizonte, a léguas de distância, lá pelas bandas do rio Caracol. Os morros Mandacaru, Sassafrás, Ciléze e Saca-Trapo tremulam ao longe. A sinuosa trilha das tropas é um riscado no chão, ora apagada pela verdura do capim-agreste, ora interrompida pelos paus-terra que saem do agreste sem medo de mostrar os traços da terra escarambada. Em alguns trechos, num contraste com a natureza, surgem altaneiros os pés de puçás, enchendo aquele sertão bruto com um cheiro gostoso de fruta madura e saborosa.

O bando de jagunço segue a trilha, armado até os dentes, em completa algazarra. O Capitão que comanda aqueles homens, de carabina atravessada nos ombros, com as cananas cheias de balas e com dois punhais na cinta, do alto da mulona de sete palmos, puxa no açoite a camba do freio, para a alimária. E, segurando na cabeça do arreio, volta-se para os homens, naquele vozeirão atroador de meter medo ao inimigo:

- Vamos parar logo adiante, no córrego Marimbondo!

E continua:

- Galope de Jegue, trate de fazer o de-comer, no jeito!

E, voltando-se para a esquerda, grita:

- Tamborete e Gavião, cuidem dos burros, com as bruacas e canastras na passagem; não quero ver a tralha perdida no meio das águas do Marimbondo! E continua:

- Corta-Cabeça e Apaga-a-Vela, vão batendo os beiços na reza, para amarrar a tropa numa corrente bem forte! [...] (LIMA, 2001 p.15-16).

[...]

O grupo prossegue a marcha. Ao fechar das luzes no firmamento, a chuva cai em bátegas. Os relâmpagos correm em chibatadas de fogo pelo céu.

E, naquele sertão bruto, marcado pelas noites trevosas e pelos ruídos da tempestade ao ribombar dos trovões, ouve-se o tropel dos cavalos da jagunçada a caminho do jalapão. É uma tenebrosa procissão de homens armados. O vento sopra e uma voz espremida gunguna: -É o Capitão Labareda e seus Cabras!... (LIMA, 2001, p.92).

Nessa passagem, verificamos a linguagem mobilizada pelo escritor que caracteriza a forma do grupo do Capitão Labareda agir durante toda a trama. Ao percorrer a região do Jalapão, o grupo empreende tarefas entendidas no enredo como “necessárias e inevitáveis”, como a referida logo no início, no capítulo 1.

Desse modo, observa-se em Frye (1957), a questão da posição do líder, em uma narrativa trágica “[...] na qual uma personagem é excepcional e isolada ao mesmo tempo, dando-nos aquela curiosa mistura do inevitável e do incongruente que é peculiar à tragédia.” (p.44). O que nos permite encontrar aproximações entre a trama de Moura Lima e o enredo trágico sugerido por Aristóteles e Frye é o fato das personagens que encabeçam o bem na obra, no caso Cipriano e Capitão Labareda, assumirem aspectos do herói trágico definido pelo filósofo e aprimorado por Northrop Frye. A jornada de Capitão Labareda, as suas peripécias, habilidades, conotam uma série de sentidos encontrados no gênero tragédia.

As ações de Capitão Labareda, enquanto jornada, como já dito, vão se concretizando por onde ele passa na figuração da trama. É uma personagem forte, que enfrenta as forças da natureza com habilidade e destreza, faz justiça aos injustiçados, aconselha os “preguiçosos”.

No capítulo 16, João Saracura conta a Capitão Labareda, um pouco da sua vida pela região do Jalapão. Em meio à prosa que é permeada pelos causos de violência vividos, surge um relato que evidencia a fé do Sertanejo João Saracura e do povo sertanejo. Trata-se da doença e cura de sua filha através de um milagre. Sua esposa recebera um aviso através de sonho que se levassem a menina como morta até a romaria do senhor do Bonfim, a enferma havia de receber a cura da doença, que a deixou sem andar. Assim, o sertanejo expressa a Capitão Labareda:

[...] E de fora, Capitão, pessoas passavam puxando cavalos pela rédea em volta da igreja durante a missa. Outras vezes, era com corda no pescoço, sendo puxada pelo amigo. A missa chegava ao fim, e quando o padre deu a bênção final, eu voltei pra minha menina, ali no chão, que nem mexia e disse-lhe:

- Levante, minha filha, que o Senhor do Bonfim te curou!

E a menina estendeu-me à mão e se levantou. (...) e eu gritei no meio do povão:

- Viva o Senhor do Bonfim!

E o povo respondeu alto:

- Viva! Viva!

E as rezadeiras entoaram bonitas um cantochão sacudido:

“Senhor do Bonfim,

Descei sobre nós a protetora capa,

Enfermo desenganado e piedoso Apegado com vós escapa,

Por serdes glorioso. [...] (Lima, 2001, p.98-99).

Percebe-se que Capitão Labareda, atento à história de Seu João Saracura, partilha da admiração pelo sacrifício feito e alegria pelo recebimento do milagre pela fé:

[...] É seu João, Deus dá a quem merece e o senhor mereceu pela humildade e pela fé.

Por isso que eu sempre digo: com o Senhor do Bonfim não se brinca. Ou acredita ou fica na desgraça! Não tem duas conversas. E aí está o exemplo. Enfrentou as dificuldades do caminho, mas voltou com o coração cheio de alegria e com a menina caminhando. E a mim, seu João, só resta uma homenagem, pois sou temente a Deus:

- Viva o Senhor do Bonfim!

E a cabroeira ali por perto responde no mesmo tom:

Viva! Viva! (LIMA, 2001, pp.99-100).

Sendo assim, a “temência” e o respeito a uma autoridade divina e o enfrentamento das forças da natureza, também são características que encontramos no herói de Serra dos Pilões, assim como nas outras personagens que compartilham, em certa medida, os mesmos princípios e valores de Capitão Labareda.

É interessante ressaltar que na jornada de Capitão Labareda pelo Jalapão consta em seu percurso de justiceiro, passagens em que castigam homens por terem roubado a bandeira do Divino e que salvam uma moça de homens mal intencionados, dar conselhos aos “preguiçosos”, etc. No entanto, quando a mesma personagem e seus “companheiros” vão de encontro a grupos ou sujeitos que não compartilham dos mesmos costumes, a violência praticada por eles, “personagens do bem”, se torna como algo inevitável, necessária no enredo da trama de Moura Lima.

É o que se percebe quando o bando de Capitão Labareda encontra a comunidade de ciganos. Na passagem, há violência de todo tipo praticada contra os nômades, por parte dos jagunços. As mulheres são abusadas, os homens são castigados, dentre outras práticas. No enredo, a justificativa para tais atitudes seria uma vingança pelos ciganos terem “traído” os defensores de Pedro Afonso no jogo da intriga política.

Portanto, Capitão Labareda é um herói desbravador na narrativa de Moura Lima. Somente no capítulo 21 se percebe o âmago profundo da sua alma. Nesse capítulo, o líder do bando de jagunços conta a sua história à Dona Bela. Como colocamos no primeiro capítulo deste trabalho, uma tragédia assolou a vida de Labareda quando criança, o assassinato de seu pai, sendo que ele presenciou tudo e o trauma foi se transformando com o tempo no desejo de vingança. Desse modo, a vida o levou para a vida de jagunço, conforme consta na figuração de Serra dos Pilões.

[...] Foi uma passagem triste, Dona Bela, e até hoje tenho pesadelo. Acordo de madrugada e me vejo agachado, de cócoras, ali na sala do velório, o velho espichado no catre e o sangue gotejando dos ferimentos, pelas pernas da cama. Estava pedindo vingança. O meu tio João do Burirti, que era entendido na arte de mandinga, botou uma moeda de cobre na boca do defunto, pra amarrar os criminosos, e na hora do sepultamento mandou colocar o corpo de borco. Com essa amarração, logo os assassinos de meu pai foram barreados no chumbo e viraram cruzes de beira de estrada.

Percebemos a questão da “mandinga”, presente nessa passagem, fazendo parte do aspecto da “religiosidade”, tão importante quanto todos os outros no livro Serra dos Pilões, pois faz parte das articulações que resultam na força e habilidade do herói e de seus compatriotas na trama. Daí a importância da personagem Corta-Cabeça, uma espécie de líder espiritual do bando de jagunços de Capitão Labareda. Podemos constatar no decorrer do livro, assim como nessa passagem emblemática no capítulo 19.

Na passagem, Capitão Labareda acorda de um pesadelo, no qual ele desesperado porque “as almas das suas mortes” vinham atormentá-lo, vingase. Corta-Cabeça resolve aconselhar o líder dos jagunços:

- Mas, Capitão, o sinhô é um homem forte, e tem que reagir pra que os mortos não lhe tomem a cabeça e passem a governar sua vida.

O Capitão, meio zaranzo, pergunta-lhe:

- Como, Corta-Cabeça?

- Preste atenção, Capitão. Toda vez que matar um homem, faça um pique de coronha na arma. Poucos compreendem esse costume entre os jagunços. Acham que é por goga, pabulagem de infuqueiro. Mas não é. Isso tem um significado profundo. É como se dissermos à alma do morto: - “Eu estou registrando a morte do seu corpo e não tenho medo da sua alma, pode aparecer-me a hora em que quiser. Com ventania ou nas encruzilhadas, à meia-noite, em sonho. E fique sabendo que a minha pacuera não vai bater”.

O Capitão ouve as explicações do caborjeiro, num olhar perdido pelas trevas da noite. Fica como estivesse fitando os vultos de seus mortos. E o remorso bate-lhe fundo na alma. A voz silente de seu ser cobralhe os seus erros, os crimes e as lágrimas dos órfãos e viúvas. E o seu fardo aumenta de peso. Não tem como fugir do acerto de contas. É o calvário de sua existência de maldades que brota com todo vigor no santuário de sua consciência. Plantou e tem que colher. Assim é a lei da vida.

O carimbamba, em silêncio, reza uma oração forte ao redor da rede do Capitão e retira-se para o seu abrigo.

O Capitão volta a dormir um sono tranquilo, aparentemente.

Os corujões gargalham pela noite. (LIMA, 2001, p.113).

O enfático Corta-Cabeça, nessa passagem, explicita a importância do costume “poucos compreendem, mas quer dizer algo”. A prática do ritual citado somente tem a eficácia se praticado por aqueles sujeitos que acreditam na simpatia. Estão imersos mais ou menos na mesma “estrutura de sentidos”, se considerarmos o conceito de Raymond Williams (1979). Corta-Cabeça é alguém apto a passar esses ensinamentos aos demais, pois é quem norteia a trama, amarrando todos pelo mistério e respeito ao sobrenatural.

Mais uma vez, percebemos a questão do líder pagar um preço alto por sua “falha”, como vimos em Aristóteles, e que Northrop Frye explica muito bem que essa falha não se trata de um desvio do caráter do herói, mas sim de atitudes que ele tomou em situações que o deixaram sem saída a não ser fazer o “necessário”, o “inevitável”. No caso do herói da trama de Moura Lima, “é o calvário de sua existência de maldades que brota com todo vigor no santuário de sua consciência. Plantou e tem que colher. Assim é a lei da vida.” (LIMA, 2001, p.113).

Logo, a religiosidade aparece para “limpar”, “tranquilizar”, mesmo que momentaneamente a consciência dos males cometidos por “necessidade”, “inevitabilidade”. Daí a importância de Corta-Cabeça na vida do herói Capitão Labareda no romance Serra dos Pilões.

