A TANAJURA E NOSSAS VIDAS NO HOJE
A TANAJURA E NOSSAS VIDAS NO HOJE
Foram tempos de sêca inclemente, mas entremeada de breves precipitações pluviométricas, onde a vida humana e social vicejava num tom bem natural, onde as cores eram fótons e não melaninas brotadas de misturas em carotes ou tonéis, para satisfação das telas midiáticas dos templos pós modernos.
Foi vivendo nessa transição, entre o antigo e o moderno, mas ainda carregando meus cadernos, já que digitar não era algo tangível ou até imaginário nos idos em que vivi, pois o que tínhamos eram lápis e canetas, máquinas de datilografia, telégrafos, mimeógrafos ou salas de teatro e cinema, os coretos e púlpitos dos templos religiosos, que eu fui tecendo o meu linho e o meu casaco cultural.
Meu casulo foi um pacto, entre a história de um mundo nem sempre tão humanizado e a necessidade extrema de buscar sobreviver, em que a Mata Atlântica e a caatinga se misturavam com a Mata de Cipó, permeada pelas licuriobas, juás, umbuzeiros, gameleiras, barrigudas, ipês ou pau-ferros, para não falar de toda flora, e adentrávamos até nos cafezais e cacauais, colhendo jacas e jenipapos, sapotis dentro do mato, sem se importar com os sapos e lagartixas, ou até as amigas da peçonha, pois as jararacas e cascavéis são predominantes nos caminhos e picadas dentro do mato.
E o mundo ainda se via, pelo menos na Bahia, em que a sêca tudo ardia, num calor tão inclemente, já que os tempos eram muito diferentes do que hoje é o nosso lar.
Não tinhamos quase nada e até nosso colchão era um grande saco, costurado com retalhos, sendo todo recheado com capim sêco. Ele ficava sobre estrados e camas de campanha, ou até sobre as esteiras de agave ou taboa, permitindo algum conforto ao distendermos nossos corpos em busca de descanso.
A água que utilizávamos vinha de lagoas, cacimbas, cisternas, poços, açudes ou até córregos e riachos, quando escapavamos da sêca, adentrando nas terras de cana, mandioca e cacau.
Fomos forjados no fogo e no vento, como o carvão ou as rochas calcárias, não tendo estrutura sanitária ou de água potável tratada. Eventualmente as casas tinham fossas sanitárias, mas em quase todas elas o que prevalecia eram pequenas fossas nos quintais das casas, onde se tinha uma casinha de madeira para o uso, quando a vontade apertava. Muitas casas eram de taipas.
Viemos a conhecer a TV há pouco tempo atrás, pois o costume das novelas vinha pelo rádio. E elas chegaram em preto e branco. As TVs coloridas vieram mais tarde, sendo exclusivas da nobreza, num primeiro momento.
Lembro que na virada das décadas 60/70, do século XX, as refeições de merenda eram pão com mortadela ou carne moída, os sucos eram garapa de frutas, com água e açúcar. Os refrigerantes e demais guloseimas industrializadas eram muito caras e inacessíveis para a maioria do povo.
Não haviam galináceos de granja ou demais aves em abundância. Comíamos galinhas caipiras, perus de quintal e até a carne bovina não vinha de abatedouros controlados, sendo o gado abatido de modo artesanal e no mato. Se consumia muitos animais da fauna silvestre, sem qualquer restrição ambiental, muito embora esse costume viesse não só de um passado longínquo, mas também era decorrente da pobreza extrema que atingia a quase todos, no Nordeste brasileiro e em quase todos recantos do País.
E a tanajura foi um marco na minha infância, pois me lembro das ladainhas populares que diziam: "cai, cai, tanajura, na panela da gordura!". E não só se comia as bundas fritas das tanajuras, mas as crianças brincavam de espetar as tanajuras com palitos ou varinhas para vê-las baterem as asas.
Foi uma infância entremeada pela criatividade evidente e necessária, pois tínhamos que fabricar nossos próprios brinquedos e inventar nossas brincadeiras, virando artífices da nossa própria felicidade.
Não havia liberdade, pois ainda éramos o que não percebíamos: onde a escravidão é nosso principal estigma. Muito embora ainda padeçamos desse mal sinistro e camuflado, pois não é oficialmente reconhecido, e hoje vemos que essa almejada liberdade é ofendida diariamente, quando não temos acesso facilitado às benesses do avanço tecnológico e industrial, seja pela ganância das elites ou pelo achaque cultural e educacional, que discrimina e desnivela a capacidade de competição social.
O problema que hoje enxergo é perceber que a felicidade do povo está sendo aviltada pelo gargalo socioeconômico vigente, cada vez mais encastelando uma minoria abastada e favelizando o restante do povo, que é controlado por ideologias políticas, socioeconômicas e religiosas, que recriam a miséria, sem que as suas vítimas o percebam, aceitando essa tortura de modo natural e até divino.
Aí é que me vejo, diante de um passado meio tanajura, com a vida em corda bamba, tendo o meu entorno social totalmente contaminado pelas idéias e ideais de poucos, que não amam os muitos, mas os querem para a consecução de suas felicidades pútrefas, me deixando a questionar as nossas vidas no hoje, em que decantam um ontem que nunca entendemos, mas que fabulizamos como bom. E vejo a grande necessidade de deixarmos de "viver espetando bundas de tanajuras", mesmo que filosoficamente, pois temos que avançar como seres sociais que somos, vivenciando a nossa capacidade neural de modo a buscar interagir com o planeta e conosco mesmos, em busca de um novo paradigma para o que seja realmente idealizado como felicidade.