CAPÍTULO 3 - TERRITORIALIDADES IMAGINADAS EM MOURA LIMA

Nesse capítulo, procuramos analisar como o escritor Moura Lima figura uma teia de relações em que as práticas culturais são evidenciadas na trama, das quais problematizaremos aqui a apropriação de costumes, a figuração das relações entre as personagens, nas quais transparecem também o aspecto político, econômico, dentre outros, na narrativa. Entendemos que nessa representação, o escritor mobiliza tais elementos que indicam a construção de uma territorialidade no Romance.

A territorialidade, para Deleuze e Guattari (1995, p.2), “é linha de articulação”, porque relacional, criadora de laços interdependentes, necessários à condição humana enquanto ser social, portanto enquanto existência. Dessa forma, é condição da territorialidade relacionar as várias necessidades sociais humanas, criando, assim, essa teia de interdependências, estabelecendo vínculos entre os atores sociais, de forma que práticas culturais, políticas, econômicas, dentre outras, são mais ou menos projetadas e vivenciadas de acordo com os parâmetros, por assim dizer, do que seria o “extrato de interesses comuns”, do grupo social que partilha determinada estrutura de sentidos.

Entendemos como territorialidade aqui, a partir de Haesbaert (2007), uma categoria que representa a teia de relações de interdependências entre os sujeitos ou agentes em um determinado espaço, nos âmbitos político, econômico, cultural, dentre outros.

Assim, relacionamos a categoria territorialidade como um conceito que designa articulação dos agentes ou sujeitos entre si. Envolve a apropriação e produção da cultura, a relação dos agentes em prol de valores, princípios em comum, ou em certa medida comum. A territorialidade envolve então esse conjunto de valores, princípios em comum de determinado grupo. É sutil, porém presente. Não palpável, mas indispensável à existência do território.

Nesta pesquisa, analisamos a linguagem, os costumes apropriados, a construção da paisagem, aspectos que conotam um sentido metafórico, poético à realidade, na obra Serra dos Pilões. A partir do entendimento das categorias território e territorialidade como conceitos que designam apropriação, dominação não só material, mas também simbólica, de um determinado grupo social sobre o espaço e suas relações entre os sujeitos hegemônicos e os demais, relações essas nos seus âmbitos econômico, político e cultural.

Nesse sentido, da teia de relações que envolve a construção de territorialidades, problematizaremos, neste capítulo, a apropriação de costumes na narrativa de Moura Lima, bem como a percepção da política figurada na trama.

3.1. A Narração Fantástica de Costumes

Nesta pesquisa, entende-se costume a partir dos estudos de E. P. Thompson (1998) sobre o tema. De acordo com Thompson (1998), por muito tempo “o termo “costume” foi empregado para denotar boa parte do que hoje está implicado na palavra “cultura”.” (p.14). A partir daí, o autor afirma que o “costume era a segunda natureza do homem” (p.14).

Consideramos os estudos de Thompson no sentido de evitar o determinismo, nesta pesquisa, de quaisquer aspectos sobre a formação de uma cultura, mais especificamente, o determinismo econômico, e perceber em que medida o costume dos sertanejos do norte de Goiás tem relevância na narrativa do romance Serra dos Pilões e como ele é apropriado pelo escritor no desenrolar da trama.

Segundo Thompson, costume abrange religiosidade, que no caso estudado abarca magia, feitiçaria, hábitos, festas, procissões, cerimônias, rituais, superstições e outros temas folclóricos presentes na obra do escritor Moura Lima, e conhecidos da memória dos mais velhos do norte e nordeste do Brasil. Ainda para o autor, costume e cultura sempre foram interligados, costume é parte da cultura, “é um componente da cultura” (1998, p.14). Os costumes são formas de expressão. O autor afirma que durante um bom tempo costumes eram concebidos por pesquisadores do tema como remanescentes do passado.

Devemos a esses colecionadores descrições cuidadosas de welldressings [costume religioso em que os poços de água eram decorados com arranjos florais para agradecer o suprimento abundante de água pura], rush-bearings [cerimônia anual em que se levava junco para a igreja a fim de espalhar pelo chão ou decorar as paredes] ou harvest homes [festa do final da colheita], bem como exemplos recentes de skimmington ridings [procissão para ridicularizar um esposo ou esposa infiel]. (THOMPSON, 1998, p.14)

Thompson (1998) afirma que nessas pesquisas precedentes

[...] o que se perdeu, ao considerar os costumes (plurais) como discretas sobrevivências, foi o sentido intenso do costume no singular (embora com variadas formas de expressão) – o costume não como posterior a algo, mas como sui generis: ambiência, mentalité, um vocabulário completo de discurso, de legitimação e de expectativa. (p. 14).

Para o autor, o costume vai além “de sobrevivências” de algumas tradições do passado, ele legitima/lança o imaginário mais ou menos comum de um grupo social que tem o poder de discurso.

Relacionamos a proposição de Thompson com a reflexão do filósofo italiano Georgio Agamben (2018) , de que a Literatura representa a “perda da fórmula”, a perda do como acender o “fogo” e, ao mesmo tempo, evoca e contempla as tradições ao narrar. Esse atributo da literatura que Agamben enfatiza, que de certa forma a legitima como uma importante instituição artística, é representado pelo literato em Serra dos Pilões com um acréscimo ao “evocar” e ao “contemplar” da tradição. Na obra de Moura Lima, percebemos um “legitimar/lançar” (se considerarmos as proposições de Thompson), de uma cultura tocantinense representada pelo escritor, a qual se coaduna com os ideais daqueles que foram apresentados pela história tradicional como líderes da luta separatista e que irrompem o processo político – administrativo do então novo estado no começo da década de 1990, como problematizado neste trabalho no primeiro capítulo.

Na obra Serra dos Pilões, o nome das personagens, os rituais, as cerimônias religiosas fazem alusão ao sobrenatural, de forma que a fé é, na narrativa, um elemento de significação das relações sociais, um elo entre o sobrenatural, a natureza e o homem. Em uma passagem no Capítulo 14, CortaCabeça, o líder espiritual do grupo, participa de um ritual em que uma cigana lhe passa novos ensinamentos espirituais:

Corta-Cabeça, no acampamento, à boca da noite, é convidado a seguir a velha cigana pelas margens do ribeirão. A certa altura, é deixado em uns lajedos, para ficar em meditação e preparação. [...] aproveita o momento de instrospecção para recordar a sua vida. A orfandade vivida em Formosa do Rio Preto. O seminário em Salvador. A palavra amiga do padre que o criou. Mas no silêncio de sua alma sempre aflora a imagem de seu velho pai, [...] o velho lhe entregou uma pequena caixa de madeira contendo um manuscrito, e lhe recomendou:

- Meu filho, sei que em breve vou deixar este mundo; nas suas mãos deixo-lhe este tesouro sagrado que me foi entregue, em território paraguaio, por um velho descendente dos Incas. Guarde-o e aprenda os mistérios que ele revela. Não profane, para que as maldições não lhe caiam na cabeça.

Essas imagens brotam-lhe dos recônditos d’alma, e eram elas, com a revelação do manuscrito, que o atiravam nos meandros do imponderável, e nunca mais parou. E ali está ele, em mais um portal do umbral, prestes a receber novos elos da iluminação que se arrasta em infinita corrente de surpresa e mistério. As emoções chegam-lhe em forma de imagem e lhe apertam o peito. De mãos postas para o infinito, agradece ao Criador pelas dádivas colocadas em seu caminho.

[...] Os vaga-lumes enchem a noite com suas luzes. A saparia ensurdece o borbulhar das águas com a contoria. Um lobo, ao longe, uiva assustadoramente, enchendo a noite de terror. [...] A fogueira dentro de um círculo, as chamas esverdeadas, subindo em forma de espiral. A velha cigana, trajada de vermelho e com uma tiara branca e longa a cair-lhe pelas vestes, tem as mãos apoiadas em um cajado de pedras cravejantes. Forma aos olhos de Corta-Cabeça uma cena magnífica e arrebatadora. Agora, vem-lhe a imagem do ancião da estrada de São Marcelo e a sua voz:

-“...O seu próximo encontro será com a Imperatriz!”

E ali está diante da sacerdotisa, que conhece os segredos das almas e os mistérios superiores. [...] de joelhos, tem à sua frente, riscado no chão, de forma perfeita, um petágono. A velha cigana ergue as mãos para o céu e entoa um cântico profundo, que ecoa ao longe, pelas margens do ribeirão. [...] Pelos ares paira um sopro de mistério. É o homem tentando abrir as portas da eternidade. E de maneira humilde, procura buscar os segredos da natureza. A cerimônia mística se arrasta pela madrugada adentro e, no final, a velha cigana coloca no pescoço de Quebra-cabeça um patuá e diz-lhe a última frase, soprando antes sete vezes no pentáculo: -“Per firmamentum et spiritum vocis, sis mihi...”

-E por último, a cigana toma o cajado, levanta-o e bate, por três vezes, em cada ombro de Corta-Cabeça, sendo a última pancada na cabeça, e emite a palavra final:

-Pax vobis, meu irmão!

No horizonte surgem as primeiras barras do dia. Está terminada a cerimônia mística. (LIMA, 2005, pp. 85-87).

A narrativa é permeada de alusão ao sobrenatural aliada à representação da natureza. No fim de cada capítulo, encontramos em Serra dos Pilões passagens assim figuradas. O escritor, ao iniciar e finalizar cada capítulo, constrói a paisagem representada na narrativa como um “abrir e fechar” da trama.

Os morros Cutia, Perdiz e Caveira tremulam nos fundões da campina imensa de agreste. (p.55); O morro do Homem projeta-se altaneiro na linha do horizonte, como um símbolo de força e das primeiras pegadas do homem na bárbara extensão. (p.66); Os cascos dos burros rangem na areia molhada. (p.68); Um corujão gargalha para os lados da tapera. (p.84); Os corujões gargalham na escuridão da mata. (p.87).

No fechamento dos capítulos, o autor desenvolve uma linguagem ornamentada para construir uma imagem da natureza de forma exuberante e conclui com uma sentença que alude a uma imagem misteriosa se referindo a “Um corujão gargalha para os lados da tapera”, “Os corujões gargalham na escuridão da mata.” A coruja, uma ave de imagem noturna, por conta da plumagem, de olhos bem grandes, consegue virar a 180° a cabeça toda para trás, além de olhar para todo o espaço ao redor sem mexer o corpo. São muitas as superstições encontradas no imaginário popular sobre esta ave, mas o sentido atemorizador é o que vem à mente do leitor ao encontrar as passagens em que o escritor enreda a paisagem e a ambiência da natureza do Jalapão.

David Gonçalves (1981), a respeito da presença dos “causos” em passagens de Tropas e Boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos, remete ao aspecto fantástico presente em diferentes gêneros literários e que dá ao leitor a sensação de dúvida frente a um acontecimento que pode ser sobrenatural ou real. Na análise de Tropas e Boiadas, o autor cita e analisa a seguinte passagem

Manoel, o dianteiro, na Quinta-Feira das Dores, viajava ao povoado e na altura dos Marinhos, encontra um cemitério abandonado onde, na semana passada, havia sido enterrado o Bentinho Baiano. Fora Manoel que, de passagem, cedera a mortalha: larga pala branca enfeitada de bandolins. Viajava distraído quando o animal estacou, de supetão. Desviou a montaria para uma pequena macega. Noite sem lua, turva, as cruzes apodrecidas pendendo na escuridão. Principia aqui a hesitação que dá início ao fantástico: ‘Era o cemitério velho do povoado. Apertei as chinelas no pangaré; ele andou alguns passos e depois emperrou de novo no meio das orelhas entesouradas, espreitando a escuridão. Adiante, não ouvia movimento ou tropel algum; o bicho nunca fora empacador ou passarinheiro, espreitando a escuridão. Tentação do capeta devia de andar ali por perto. (p. 6)’ (GONÇALVES, 1981, p.78).

Percebe-se, com a análise de David Gonçalves, que o escritor Hugo de Carvalho Ramos, ao figurar a passagem, deixa um suspense permitindo ao leitor imaginar o que poderia ter acontecido para o animal empacar. Na citação referida por Gonçalves trata-se de uma contação de um causo ocorrido.

Não poucas vezes, encontramos na literatura regionalista brasileira elementos como “assombrações”, “fantasmas”, fenômenos sobrenaturais presentes no enredo, como o supracitado, de Hugo de Carvalho Ramos, um dos precursores neste gênero literário no Brasil.

Na memória das pessoas do norte e nordeste, descobre-se também causos, “histórias de trancoso”, inclusive, por experiência própria da minha infância. Essas histórias eu ouvia de meu pai , um cearense já com a idade avançada e que, naquela época, se referia a histórias que as pessoas contavam e que ninguém tinha certeza se era verdade. Imaginava-se as situações, sentia-se medo, geralmente nas histórias de assombrações haviam cemitérios, noites trevosas, uivados estranhos; histórias que sempre escutava das pessoas mais velhas, em visitas noturnas, nas casas de parentes e fazendas vizinhas.

No romance de Moura Lima, dentre as passagens que sugerem a hesitação ao sobrenatural e sobrepõe a questão da religiosidade aos acontecimentos reais, está também a passagem em que Corta-Cabeça segue, no segundo capítulo, o ritual fúnebre do jagunço, que num ato extremo de rebeldia e fúria lançou fogo contra um companheiro, logo no primeiro capítulo da trama, e como desfecho do conflito, Capitão Labareda ordenou a morte do revoltado.

CORTA-CABEÇA, após os preparativos da ritualística fúnebre, erguendo o olhar luzidio e possesso, solta a voz fanhosa e arrastada: - Tragam-me o cadáver do irmão, para que possamos libertá-lo do mundo.

E os homens, petrificados e borrando de medo, colocam o defunto no centro do pentagrama. O mago oficiante daquela cerimônia, em gestos esotéricos, abre o embornal ensebado, de longos anos, e retira do seu conteúdo um cordão preto de São Francisco e o ata à cintura. Com esta providência, fecha as portas do inferno e dos

espíritos malignos. Com o simples toque daquela joia mágica, o seu espírito transforma-se, move-lhe, espontaneamente, as invocações:

“... padre-nosso pela Sagrada Paixão de N.S. Jesus Cristo. Roga-se às almas proteção contra todos os tipos de inimigos, carnais e espirituais, visíveis e invisíveis...”.

E continua, fervorosamente, batendo os beiços na reza:

“Ô minhas almas Santas-Benditas, eu humilde servo, suplico, quem tiver arma de fogo não me atirará, nem de faca... nem de fogo ardente. Quem tiver olhos não me enxergará, com os poderes de Deus e da Virgem Maria!”

E, com gestos largos e graves, ergue as mãos para o céu, em súplica:

“... Que a Luz nasça entre nós!”

Com estas últimas palavras de fogo, que queimam e incendeiam as almas naquele ambiente de profundas vibrações místicas, faz desencadear-se, no centro do círculo mágico, uma força centrífuga, em forma de redemoinho, que vai corporificando-se, tomando forma, numa ventania atroz, que arranca pedaço de pau, range dentes, cavalo relincha, jumento urra, e os homens desembestam-se na correria, procurando abrigo por trás dos troncos das árvores. Outros recebe, sopapos violentos, saídos do meio da ventania e por mãos invisíveis, que os remetem de catrâmbias ao chão. Uns gritam:

- É o fim do mundo!

Corta-Cabeça continua na reza, permanece impávido, firme como um rochedo no meio do pandemônio, pois aquelas forças lhe eram familiares. E por último, puxa do facão, e como se estivesse furando o vento com a espada flamígera, ali no centro do redemoinho, junto do cadáver, faz a invocação final:

- “Em nome das forças da terra, do ar, da água e do fogo, eu te liberto do mundo, para que possas entrar na eternidade!”.

E num movimento brusco, num golpe certeiro, decepa a cabeça do cadáver, separando-a do tronco. E aos gritos:

- Eu te liberto, alma penada, dos sofrimentos e dores do mundo! Neste ponto o auxiliar, que se encontra na ponta do pentagrama, responde:

- Amém!

Com esta palavra poderosa, a ventania cessa instantaneamente, e os cabras que se encontram escondidos por trás das árvores, observando a cena macabra, sentem-se em outro mundo, apáticos, abobalhados e sorumbáticos.

E aquele preto cumba, retaco, de origem africana, das bandas da Bahia, de gibão e alpercata de couro, apressa os cânticos finais daquela ritualística fúnebre. Agora, ao ritmo da matraca, em redor do círculo e acompanhado do auxiliar Apaga-a-Vela, que gira também, a cada matracada, o seu berra-boi para afugentar os espíritos errantes. A matraca-de-quaresma tine, matracolejando naquele som apavorante e cavernoso, acompanhado pela voz tremida de CortaCabeça e pelos gungunados do auxiliar. Os trabalhos de purificação e lustração estão terminados e os espíritos, agradecidos e apaziguados. O grupo não tem nada a temer dali para a frente. O que se vê, depois daquela cerimônia, são árvores retorcidas, galhos de pau pelo chão, a tropa esparramada pelas margens do ribeirão, cangalhas espatifadas, a trenheira às braçadas de distância. Capitão Labareda, ainda atordoado pelos acontecimentos, meio ressabiado, macambúzio, vai, lentamente, saindo de trás do jatobazeiro donde se encontra e, desconfiado, prevavido, pergunta a Corta-Cabeça:

- E o cadáver não vai receber cova rasa?

- Não, meu Capitão! – diz-lhe Corta-Cabeça, e acrescenta:

- Os urubus são os lixeiros do sertão. É a vida se renovando. Não compete a nós contrariar as leis da natureza, meu Capitão! Eles se encarregarão do serviço. É a ordem das coisas.

Labareda, tomando pé da realidade, nada responde. E como voltasse a si daquele pesadelo, lembra-se de que é o chefe do grupo, e chama os homens ao trabalho:

- Vamos levantar acampamento e prosseguir a marcha. Quero sair deste lugar o quanto antes.

E diz-lhes:

Quem gosta de defunto é tatu-coveiro... [...] (LIMA, 2001, pp.21-22).

A linguagem, a forma com que o escritor se apropria desse costume dos sujeitos que viviam naquele período histórico, nos induz a relacionar com o que diz outras literaturas sobre esses costumes. É possível perceber a criação artística de Moura Lima como uma ficção imaginativa que mobiliza aspectos do fantástico, apontado por David Gonçalves (1981), e que na narrativa de Serra dos Pilões assume proporções místicas, especialmente nessas passagens no capítulo 2 e no capítulo 14, em que há o ritual de recebimento de novos ensinamentos de Corta-Cabeça com a cigana.

Eli Brasiliense, no prefácio da primeira edição de Serra dos Pilões, assim comenta

Moura Lima registra-lhes os apelidos de assombrar beatas e cabra frouxo das pernas. Corta-Cabeça, Tamborete, Gavião, Apaga-Vela, Labareda, Cacheado, Zé Peba, para citar alguns. E as cenas de exorcismo, recomendação das almas e outras invocações, feitas pelos capitães, à meia noite nas encruzilhadas, quase toda sextafeira? Pareciam mais cerimônias de satanismo, com rituais de um sincretismo de cultos africanos e catolicismo, para impressionar a mente ingênua da cabroeira. Tudo não passava de esperteza dos comandantes do bando. (LIMA, 2001, prefácio (da 1° EDIÇÃO)).

Interessante notar que no episódio do ritual fúnebre não se encontra uma explicação real para os eventos naturais ocorridos como a ventania assustadora, os barulhos de outro mundo, deixando assim, a narrativa de Moura Lima bem próxima do fantástico. Com relação aos rituais, o prefaciador do romance de Moura Lima deixa escapar que tais práticas eram “para impressionar a mente ingênua da cabroeira. Tudo não passava de esperteza dos comandantes do bando”.

Moura Lima, no final do primeiro capítulo, já apresenta o que vem a seguir com a cerimônia conduzida pelo líder espiritual do grupo Corta-Cabeça:

Os homens ficam assombrados, toda vez que se realiza aquela cerimônia do outro mundo. Geralmente ocorrem fenômenos estranhos, como ventania, galhos quebrando, gargalhadas tenebrosas saindo não se sabe de onde, se de cupinzeiros ou se de lugares distantes, das profundezas da terra. (LIMA, 2001, p.19).

Nessa narração, o autor sugere que existem outras possibilidades para os fenômenos ocorridos durante a cerimônia, “se de cupinzeiros ou se de lugares distantes, das profundezas da terra”. No decorrer do segundo capítulo, no qual a cerimônia é figurada, na criação artística de Moura Lima, não aparece nenhum indício de realidade nos fenômenos narrados, apenas palavras, figuras de linguagem que expressam a intenção do escritor em tornar o ritual o mais misterioso possível.

Ainda no primeiro capítulo, a expressão “[...] ranger de dentes” (p.18), encontrada também na bíblia, expressa uma vontade de atemorizar, como um castigo dado a alguém por algo que fez ou deixou de fazer, por uma autoridade suprema, divina. Contra esse castigo não há o que fazer, todos de um determinado grupo estão de acordo, pois é algo que não pode ser questionado, não importando o porquê da infração cometida pela alma julgada e condenada.

Assim se encontra na escritura sagrada cristã:

Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, e Isaque, e Jacó, e todos os profetas no reino de Deus, e vós lançados fora. (Lucas 13:28).

E lançá-los-ão na fornalha de fogo; ali haverá pranto e ranger de dentes. (Mateus 13:42).

E lançá-los-ão na fornalha de fogo; ali haverá pranto e ranger de dentes. (Mateus 13:50).

Lançai, pois, o servo inútil nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes. (Mateus 25:30).

E os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes. (Mateus 8:12).

E separá-lo-á, e destinará a sua parte com os hipócritas; ali haverá pranto e ranger de dentes. (Mateus, 24:51).

Disse, então, o rei aos servos: Amarrai-o de pés e mãos, levai-o, e lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes. (Mateus 22:13)

Não são poucas as passagens bíblicas associadas a algum castigo destinado aos servos, caso não cumpram os comportamentos esperados. O castigo referido vem de uma autoridade divina, sobrenatural, que se imagina ser efetuado no pós-morte, ou mesmo no referido período apocalíptico em que todos viveriam.

Nesse sentido, no primeiro capítulo de Serra dos Pilões há uma reação por parte de Capitão Labareda, ao ato de rebeldia extrema do jagunço Beiçode-Cangalha, atirando contra outro integrante do grupo, conforme fragmento abaixo.

Me traga esse fio-da-puta, agora!

Com essa ordem, só se vê a cabroeira pular em cima do infeliz, que não tem tempo de manobrar o rifle. Em poucos segundos está imobilizado, na chincha, como um mondrungo rebelde. Funga e espalha sangue pela venta. O silêncio que cai sobre o grupo é geral, prenunciando o desfecho num panejar de morte e ranger de dentes. Labareda, com o cenho fechado, move-se na direção daquele molambo humano, fita-o e lhe dá a sentença de morte:

- Gavião, fure o cachorro bem devagar, no sangradouro [...] (LIMA, 2001, p.18).