Publicado no Facebook em 29/12/2019
A TANAJURA E NOSSAS VIDAS NO HOJE
Foram tempos de sêca inclemente, mas entremeada de breves precipitações pluviométricas, onde a vida humana e social vicejava num tom bem natural, onde as cores eram fótons e não melaninas brotadas de misturas em carotes ou tonéis, para satisfação das telas midiáticas dos templos pós modernos.
Foi vivendo nessa transição, entre o antigo e o moderno, mas ainda carregando meus cadernos, já que digitar não era algo tangível ou até imaginário nos idos em que vivi, pois o que tínhamos eram lápis e canetas, máquinas de datilografia, telégrafos, mimeógrafos ou salas de teatro e cinema, os coretos e púlpitos dos templos religiosos, que eu fui tecendo o meu linho e o meu casaco cultural.
Meu casulo foi um pacto, entre a história de um mundo nem sempre tão humanizado e a necessidade extrema de buscar sobreviver, em que a Mata Atlântica e a caatinga se misturavam com a Mata de Cipó, permeada pelas licuriobas, juás, umbuzeiros, gameleiras, barrigudas, ipês ou pau-ferros, para não falar de toda flora, e adentrávamos até nos cafezais e cacauais, colhendo jacas e jenipapos, sapotis dentro do mato, sem se importar com os sapos e lagartixas, ou até as amigas da peçonha, pois as jararacas e cascavéis são predominantes nos caminhos e picadas dentro do mato.
E o mundo ainda se via, pelo menos na Bahia, em que a sêca tudo ardia, num calor tão inclemente, já que os tempos eram muito diferentes do que hoje é o nosso lar.
Não tinhamos quase nada e até nosso colchão era um grande saco, costurado com retalhos, sendo todo recheado com capim sêco. Ele ficava sobre estrados e camas de campanha, ou até sobre as esteiras de agave ou taboa, permitindo algum conforto ao distendermos nossos corpos em busca de descanso.
A água que utilizávamos vinha de lagoas, cacimbas, cisternas, poços, açudes ou até córregos e riachos, quando escapavamos da sêca, adentrando nas terras de cana, mandioca e cacau.
Fomos forjados no fogo e no vento, como o carvão ou as rochas calcárias, não tendo estrutura sanitária ou de água potável tratada. Eventualmente as casas tinham fossas sanitárias, mas em quase todas elas o que prevalecia eram pequenas fossas nos quintais das casas, onde se tinha uma casinha de madeira para o uso, quando a vontade apertava. Muitas casas eram de taipas.
Viemos a conhecer a TV há pouco tempo atrás, pois o costume das novelas vinha pelo rádio. E elas chegaram em preto e branco. As TVs coloridas vieram mais tarde, sendo exclusivas da nobreza, num primeiro momento.
Lembro que na virada das décadas 60/70, do século XX, as refeições de merenda eram pão com mortadela ou carne moída, os sucos eram garapa de frutas, com água e açúcar. Os refrigerantes e demais guloseimas industrializadas eram muito caras e inacessíveis para a maioria do povo.
Não haviam galináceos de granja ou demais aves em abundância. Comíamos galinhas caipiras, perus de quintal e até a carne bovina não vinha de abatedouros controlados, sendo o gado abatido de modo artesanal e no mato. Se consumia muitos animais da fauna silvestre, sem qualquer restrição ambiental, muito embora esse costume viesse não só de um passado longínquo, mas também era decorrente da pobreza extrema que atingia a quase todos, no Nordeste brasileiro e em quase todos recantos do País.
E a tanajura foi um marco na minha infância, pois me lembro das ladainhas populares que diziam: "cai, cai, tanajura, na panela da gordura!". E não só se comia as bundas fritas das tanajuras, mas as crianças brincavam de espetar as tanajuras com palitos ou varinhas para vê-las baterem as asas.
Foi uma infância entremeada pela criatividade evidente e necessária, pois tínhamos que fabricar nossos próprios brinquedos e inventar nossas brincadeiras, virando artífices da nossa própria felicidade.
Não havia liberdade, pois ainda éramos o que não percebíamos: onde a escravidão é nosso principal estigma. Muito embora ainda padeçamos desse mal sinistro e camuflado, pois não é oficialmente reconhecido, e hoje vemos que essa almejada liberdade é ofendida diariamente, quando não temos acesso facilitado às benesses do avanço tecnológico e industrial, seja pela ganância das elites ou pelo achaque cultural e educacional, que discrimina e desnivela a capacidade de competição social.
O problema que hoje enxergo é perceber que a felicidade do povo está sendo aviltada pelo gargalo socioeconômico vigente, cada vez mais encastelando uma minoria abastada e favelizando o restante do povo, que é controlado por ideologias políticas, socioeconômicas e religiosas, que recriam a miséria, sem que as suas vítimas o percebam, aceitando essa tortura de modo natural e até divino.
Aí é que me vejo, diante de um passado meio tanajura, com a vida em corda bamba, tendo o meu entorno social totalmente contaminado pelas idéias e ideais de poucos, que não amam os muitos, mas os querem para a consecução de suas felicidades pútrefas, me deixando a questionar as nossas vidas no hoje, em que decantam um ontem que nunca entendemos, mas que fabulizamos como bom. E vejo a grande necessidade de deixarmos de "viver espetando bundas de tanajuras", mesmo que filosoficamente, pois temos que avançar como seres sociais que somos, vivenciando a nossa capacidade neural de modo a buscar interagir com o planeta e conosco mesmos, em busca de um novo paradigma para o que seja realmente idealizado como felicidade.
Publicado no Facebook em 29/12/2019