Ao se relacionar a passagem de Moura Lima com as passagens bíblicas citadas, percebemos o quanto as narrativas se aproximam quanto à ambiência: a situação de julgamento narrada, a autoridade inquestionada, o sentido de pavor despertado. Ambas as narrativas são imersas em uma cultura, tradicionalmente cristã, em que a autoridade que se pretende inquestionada em suas performances, apropriam-se de aspectos de religiosidades que foram construídas ao longo da história do Brasil. Para validar essa mesma autoridade, mobilizam situações do imaginário popular e desempenham com maestria a composição artística.

Assim se percebe nos rituais comandados por Corta-Cabeça:

[...] - Corta-Cabeça e Apaga-a-Vela, agora é a vez da execução do ritual fúnebre, para encomendar a alma do infeliz e evitar que a má sorte caia sobre o bando.

Os homens entreolham-se. Corta-Cabeça, que observa a cena, sente no interior da alma prazer imenso com aquela ordem, pois mexer com o desconhecido, com as forças do além, é a missão de sua vida. Sua figura grave veste-se de preto e traz ao pescoço um patuá, que contém no seu bojo revestido as orações de proteção. Atravessa-lhe o peito uma cinta de couro, que sustenta do lado esquerdo uma enorme mucuta de couro ensebado, que abriga no seu interior símbolos cabalísticos, breviários de rezas, ervas medicinais e outros segredos não revelados à luz do dia. O grupo teme-o, é uma espécie de caborjeiro e conselheiro de todos. Nas horas de perigo, no meio do fogo pesado, é ele que os tira das enrascadas e leva o inimigo ao desespero. Agora, ali, na beira do ribeirão Marimbondo, os seus serviços são convocados. E com o ar solene de quem viaja nos meandros do sobrenatural, olha para os homens postados à sua frente e lhes determina que limpem um espaço razoável debaixo daquela mirindiba que se apresenta à frente do grupo. E o serviço é executado em perfeita ordem, pois sua palavra é lei no meio do grupo. Em seguida bate os beiços na reza, invoca as forças da natureza e começa a desenhar no chão, com a ponta do facão jacaré, um gigantesco círculo, e no centro traça um pentagrama, com o selo de Salomão, recheado de letras hebraicas. (LIMA, 2001, pp.18-19).

Na composição da figuração, há itens que complementam o cenário figurativo da narrativa do escritor. São elementos que representam uma religiosidade a qual mescla a cultura religiosa cristã, africana e indígena: [...] veste-se de preto e traz ao pescoço um patuá, que contém no seu bojo revestido as orações de proteção; Atravessa-lhe o peito uma cinta de couro, que sustenta do lado esquerdo uma enorme mucuta de couro ensebado, que abriga no seu interior símbolos cabalísticos, breviários de rezas, ervas medicinais e outros segredos não revelados à luz do dia; facão jacaré, um gigantesco círculo, e no centro traça um pentagrama, com o selo de Salomão, recheado de letras hebraicas.

Desse modo, entendemos que faz parte do imaginário popular a alusão a essa religiosidade, no sentido de tornar a mensagem que se quer transmitir contornada do sobrenatural, sobre o qual o mistério, o improvável está a serviço de um poder maior, que seria a preservação de um costume, de uma tradição. É o que se percebe com a situação da morte de jagunço, ordenada por Capitão Labareda, mesmo que fosse algo injusto, (pois Beiço-de-Cangalha estava apenas retaliando a ofensa dos colegas) era necessária e inevitável. Algo que no decorrer da trama se entende melhor, pois a sobrevivência do grupo depende de atitudes em que, se necessário, esmaga as exceções, como é no enredo o jagunço Beiço-de-Cangalha.

3.2. A trama tecida entre Política, História e territorialidade

O capítulo 3 representa através da memória de Cipriano e da memória social do autor, (que emerge na criação artística mesmo que na narração em terceira pessoa), o desenho do mapa da região do Jalapão, na qual ocorre a trama. Figura também a construção de articulações políticas e aspectos socioeconômicos, dos quais se percebe a relação com os estados do nordeste. Além disso, há também a representação do ataque à Vila de Pedro Afonso, fato que culminou no processo de embate entre os dois grupos de jagunços rivais que é o tema da obra Serra dos Pilões e a apresentação das personagens que decidem o destino da trama: Cipriano Rodrigues, Euledino Martins (Capitão Labareda), Cacheado, Barro Alto, dentre outras.

O escritor introduz o capítulo 3 com a representação de Pedro Afonso destruída, após o ataque de jagunços da Bahia:

Tudo Calado. Vila morta. Bagaço de tapera. Um cemitério. Do alto da igreja de adobos, em construção, um menino pardo, de gongó, apoiado nos botaréus de aroeira, repica o sino. No interior do templo, crianças brincam. As badaladas quebram o silêncio mortuário. O som vai longe, atravessa a vila morta, o rio Tocantins, para se perder pelos cerradões distantes; vai a mais de meia légua, sendo levado por aquele vento bondadoso dos gerais. O som vai sumindo, verrumando as distâncias, entrando nos emburrados, nos boqueirões sombreados das matarias, onde os capelões ou padres-mestres emitem os bramidos rudes e bárbaros, como se fossem rangidos de toscos engenhos moendo cana. (LIMA, 2001, p.23).

A construção paisagística aparece no enredo quase sempre como um abrir e fechar dos capítulos. As figuras de linguagem personificam a magnificência da natureza, dando impressão atroz aos animais: capelões ou padres-mestres emitem os bramidos rudes e bárbaros, como se fossem rangidos de toscos engenhos moendo cana.

A partir da seguinte passagem, Moura Lima representa o que seria Pedro Afonso, na década de 1910. Em meio a trama, aparecem aspectos da economia da região, a geografia da cidade surge de forma épica na construção artística do escritor:

A Vila de Pedro Afonso, outrora cheia de vida, com os batelões descarregando mercadorias no porto local e saindo carregados com os produtos da terra, para o Maranhão e Belém! E agora? Um cemitério! Uma tapera! Parecendo povoado fantasma, depois do assalto da jaguçama de Abílio Batata. O sangue correu em riacho gorgolejando para o Tocantins e o rio do Sono. Os papos-amarelos repicaram a catinga da morte. Urubus ficaram com o bico doce de tanto comer cadáver. (LIMA, 2001, p.23).

O sol abrasante ilumina os escombros. Os fedegosos, as buchas, os carurus-de porco, os carrapichos, as bostas-de-baiano, os melões de são caetano invadem as ruínas e a quintalama. As densas revoadas de periquitos, maracanãs e joões-congos assaltam as árvores frutíferas. As abelhas, os marimbondos vão se alojando nas taperas. Aqui e acolá, paredes desabadas e sinais de bala pra todo lado. Uma miséria! Terra arrasada! E lá embaixo o rio Tocantins segue o seu curso eterno. Alheio às desgraças dos homens. As piraíbas fogosas dão rabanadas no dorso do rio. (p.23-24).

Da memória da personagem Cipriano surge a dor das mortes no conflito, o saudosismo de uma época que se sugere próspera:

O herói da resistência, Cipriano Rodrigues, curiboca, mulato atarrancado, façudo, de lábios grossos, caminhando para gamela. Olhar de lobo guará. No seu jeitão de barranqueiro destemido, como se não tivesse compromisso com a vida e os mortos do barulho. Acabanado, indolente, dependura os braços por cima do caibro de cega-machado, que circula o quadro de paus fincados, no largo.

Aqueles paus ali fincados serviam, no passado, para dependurarem a balança romana, onde se pesavam os couros de bois. E também, nesse lugar, ou coureiros e vaqueiros passavam horas e horas, ao arlivre, cujo comércio era na base da troca. Os comerciantes da vila recebiam os espichados dos vaqueiros, que os trocavam por sal e tecidos. Em certas épocas do ano vinham viajantes do Maranhão e levando os couros nos batelões e balsas, deixando aos comerciantes novos estoques de tecidos e sal. (LIMA, 2001, p.24).

Cipriano, ali, com os braços espichados em forma de cruz humana, por riba do caibro, entrega o corpo ao marasmo do seu destino. Sentindo-se hipnotizado pelo bagaço das taperas, estende o olhar para a vila fantasma, que cresce num ângulo formado pelo rio do Sono e o Tocantins. E sente um baticum no peito. Uma tristeza imensa. Lembra-se dos combates de Capelinha, rio Gorgulho e Buritirana. E da fuga apressada, debaixo de bala, da jagunçama assanhada. Dos amigos mortos. E as soveladas vêem fortes do passado. As imagens de Madalena brotam-lhe vivas, como se a visse andando com jeito, por causa da gravidez, já no mês final. Mas os seus inimigos mataram-na, com a maior judiação e perversidade. Abriram-lhe impiedosamente o ventre a facão, retiraram ainda viva a criança e em seguida jogaram-na pra cima para espetá-la nos longos punhais, como se fosse uma melancia. (LIMA, 2001, pp.24-25).

A localização geográfica de Pedro Afonso encanta. Em meio à construção paisagística, o escritor ressalta, O sangue correu em riacho gorgolejando para o Tocantins e o rio do Sono. [...] Sentindo-se hipnotizado pelo bagaço das taperas, estende o olhar para a vila fantasma, que cresce num ângulo formado pelo rio do Sono e o Tocantins. Localizado em uma espécie de bifurcação, Pedro Afonso fica no encontro dos rios Tocantins, do lado esquerdo e o rio Sono, do lado direito.

Fonte: Imagem da cidade de Pedro Afonso dos dias atuais. Disponível em https://images.app.goo.gl/qkwLogXVBnGjiw8o9. Acesso em 24/09/2019.

A narrativa representa ainda aspectos da história da época em meio à figuração da Vila de Pedro Afonso destroçada após o ataque. Destacamos na passagem seguinte: Aquele sino, nos bons tempos da vila, anunciava tudo: a chegada dos padres de Porto Nacional, também de pessoas ilustres, a demissão de autoridades e os enterros. Nesta passagem, percebe-se a relação ainda de dependência com Porto Nacional, já que Pedro Afonso havia se desmembrado há pouco tempo de Porto. Dados da história que surgem da memória social e histórica, apresentada em Serra dos Pilões.

O sino da igreja em construção repica. As marteladas no bronze trazem Cipriano para a realidade da vida. É um bando de crianças brincando no interior da igreja, com um boi de brinquedo. Do lado de fora, outros meninos brincam na relva, de bunda-canastra.

As portas da igreja estão permanentemente abertas. E os jumentos, as galinhas, os cabritos e a meninada não se fazem de rogados, adentram livremente. Padre não existe. A não ser nas desobrigas e datas especiais. As beatas rezadeiras são desleixadas e só cuidam dos cochichos de rosários e do não-sei-que-diga da vida alheia. O alarido febrento dos meninos brincando na nave do templo. É um contraste com o fogo morto das taperas e dos ranchos queimados. Aquele sino, nos bons tempos da vila, anunciava tudo: a chegada dos padres de Porto Nacional, também de pessoas ilustres, a demissão de autoridades e os enterros. Agora, anuncia a bambão a morte da vila! O sino continua a repicar. E o som do bronze vai longe, atravessa as almas e os ermos solitários. A beata Maria-Dente-Largo, a cada badalada do sino, se estremece toda, na sua catarse. E cai numa jaculatória profunda. É preciso rezar pelos mortos do massacre da jagunçada. A sua casinha, no final da vila, foi poupada pelos jagunços, no momento do fogo nutrido, com a invasão dos jagunços pelas casas e a matança de gente a ferro frio. A vida dela também foi resguardada. Quando os jagunços invadiram sua casa, encontraramna de joelho, batendo os beiços na reza. Por todo os lados dos quartos havia imagens dos santos. Joca Netário determinou aos jagunços que não a maltratassem. E a cada badalada do sino, ela agradece a Deus, pela sua vida, e suplica pelos mortos. (LIMA, 2001, p.25).

O coronelismo aparece orquestrando as relações sociais e políticas. O trecho a seguir confirma isso, sobre um juiz que chega à região:

[...] - É esse mesmo.

Dizem que o homem é bravalho e veio de Remanso, na Bahia, do povoado de Urubu, onde enfrentou no papo-amarelo, com seus familiares, a jagunçada do Coronelão de Pilão Arcado. - Uê! Eh – exclama Queixada e continua – Estamos pebados e no mato sem cachorro, Chefe. O sargento é um canguçu, o juiz não tem medo de cara feia. O jeito é cair nos gerais e não olhar para trás. - É isso mesmo, homem! – reitera Cipriano e acrescenta: - Esse juiz não é brincadeira. Você não sabe o que ele fez com esse sargento Penteado? [...]. (LIMA, 2001, pp.26-27)

É perceptível o processo de enfraquecimento do poder dos coronéis e a chegada do poder do estado. Percebemos que na figuração o representante do poder do estado é chamado de “sargento”, “juiz”, e os representantes do poder local de “Coronel”, “Coronelão”. Neste capítulo, percebe-se ainda uma certa “necessidade” de práticas justiceiras por tais personagens, em decorrência do abandono por parte do governo do Sul de Goiás.

Cipriano, endireitando os braços nos paus e arrumando a máuser na cintura, acrescenta:

- Estão querendo mandar pra cá um tal de sargento Penteado, que foi mandado embora de Porto Nacional, por aquele juiz gordão, sambudo, que aportou aqui. Uns sete anos atrás, em 1908, vindo aí de Boa Vista, da sua viagem fracassada. O governo mandou ele apaziguar o Padre João com o Coronel Leão Leda. Não conseguiu. E aqui chegou doente. A vila chegou a fazer festa pro homem. Como é mesmo o nome dele, sô? - Bartolomeu Palha, Chefe.

- É esse mesmo. Dizem que o homem é bravalho e veio de Remanso, na Bahia, do povoado de Urubu, onde enfrentou no papo-amarelo, com seus familiares, a jagunçada do Coronelão de Pilão Arcado.

- Uê! Eh – exclama Queixada e continua – Estamos pebados e no mato sem cachorro, Chefe. O sargento é um canguçu, o juiz não tem medo de cara feia. O jeito é cair nos gerais e não olhar para trás. - É isso mesmo, homem! – reitera Cipriano e acrescenta:

- Esse juiz não é brincadeira. Você não sabe o que ele fez com esse sargento Penteado?

- Não, chefe.

- Escuta aí, e vai tirando medida do homem. Esse tal de Penteado gostava de chegar a palmatória em qualquer pessoa que prendesse lá no Porto. O safado, quando ia no curral-das-éguas, não tinha dó das pobres mulheres, e arrepiava a palmatória nas coitadas. Até a mão ficar preta. E água correr pelas pernas delas. Os homens que se encontrassem no bordel... Naqueles seus dias de estar com a avó de trás do toco... Nos azeites. Coitados! Apanhavam até o barro correr pelas pernas. O juiz não gostou do arruaceiro e mandou chamar o homem. Quando o casca-grossa foi chegando na casa do juiz, teve o recebimento que merecia. O juiz nem mandou o excomungado entrar. Foi logo metendo o dedo na venta do cascaborra e perguntando:

(LIMA, 2001, pp.26-27).

- Quem é você, cabra safado?

O sargento, assustado com a arrancada do gordão, caiu das carnes e, esqueixelado, respondeu num fiozinho de voz:

- Sou o sargento Penteado...

E o juiz, balançando a pançona mole como um surrão, chegou outra vez o dedo na venta do mau-bofe:

- Caia fora da cidade, em doze horas, seu cabra arruaceiro! Suma-se da minha Comarca!

Do lado de fora, encostado no sargento, ficou um soldado. O juiz perguntou:

- Quem é esse pé-de-poeira?

- É o soldado Antão, seu doutor.

O juiz respondeu no seu vozeirão de meter medo em cabra covarde: - Mande ele desaparecer da minha porta, não quero jagunço fardado aqui. Ponha-se fora!

O soldado não esperou mais nada, azeitou as canelas e saiu aos tropeções, de escantilhão. O juiz, já nervoso, falou ao arrepia-cabelo:

- Você só tem doze horas pra cair fora da cidade!

E, fungando de raiva, ainda falou:

- Vou pedir ao governo pra arrancar sua farda. Pode ir embora, está despachado. Suma-se! (LIMA, 2001, p.27).

O sargento pensou em reagir. Pois em toda sua vida, nunca um homem tinha erguido a voz no seu rumo. Até o comandante baixava a voz na sua presença. Mas viu a rua silenciosa, e aquilo era sinal de tocaia. As janelas se abriam e se fechavam. E lá por dentro da casa escutou barulho de alavanca de carabina. O juiz não era besta, tinhase precavido. Não era à toa que o povo falava que ele tinha as suas doze carabinas, azeitadas, guardadas em casa. O sargento entendeu tudo e deu no pé. Pouco menos de duas horas, cadê o sargento e os soldados em Porto? Caíram na saroba, na direção do Peixe, não eram bestas. (p.27-28).

Das articulações políticas percebidas na passagem seguinte, enfatizaremos o aspecto da “palavra dada, palavra cumprida”, presente nas relações sociais do sertão, mais fortemente no coronelismo.

Queixada-de-Burro, olhando à esquerda do largo, diz:

- Olha o Anca-de-Jumento chegando!

E lá é-vinha o jagunço montado no osso do cavalo, forrado com folhas de bananeiras. Assim que se aproxima, Cipriano diz-lhe: - Não precisa apear, que a viagem é de urgência.

O jagunção, ombrudo, acabralhado, de cara rechonchuda como uma lua cheia, chegando o calcanhar de pé-de-pranchão nas ilhargas do cavalo, encosta para mais perto dos moirões e responde resoluto:

- Estou às suas ordens, para o que der e vier, Chefe!

- Eu mandei um positivo no seu rancho, foi pra você fazer, ligeirinho, uma viagem ao Jalapão, agora mesmo, em riba dos cascos do cavalo. Vai levar um cargueiro de munição pro compadre Euledino. As bruacas, com os cunhetes de balas, já estão prontas lá em casa. Pode pegar o meu seligote com a lua da sela, suadoro e a carona. Não é pra ir no osso, não. Se teimar, vai chegar com as almorreimas na chaga viva!

Queixada, rindo, moteja:

- Agora que o apelido gruda, no topetudo, Bunda-de-pedra-canga!

E o alfojado de Cipriano responde em riba do rastro!

- Deus me livre de cavalo de cara branca, jagunço por nome Joca, mulher das ancas de jia, e pote que não esfria – Credo-em-cruz, AveMaria!

Cipriano, com o semblante fechado, admoesta-os:

- Vamos deixar de fonfança, seus cabras pacholas!

Anca-de-Jumento se apressa em perguntar: (LIMA, 2001, pp.28-29).

Em meio à construção do enredo, surge o conhecimento geográfico da região do Jalapão, os nomes dos rios, brejos, ribeirões, morros, características que parecem familiares ao narrador, como se percebe na seguinte passagem:

- Mas aonde vou deixar a encomenda, seu Cipriano?

- Você salta o rio do Sono e tora no mundo. E lá muito dentro vai sair no brejo da Tapera, no ribeirão rapadura e no morro do Homem. E andando na trilha do gado, já nos fundões dos gerais, vai dar de testa com o morro Mandacaru e Cilezé. Aí vira à direita e ruma pro brejão de Areia, não tem errada, vai bater de bica no morro Saca-Trapo. Daí ao brejo da Capivara é um pulo. É aonde você vai deixar o cargueiro de balas, na fazenda de dona Bela.

- Não se preocupe, seu Cipriano. Eu já andei por lá, naqueles brocotós, tocando boiada pro Piauí e Ceará. O morro Saca-Trapo tem gente que chama ele de Garrafão. E já fui muito em cima, até na Chapada das Cangalhas, passei pelas águas-emendadas e margiei o rio Sapão. Aquele mundão me enche de alegria.

- Antão, eu fico despreocupado. E vejo que vancê não está com azedume de puçá-croado no bucho. Mas com vontade de cair nos gerais!

- O Chefe não arrepare, mas tenho outro assunto pra tratar com vosmicê.

- Desembuche logo, homem!

- Quando eu voltar vou pra Carolina, me alugar numa fazenda por lá. Já tenho trato de boca. Preciso tratar de minha família e ganhar uns biguás. Aqui, num cemitério desses, não tenho como ganhar o meu suvete. Mas como o chefe sabe, sou bom pingueleiro, é só chamar, que tou aqui em riba do rasto!

- É o que sempre digo: quem quiser ir-se embora, que vá! Agora eu não vou. Aqui enterrei meu umbigo, e aqui vou morrer, como Deus for servido!

O jagunço, puxando a rédea do cavalo, pergunta:

- Mais alguma coisa pro Capitão Labareda?

- Diga a ele que aqui fico arrancando os defuntos podres e ensinando os traidores como satanás prega quaresma. E que mande logo Cacheado e Barro Alto pras capemba rajadas de Pedro Botelho. Aí vou ficar de peito lavado, a até mandar dizer uma missa pras almas!

Nisso o doido Papagaio-Rolé desce nos azeites, no rumo do rio do Sono, gritando e gargalhando como um possesso:

- Abílio Batata é-vem! E vai fazer do resto paçoca!

Queixada, ao lado de Cipriano, rilhando os dentes, finca o punhal no chão e resmunga:

- Ainda meto uma bala nesse doido manquitola! Fica aí como um cauã, apavorando todo mundo.

Cipriano, num olhar perdido pelos escombros, contesta:

- Deixa o doido com suas doideiras! Quem manda mesmo é o grande lá de cima, das alturas, e nada cai sem sua vontade, nem o homem e nem as folhas dos paus!

Da casinhola toda esburacada de bala, à direita do largo, a rezadeira Maria-Boleira, a cada grito do doido, leva a mão no coscorão da cicatriz do tiro que levou na perna esquerda, de bala extraviada. E cai no histerismo de louca desvairada:

- Vamos rezar, gente! Se não a desgraça volta!

Queixada esbraveja, no seu tique nervoso, de pitosga repuxando a mandíbula alongada:

- Essa rezadeira precisa é de macho! É uma morixaba doida por jagunço...

Assim ficou a cabeça da reduzida população que restou da carnificina. Um coité cheio de medo e lunáticos.

- Abílio Batata é-vem pra matar...

Corre, gente, senão cai no chumbo!

A população a cada grito do doido, persigna-se. E ele, nas teias da demência, às gargalhadas, no seu andar xabouqueiro, de molambudo amalucado, vai ao léu, no rumo do rio do Sono.

Lá embaixo, o rio Tocantins, alheio às desgraças dos homens, segue o seu curso eterno. (p.29- 30).

O isolamento político é colocado como parte importante da “história” do

Norte. Segundo Moema de Castro (2003), Serra dos Pilões e Chão das Carabinas, ambos de Moura Lima, são romances históricos, porque o “saber” que utilizam é proveniente da História. Assim os define:

Serra dos Pilões registra a tragédia da Vila de Pedro Afonso e a perseguição, pelas terras do jalapão, dos jagunços responsáveis. Chão das Carabinas traz a história sangrenta de Vila do Peixe. Ambos valem-se dos registros históricos, no que diz respeito aos dados da ação e à categoria sócio-cultural dos vultos mencionados, mas, como criação ficcional, constroem a sua “verdade”. (OLIVAL, 2003, p.26).

O historiador Antonio Filho da Silva Machado (2004), ao tratar do Coronelismo em Pedro Afonso, Dianópolis e Tocantinópolis, mostra que o isolamento da região Norte de Goiás nas primeiras décadas do século XX,

tornava este espaço vantajoso para o estabelecimento de pessoas que procuravam a sobrevivência, vindas de outras regiões do país. Destas pessoas, destacavam-se nordestinos que procuravam uma forma de viver, e jagunços que, muitas vezes, procuravam fugir dos seus feitos em outros estados, ou mesmo procurar uma forma de viver diferente nessas terras abundantes e isoladas. Machado assim coloca a história de alguns jagunços:

O norte goiano recebeu vários desses aventureiros. Goiás, no início do século, representava um eldorado para os fugitivos de qualquer natureza. Significava vida nova para muitos desterrados.

(MACHADO, 2004, p.303).

Várias personagens de Serra dos Pilões quadram nessa descrição. Na figuração de Moura Lima, os jagunços responsáveis pelo ataque à Vila de Pedro Afonso em 1914, são retirantes do nordeste: Abílio Batata (Abílio Araújo), Cacheado, nomes fictícios que o autor coloca em personagens históricos.

O livro também concorda com o historiador ao afirmar que muitos dos que vieram, procuravam uma forma para prosseguir com sua luta ou para recomeçar uma nova vida. Das pessoas que se refugiavam aqui também haviam trabalhadores que “fugiam” da crise açucareira no nordeste (CRUZ el al, 2008). Pessoas estas que procuravam uma oportunidade para continuar a vida, mesmo que fosse se agregando em grupos de cangaços, ou lutando na terra, por falta de recursos mínimos para a sobrevivência como o caso de algumas personagens do livro.

Contudo, o mais importante não é a versão histórica e a versão ficcional concordarem. O interessante é como essas versões entram no enredo do livro, através de “relatos orais” de certas personagens, literalmente os donos da outra memória do Norte de Goiás, a “memória do Tocantins”. Uma criação artística de Moura Lima que aqui consideramos como integrante dessa memória nortense, a qual pode ajudar a compor, em certa medida, a História do Tocantins.

No capítulo 13 de Serra dos Pilões encontramos parte da história, na memória da personagem Cachoeira, numa contação de causo:

[...] Voltando à vaca fria. Dom Domingos Carrêrot foi nomeado Superior de Conceição, no lugar de Frei Gil Villanova. E na quadra de 1909, Conceição do Araguaia foi sacudida de pavor com a chegada do coronelão de Grajaú, Leão Leda, na frente de um bando de jagunço, armado até os dentes. Ele tinha a intenção de apossar-se da cidade e tornar-se o maioral, o manda-chuva. Em Boa Vista havia sido expulso pelo rifle de Padre João, com seus brogúncios e cacundeiros. Já em Conceição chegou como um satanás pregando quaresma, fazendo desordens, saqueando e maltratando o povo. Escolheu para morar o sobrado de Pedro Solino, seu parente. Aí instalou sua fortaleza em armas e jagunços. Mas a vida é como um dado, tem seus pontos marcados. Pensou e repensou o seu viver. E chegou ao balaio das conclusões amargas: rico é como rosário, quando se quebra, só caem contas e humilhações. E um homem de sua estatura não podia ficar de cuia na mão, esmolando. E como desgraça chama desgraça, resolveu mandar os seus jagunços arrebanhar gado na região, pra formar uma grande fazenda. Os fazendeiros, alvoroçados com aquela brutalidade sem cabimento, vinham a sua pessoa, trazendo nas caronas os pedaços de couros que continham suas marcas e pediam ao tutanqueba, humildemente: - Coronel Leão Leda, venho apelar pra sua justiça: poupe o meu gado, que me custou muito sacrifício... (LIMA, 2001, p.75)

O Coronel, na sua maior naturalidade, passava a mão pela barbaça ruiva e arregalava os seus olhos claros de gavião real, no seu jeitão samongolé, e respondia:

- Não posso abrir precedentes. Quem não quer ser ajudado, não aceita conselhos. Mas faz de conta que seu gado morreu de seca. Prejuízo pouco é lucro. Assim tudo fica na santa paz, e a minha fazenda batendo chifres!..

E abria-se numa gargalhada zombeteira. O coitado, tremendo de medo, azeitava as canelas, batendo os calcanhares na bunda. (...) E como é porcada ruim que suja vereda, os grande da terra não aguentaram mais, e resolveram limpar a vereda, a ferro e fogo. E na calada da noite, promoveram uma reunião secreta. E ali, no cochicho de rosário, Cipaúba, Zeca Mourão e os padres tomaram uma corajosa decisão: mandaram chamar a caboclada do sertão para salvar Conceição. Mil e duzentos homens atenderam o apelo dos padres. Todos queriam pegar pegar no pau-furado, para combater o macoteiro e seus paus-de-sebo. (LIMA, 2001, p.76).

O Coronelão de Grajaú, que não era besta, farejou nas abas do vento o perigo. E sem tardança refugiou-se como um peba, com a jagunçada no sobrado. Encurralado, acuado na sua loca, não fez de rogado: mandou bala! E a caboclada, como bando furioso de porcoqueixada em roça de milho, repica o papo-amarelo e a garruchona de fogo-central. Os pispissius das balas zuniam quebrando telhas e rancando caboco das paredes do sobrado. O fumaceiro fechou-se, em serração de pé de serra. Os papocos retumbavam como trovões raivosos. O fogo nutrido durou dois dias e três noites. O coronel, desesperado, lamentava-se da sua atitude suicida, de ter se refugiado no sobrado. Alimento, água e munição, se acabando. Jagunços mortos e começando a feder eram sepultados às pressas em covas improvisadas no interior do casarão, debaixo de chuva de balas. A caboclada, lá fora, encharcados na pinga com pólvora, ameaçava invadir o sobrado e tocar fogo. E gritavam provocantes: - A minha lambedeira está afiada pra abrir o bucho do coronel e castrar os seus paus-mandados! (...) (LIMA, 2001, pp.76-77)

Na passagem mencionada, a memória da personagem acentua a questão da política, com o coronelismo e suas características. A violência presente na narrativa, a questão do poder de armas e de coerção sobre homens por partes dos coronéis, são figurados de forma que não se sabe onde é ficção imaginativa e onde é história propriamente dita.

Por vezes, parece que o escritor, na narrativa de Serra dos Pilões, “mescla” aspectos de outros processos históricos ocorridos na época:

O coronel sentiu-se um morto-vivo, com o fim se aproximando. Mergulhou no fundo de sua alma, que chorava copiosamente. E reviveu o seu passado de glória. Era neto do bandeirante paulista Silva Moreira, de sangue limpo, sem mestiçagem. Um homem honrado e de prestígio na sua terra, com suas doze fazendas cheias de gado, batendo chifres. Tinha vindo do império, das hostes monarquistas. Foi homem forte do partido dos bem-te-vis, depois liberal. Chefão sertanejo, que lutou com bravura nos altos sertões maranhenses. Lembrou, naquela hora amarga, da sua mula esquipadeira, da luta sangrenta de Serra da Cinta, onde morreram cento e vinte e seis jagunços. Não suportou mais a violência. E suas fazendas foram saquiadas, queimadas pelos inimigos. Foi obrigado a abandonar tudo. Era de sangue limpo. Um puro, que sonhou construir um Estado livre e independente, de Boa Vista até Pastos Bons. E veio atrás deste sonho. E agora? Era um miserável. (...)

Ao clarear da manhã, apareceu no telhado do sobrado um pano branco na ponte de um rifle, dando sinal de rendição. O Coronel Leão Leda dava o pescoço à forca. Pedia cabungo. (LIMA, 2001, p.77).

A história na memória da personagem Cachoeira, nessa contação de causo, representa dados históricos e contidos neles a política, para depois fazer a construção artística, figurando o barulho dos tiros, o desespero das vítimas, dando vida à trama de violência.

Na contação de causo, percebe-se aspectos da sociedade, peculiaridades, que muitas vezes, são contadas em meio a acontecimentos extraordinários; deixa escapar tais características como a alimentação, a interpretação do processo histórico da época que permeia a memória dos mais velhos, como podemos perceber nestas passagens do capítulo 20:

[...]

-É a vingança de Pedro Afonso, sêo Januário!

- Não me conformo, a gente vive nesse mundão, isolados, como bugre, cuidando da nossa obrigação, e essa capetada aparece para bulir com as nossas coisas. O governo tem de mandar a polícia em riba dessa jagunçada e acabar com os tutanquebas do sertão.

- Concordo com seu palavreado. Mas a lei aqui é outra, é a do punhal e do rifle. Não temos como escapar, ou corremos pro mato ou enfrentamos os cabras. [...] (LIMA, 2001, p.120).

[...] E afundam pra dentro do rancho. Tião Rapadura chama a mulher:

- Bote mais toucinho no feijão, que o véio Januário vai almoçar!...

O septuagenário ancião, atendendo recomendações de seu hospedeiro, afasta-se um pouco do limiar da porta, devido aos borrifos da chuva, e cospe de lado um esguincho grosso, mesclado de fumo triturado, (...) O ancião, airoso, pigarreia e, passando as costas da mão pela boca, solta a prosa rica e farta do sertão: - A chuva, Tião, que cai aí fora, me traz muitas recordações. (...) E o meu pai, naquela fala mansa, ia debrulhando as histórias dos antigos, dos primeiros moradores da região que hoje é Pedro Afonso, e falava assim:

- Eu conto essas histórias é pra ocês contar aos seus filhos, e esses aos netos, bisnetos, e fazer justiça aos homens que desbravaram esse sertão bruto.

O maior deles foi o velho Caetano Tavares da Silva, que veio de Pernambuco e deu com os costados na fazenda Testa Branca, (...) [...] As autoridades, lá de cima, ficaram com os queixos caídos, com tamanha audácia e coragem de Caetano Tavares da Silva.

O padre Rafael de Taggia, comovido pela fé e bondade de Caetano Tavares, resolveu acompanhá-lo na volta, para ajudá-lo no desbravamento dessa região. (LIMA, 2001, pp. 121, 123).

São histórias que surgiram, como diz o próprio Moura Lima, das

“vivências em família, das andanças pelo norte de Goiás”, fala esta que Stella Leonardos transformou em rapsódia e consta na contracapa de Serra dos Pilões:

- Cantai, mestre Moura Lima: como nasceu vosso livro tão de força e sertão vero? - Senhora, nasci na era dos carros de boi, e ali, na labuta do dia-a-dia,

batendo aqueles rincões, fui candeeiro de meu pai, Por esbrugados caminhos e baixadões.

- E a linguagem vossa, viva, que nos vem tão forte assim?

De onde vem? De onde a pujança?

- Ah moça, vem das andanças. Vem do norte de Goiás, pelos trilheiros vem vindo ou no lombo dos matungos ou nas canoas do rio - O Tocantins.

- E as cores do populário?

E o místico sincretismo?

E o flagelo dos jagunços?

E o coração sertanejo?

- Das notas reais de outros tempos. - Só sei que o romance vosso, só sei que o talento vosso são mais que ficção e História.

Em nós rapsodos se tornam, rapsodiar inesquecível, regionalista rapsódia. (LIMA, 2001, contracapa da 3º edição).

O escritor ouviu histórias que vieram da memória dos seus avós e que ele figura na memória das personagens, as quais relatam memórias de seus familiares. Camadas de memórias, que faz de Serra dos Pilões um arquivo de memórias do norte de Goiás, do começo do século XX.

3.3. Serra dos Pilões: um “Arquivo” de Memória

No primeiro estudo do romance Serra dos Pilões, já tínhamos construído a ideia de livro-arquivo sobre a literatura de Moura Lima. O ataque destruiu o arquivo público da cidade. A passagem está no capítulo dezoito e demonstra a instauração de uma ruptura simbólica com a ordem social, com a memória e com a identidade no Norte de Goiás. Um personagem típico, do contexto da época é assim apresentado ao leitor por Moura Lima:

O arrieiro-mestre, Zé Queixada, um preto luzido da cor de cororô de fundo de panela, cuida de seu ofício com zelo. É um mulandeiro sarado pelo sol e pela poeira das estradas, que andara de Pedro Afonso aos sertões da Bahia. [...] Não descuida de seu ofício. Verifica pessoalmente o lombo da burrada e manda curar pisaduras de espinhaços macerados. [...] São cuidados necessários, em razão da longa viagem por aquele sertão bruto do Jalapão, onde os moradores se distanciam em leguonas puxadas. [...] gosta de ver as cangalhas arrumadas e em ordem com os SUADOUROS pro ar e a tropa peada.

(LIMA, 2001, p.109).

A personagem acima citada faz parte dos habitantes da região do norte de Goiás. São pessoas “batalhadoras” e que conservam os princípios do sertão. Zé Queixada, como todas as outras personagens “do bem”, na trama, representam o povo nortense. O que incomodava de fato esse tropeiro era o seu nome de registro, o que fica explícito na passagem seguinte, num momento em que Zé Queixada reflete sobre o nome que seus pais escolheram para ele:

[...] olha para dentro de si e sente a sua mágoa, que o acompanha pela vida afora. É um desgosto à toa. Mas machuca e o deixa de calundu. Tudo é por causa do seu nome de batismo, José Putêncio. E pensa: - “que nome horrível e sem modo, com que minha mãe me batizou!”.

Pai não conhece e a mãe, morta há anos, parentes não os tem. (LIMA, 2001, p.109).

Porém, com a tragédia em Pedro Afonso, veio a solução deste problema na vida de Zé Queixada: a queima dos arquivos.

-“E lá estavam os jagunços de Abílio Batata, enfurecidos como marimbondos, por cima das casas, quebrando os telhados com a coronha dos rifles e atirando no pessoal escondido nos quartos. E no meio da rua plantaram uma fogueira, alimentada com os papéis da prefeitura, os livros e documentos dos cartórios”.

E dizendo consigo, exclama:

-Sim, aí está a solução, na fogueira de Pedro Afonso, que destruiu tudo. Livros de registros, documentos, nada ficou, virou cinzas... E bate no peito:

-Agora não tenho mais nome registrado, posso escolher outro. E dando corda ao pensamento, lembra-se do nome daquele tropeiro da Bahia –João Zumba Canindé. Sim, passará a chamar-se –João Zumba Canindé, nada mais de Putêncio. Dali pra frente tirará a cruz de seu ombro. Irá registrar-se em outra cidade. E sorri. [...] (LIMA, 2001, p.110).

O fim desses documentos, entendemos aqui, como uma metáfora de ruptura com a ordem “goiana”. A destruição simbólica de toda essa ordem leva o personagem a escolher outro nome, o nome que quisesse. A nova ordem, o novo nome do “nortense”, é instituída simbolicamente através dessa passagem de Serra dos Pilões.

A satisfação de Zé Queixada com a queima do arquivo revela implicitamente a discordância que se tinha com todo o aparato institucional, que como sabemos, provinha do Estado de Goiás. Ele pode ter outro nome:

[...] Não mais passaria outro vexame como aquele do Zé Baiano. Fazendo Serração na porta de seu rancho, e gritando seu nome. E outra vez as suas neuroses vêm a furo, de-com-força, trazendo-lhe do fundo do passado a cena ao vivo:

[...] E num repente começou a serração de pedaços de paus e chifres. E os participantes da furupa emitiam urros de jumentos, cocoricar de galos, assobios e vozes no deboche:

-Larga dessa boseira, Putêncio duma figa!

Outra voz:

-Sai de cima dessa branca, Putêncio sem – vergonha! Toco de cachorro mijado!

Uma voz fanhosa sapecava:

-Putêncio catingudo, fedorento da peste!

E lá dentro do rancho, ele não agüentou o avacalhamento e abriu a janela, de garrucha escanchada nos baderneiros. O fuzuê cessou, e o grupo saiu na gargalhada, correndo, no rumo do rio do Sono. (LIMA, 2001, p.110-111).

A lembrança que ele possui do acontecido o deixa bem consciente que a queima do arquivo foi algo bom para sua vida. Percebemos, também, um aspecto importante da literatura regional, no caso aqui abordado: a colocação da violência praticada por tais sertanejos como algo plausível e necessário. A violência “do bem”, se é que se pode assim chamar, pois estavam defendendo o seu povo, seus princípios e território.

Para compreender a metáfora da queima do arquivo nos remetemos a Jacques Derrida (2001, p.7-16), para quem é preciso entender primeiro o que significa a própria palavra “arquivo”:

Arquê, lembremos, designa ao mesmo tempo começo e comando. [...] o princípio da lei ali onde os homens e os deuses comandam, ali onde se exerce a autoridade, a ordem social, nesse lugar a partir do qual a ordem é dada [...]. DERRIDA, 2001, p.11).

O arquivo é aqui entendido, simbolicamente como mais um dos instrumentos da ordem social estabelecida. A sua existência é de fundamental importância, e isso é percebido com o seu histórico, desde a sua origem e ao longo dos tempos:

[...] o sentido de “arquivo”, seu único sentido, vem para ele do arkheîon grego: inicialmente uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandavam [...] Depositados sob a guarda desses arcontes, estes documentos diziam, de fato, a lei: eles evocavam a lei e convocavam à lei. (DERRIDA, 2001, p.12-13).

Essa tradição que cerca a própria origem da palavra arquivo, o tornou, ao longo do tempo, símbolo do poder e da ordem estabelecida. Então, como um representante dessa “ordem”, da “lei”, o faz de certa forma, legitimador dessa legalidade pública.

Ao significar “começo” e “comando”, entende-se que o arquivo pode representar também a “origem” e em consequência, a identidade de um povo. Afinal, ali está memorizado os acontecimentos sociais mais importantes na vida de uma comunidade. Desde o nascimento com os “livros de registros”, nos casamentos, com a “certidão de casamento”, e no fim, com a “certidão de óbito”, dentre outros rituais que regem a vida social. Esses “documentos” dos quais fala Zé Queixada, estão presentes guardando a “ordem” e zelando pelo cumprimento das leis.

Ao ser apagado tais registros, fica o lugar para uma “nova ordem” ser estabelecida. É isso que alegra a personagem do livro, ao saber que na nova ordem, as coisas serão diferentes, ele pode até escolher o nome que quiser. E é esse o objetivo que Serra dos Pilões se propõe: ser um lugar de memória, para contribuir com a legitimação dos princípios que os idealizadores do novo Estado acreditam.

Destruído o “Arquivo”, é possível estabelecer outra ordem social, instaurar outras memórias, sob outros começos e identidades. Nesse sentido, o próprio livro se torna ele mesmo substituto do arquivo que destruiu, pois se constrói como o “lugar” onde estaria reunido os outros documentos e histórias do Norte de Goiás. Esses documentos estão na voz dos personagens, nas narrativas “orais” que contam, na história do Norte que eles transmitem a outros personagens e que não foi destruída pelo incêndio.

Portanto, como primeiro romance tocantinense, Serra dos pilões se coloca como arquivo, lugar onde se poderiam encontrar os documentos da memória nortense que não foram destruídos na comarca de Pedro Afonso. Ele, na verdade, se inventa como lugar de memória. Nas palavras de Derrida (2001), como lugar onde nasce a ordem social, no caso, a ordem simbólica instaurada com a emancipação do Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em termos pessoais, a experiência vivida na realização desta pesquisa é única, já que durante o caminho recorrido tive muitos aprendizados, sobretudo na construção interdisciplinar, no diálogo com a literatura e a geografia para a construção do trabalho. A luta para compreender um pouco mais sobre a história regional, mais especificamente a história do Tocantins, me fez percorrer os caminhos da teoria literária, conceitos da geografia, conhecimentos que nos levam a outros questionamentos sobre as lutas sociais que fazem parte da nossa sociedade. Destaca-se que a construção da análise da narrativa do escritor Moura Lima se considera a imersão do autor na estrutura de sentidos/sentimentos (WILLIAMS, 1979) de sua sociedade.

Na primeira parte do trabalho, reflete-se sobre a natureza da história e da literatura e o trato de ambas com seu objeto “sociedade humana”. Para tanto, consideram-se as proposições de estudiosos sobre o tema como Hayden White (1992, 1994) e Northrop Frye (1957). A partir do diálogo entre a teoria literária e a história, afirma-se que história e literatura têm muitos aspectos em comum. Como afirma Hayden White (1994), ambas se caracterizam por sua estrutura poética, que para Aristóteles (384-322 a. C), seria a imitação da realidade e a forma é mítica, pois essa representação é feita “[...] em função de categorias culturalmente fornecidas, [...]” (WHITE, 1994, p.102). A percepção deste estudo sobre a obra Serra dos Pilões revela tal proposição do autor, pois a temática da obra é um processo histórico que ocorreu na década de 1910, no então norte de Goiás, que foi a disputa entre jagunços articulados com coronéis, os quais eram sujeitos hegemônicos naquela sociedade. O processo que foi o ataque à Vila de Pedro Afonso e a posterior vingança pelas terras do Jalapão é figurado pelo escritor Moura Lima de forma épica, e tem em sua liderança duas personagens: Cipriano Rodrigues e Capitão Labareda.

Percebe-se, nesta pesquisa, que a construção dos heróis na obra de Moura Lima aproxima-se, em certa medida, do herói trágico apontado por Aristóteles (384-322 a. C. e Frye (1957). Por tais indicativos, afirmamos que a estrutura do romance Serra dos Pilões é metafórica, ou melhor, é uma metáfora territorial.

No segundo capítulo, apontam-se passagens no texto, as quais revelam os elementos na obra constituidores da metáfora territorial: a apropriação por parte do escritor da linguagem dos sertanejos que são as formas simples, a construção da paisagem da região do Jalapão e as vivências do sertão. Construímos uma ideia da metáfora do herói fundador, Cipriano, e do herói épico, Capitão Labareda, com as raízes rizomáticas.

Na última parte do trabalho, constrói-se a ideia de construção de territorialidades na ficção imaginativa de Moura Lima. Através da análise de passagens da figuração de costumes; da representação histórica e política na figuração da obra; e da análise de passagens em que percebemos Serra dos Pilões como um “arquivo” de memória.

Logo, acredito que esta pesquisa possa contribuir com os estudos de história e literatura sobre o estado do Tocantins e pode ajudar no despertar de novos questionamentos sobre as lutas sociais em torno da emancipação do estado, a construção política e social da estrutura de sentidos que envolve sujeitos hegemônicos que têm poder discurso, como é o caso do escritor Moura Lima. Acrescenta-se, ainda, o fato de a literatura ser ela mesma um veículo de discurso poderoso, “instituidor”, como afirma Maingueneau (2006), por isso, uma instituição importante na sociedade que produz um artefato cultural que contém as mais diversificadas experiências humanas: o livro.

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APÊNDICE I - GLOSSÁRIO DO ROMANCE SERRA DOS PILÕES JAGUNÇOS E TROPEIROS DAS PALAVRAS DA LINGUAGEM DO SERTÃO UTILIZADAS NO LIVRO (MOURA LIMA, 2001, p. 229-233)

Glossário

A

ABOIAR – (v. i.). Cantar ao gado, guiar, chamar ou acalmar o gado com canto monótono e triste.

ABOLETAR – (v. i.). Acomodar-se, alojar-se, instalar-se.

ABRIR O PALA NO MUNDO – (loc. Verb.) –Fugir, correr.

AFUAZADO – (adj.). Zangado, irritado.

ALFORJE – Saco de couro para conduzir provisões de mantimentos na viagem, é conduzido na sela.

ANTÃO – (adv.). Forma popular e antiga de então.

APANHAR COMO BOI LADRÃO – Loc. Verbal. Levar grande sova.

ARRIBADO – (s.m. e adj.) – Boi bravio, diz-se do animal que se perdeu, fujão, desguaritado.

AZOUGADO. Buliçoso, irrequieto, esperto.

B

BACORINHO – Diminutivo de bácoro (leitão) porco novo.

BEROBA – Égua velha. Eufemismo semelhante a biroba, brivana.

BANGUÊ – Rede guarnecida num cambão para transportar nos ombros cadáver ou doente.

BANGALAFUMENGA – Diz-se da pessoa inexpressiva, um joãoninguém.

BARBATÃO – Diz-se do touro não assinalado, que foi criado no campo, longe das vistas do vaqueiro.

BARRUAR – (ou embarruar). Diz-se do cachorro quando alcança e enfrenta a caça. Geralmente o cão emite, como que um código, dois latidos sucessivos rápidos e grossos.

BATER A PACUERA – (loc. Verba.). Morrer.

BIBIANO – Lamparina

BOA SORTE – Hoje município de Lizarda.

BOCÓ – Capanga de couro. Brasileirismo, tolo, pateta.

BOGÓ – Odre de couro para conduzir munição e pequenos objetos de uso pessoal.

BOIECO – (s.m.). Boi pequeno, novilho entre ano e meio e dois anos.

BRINQUITAR – (v. i.). Lidar (com algum serviço).

BROBODÓ – Diz-se da fala atrapalhada.

BRUACA – (s.f.). Mala de couro cru, para transportes de mercadorias e outros objetos sobre cavalgadura (cangalha).

BUNDÃO – Jagunço, bandido (1901, norte de Goiás)

C

CABORJEIRO – (s.m.). Feiticeiro, mandingueiro.

CABROEIRA – Conjunto de cabras (jagunços).

CABUNGO – Pinico

CACEBA – Traste, trambolho...

CACUNDEIRO – Jagunço, capanga, pau-mandado.

CAFIOTO – Macumbeiro, feiticeiro.

CAGÃO – Medroso, moleirão.

CAIONGO – Envelhecido, debilitado.

CANGOLETÊ – Desmaio, chilique, sapituca.

CANGORÇA – Mulher velha e feia.

CAPADÓCIO – Indivíduo à-toa, vagabundo, desclassificado.

CAPUÃO – Mato crescido no meio do campo, o mesmo que capão.

CAPURREIRO – Caipira, sertanejo, capiau.

CARNEAR – (v.t.). Esfolar, matar e esquartejar (bois).

CAROÇA – Capa de palha de buriti. Quando usada é presa ao pescoço por embira, caindo pelos ombros até os joelhos.

CHUPITILHA – Bebedeira, embriaquez.

CURRAL – DAS – ÉGUAS – Bordel. Puteiro. Zona do meretrício.

D

DAR A QUEBRA – O mesmo que dar a mucica. Dar um puxão na cauda da rês para derrubá-la.

DESMANCHA – No sertão do Norte de Goiás, chama-se desmancha ação de transformar a mandioca em farinha.

DESOBRIGA – (s.f.). Giro que o padra faz pelo sertão. Missões.

DESPROPÓSITO – Quantidade enorme, fora do comum.

DIACHO – Desgrama. Desgraça.

DOR NAS CRUZES – O mesmo que dor nos quadris ou nas cadeiras.

E

EMBELEGO – Embeleco, chamego, xodó.

EMBURRADO – Lugar pedregoso.

ERADO – Diz-se do animal adulto.

ESCÁPULA – Gancho de armar rede.

ESCOTEIRO – Sozinho. Peão quando viaja a cavalo sem a comitiva ou tropa.

F

FERRA – (s.f.). Ato de assinalar com o ferro em brasa. Época durante a qual se ferra o gado.

FOGOIÓ – Pessoa mestiça, branca, cabelo de fogo, sardenta, loira.

FORNIDO – (adj.). Robusto, carnudo, nutrido.

FORROBODÓ – Dança, arrasta-pé. Farra.

FORTUM – Cheiro desagradável, fedor.

FUZUÊ – Tumulto, confusão.

G

GABARRO – (s.m.). Frieira. Ulceração infecta e malcheirosa entre os cascos dos animais, em consequência de febre aftosa.

GAITADA – Risada alta, prolongada.

GIBÃO – (s.m.). Casaco de couro usado pelos vaqueiros, também chamada véstia.

GUEGUÉ – Cachorro pequeno, vira-lata, sem raça definida.

GUNGUNAR – Resmungar.

GURUNGA – (s.m.). Terreno muito acidentado, com subidas e descidas íngremes.

I

IPUEIRA – (s.f.). Charco ou lagoeiro formado pelo transbordamento dos rios em lugares baixos.

J

JACUBA – (s.f.). Refresco ou pirão preparado com água, farinha de mandioca, açúcar ou rapadura.

JAGUNÇAMA – Conjunto de jagunços.

JEREBA – (s.f.). Sela de má qualidade; arreios usados por peões humildes.

JIRIBANDA – (s.f.). Descompostura.

L

LAPIANA – Faca muito comprida, e bem afiada.

LESEIRA – Apalermado, tolo, idiota.

M

MACHEANDO – Do verbo machear. Tem acepção de casalar, ter coito, (N. de Goiás).

MACUTA – Capanga, embornal, malá.

MAGOTE – Ajuntamento, de pessoas, animais ou coisas, o mesmo que bando.

MALDAR – Suspeitar.

MANDINGA – Bruxaria, feitiçaria.

MARROXO – Sobejo, resto, refugo.

MATOLÃO – Alforje de couro em que os sertanejos conduzem seus pertences, em viagem.

MATURRANGAS – Manhas, astúcias, tramoias.

METER O PÉ NO FOJO – Cair na armadilha, perder-se, entregar-se à sanha do inimigo.

MONGOLÃO – Espécie de biscoito de polvilho.

MOUCO – Criaturas abobalhadas, entendendo e se fazendo entender por mímica.

MOURÃO – Estaca robusta, que dá sustentação às cancelas.

MUCICA – O mesmo que dar a quebra.

MUCUFA – Ordinário.

MUCURANGA – Piolho de rede e de cama

N

NÃO DAR UM CALDO – Não resistir ao primeiro ataque.

NÃO MENTIR FOGO – Não falhar.

O

ÔPA – (Interj.). O mesmo que ôba.

OXENTE – Interjeição popular. Exprime surpresa, espanto.

P

PABULAGEM – Pedantismo. Contar vantagem. Ficar prosa. Assumir ar de superioridade no falar.

PAI-DE-CHIQUEIRO – Diz-se do bode reprodutor PANZUÁ – Indivíduo corpolento, gordalhão.

PAPO – AMARELO – (s.f.). Carabina Winchester, de calibre quarenta e quatro, com uma placa de metal amarelo (donde o nome) na parte inferior da culatra, perto do guarda-mato.

PATRONA – (s.f.). Bolsa de couro dos sertanejos.

PATUÁ – (s.m.)> Breve, relicário, envoltório que se faz ao pescoço para proteção.

PAU-DE-AMARRAR-ÉGUA – Indivíduo que não tem força moral, que não impõe respeito.

PAU-DE-FOGO – Revólver, espingarda, arma de fogo.

PEAR EMA – Mentir.

PEBADO – Frustrado.

PÊLO - DE – RATO – (adj.). Diz-se do animal (muar ou cavalo) que tem cor pardo-escuro.

PEJADA – Cheia, carregada, repleta.

PENTAGRAMA – Figura geométrica plana, de forma estelar, de cinco lados ou ângulos. Famoso símbolo das artes mágicas, do exorcismo. De vértice para cima, simboliza a vida em evolução; de vértice para baixo, é a vida em revolução.

PIABANHA – Hoje Município de Tocantínia – TO.

PINDONGUEIRA – (adj.). Diz-se da mulher rueira, que não pára em casa.

PISADEIRA – Diz a crendice no Norte de Goiás, se após um farto jantar o indivíduo deitar de barriga pra cima, a Pisadeira vem e senta na barriga e é, aquela agonia. Em outras regiões diz-se Pesadeira. Mas se o indivíduo conseguir pegar a toca vermelha dessa encantada feiticeira, fica rico, muito rico!

POSITIVO – (s.m.). Portador, mensageiro.

Q

QUEIMAR – Mentir.

QUENGA – (s.f.). Meretriz.

QUICÉ – Faca pequena velha.

R

RECABEDAR – Verbo antigo, casar com, receber por esposa.

RESTILO – (s.m.). Aguardente, cachaça.

RETACO – (adj). Baixo, pequeno.

S

SARADO – Formidável, admirável.

SEMBEREBA – Refresco, feito do coco de buriti, de bacaba, adoçado com rapadura.

SÔ – (s.m). O mesmo que seu, siô, sor, seo, formas reduzidas e alteradas de senhor.

SOBROSO – Medo, receio, temor.

SOPRAR GARRAFA – (loc. Verb.). A parturiente sopra em uma garrafa, a fim de, com o esforço, tornar o parto mais fácil, e, depois, para que a placenta saia logo.

SUJIGADO – (adv.). Subjugado, dominado.

SUJO – Capeta.

SURRÃO – (s.m.). Saco de couro que resguarda da chuva os objetos (Sobretudo cereais).

SUVETE – Salário, sustento para sobrevivência.

T

TAFUIAR – Enfiar.

TANGORUMANGO – Feitiço, mandinga, qualquer acontecimento sobrenatural.

TAPUIRANA – Grande e resistente rede de dormir tecida em tear, formando uma só peça.

TERÉNS – (s.m.). Pl. Objetos de uso doméstico, móveis, trastes.

TESTARRUDO – Testaçudo, cabeçudo, obstinado.

TIPITI – Do tupy: Typity. Prensa, expremedor tubular e elástico de buriti, servindo para espremer a massa de mandioca ralado. Também chamado de Tapiti e Jibóia, em outras regiões do Tocantins.

TRESVELHORRO – Muito velho. Idade avançada.

TUCURA – Curralheiro, pé-duro. Espécie de gado bovino de qualidade inferior ou de raça pouco apurada, de reduzido valor comercial.

TUTANQUEBA – Mandão, valentão, mandachuva.

U

URUCUBACA – Azar, má sorte.

V

VIRAR ALCANFOR – (loc. Verb). Sumir, desapare-cer.

X

XIBIU – (s.m.). Diamante pequeno.

Z

ZANGO – (adj.). Zonzo, tonto.

ZARANZO – (adj.) Pertubado, adoidado.

ZERÊ – (adj.). Zarolho.

APÊNDICE II - ROTEIRO DOS JAGUNÇOS

30 Fonte: LIMA, Moura. Serra dos Pilões – Jagunços e Tropeiros. 3 ed, Gurupi: Cometa, 2001.

APÊNDICE III - CAPA DAS FONTES UTILIZADAS