OS RETALHOS SÃO TREVOS QUE DÃO SORTE AO CAMINHAR

OS RETALHOS SÃO TREVOS QUE DÃO SORTE AO CAMINHAR
 
Os tecidos que vestem as nossas vidas, com o tempo de rasgam, descosturam ou deixam sobras pelos cantos, onde num certo momento impensável ou até premeditado, se rejuntam e se alinhavam para novamente nos vestir. Seja de todos os formatos, todas as cores ou felpudos contatos, eles costuram o nosso caminhar, em trevos nas estradas, nas encruzilhadas, ou em trevos de sorte para nos remeter, como cartas aos ventos, que sutis ou violentos, nos levam para longe ou para onde lhes bem convir.

Hoje lembro da minha infância, diante de longeva parente, que só era feliz quando juntava os retalhos. Retalhos que achava nos atalhos da sua vida, pois andarilha da lida de ser professora, matrona à toa da vida de todos os outros da família, onde fazia questão de mostrar a serventia de tudo o que lhe cabia, costurava retalhos em colchas, cobertas, almofadas e tapetes, os quais adornavam as camas, as salas e até as cozinhas, onde se cozinham também com a junção dos temperos de folhas e ervas, grãos e farelos, cebolas e alhos.

E aí eu pensava, numa juventude que ainda não compreendia, como a chatice de parentes idosos, nos pareciam raivosos soslaios que ardiam nosso couro. Só víamos os reclames como enxames, lembrando os marimbondos e todas as abelhas quando nos ferroavam em defesa do néctar das flores de cones, em que teimávamos buscar prender nossas amigas do mel, apenas pelo prazer de mostrar que éramos ágeis e espertos.

Mas a vida caminha, mesmo que o seja sem termos um escriba Pero Vaz, pois o tempo urge com a sua própria velocidade, e aos poucos também vamos aprendendo que nem todo tecido nos serve inteiros, mas partidos ao meio ou em pequenos retalhos, fazendo as costuras, as dobras, as mangas, bordados ou cangas, florindo as nossas lembranças com os montes embaralhados de cores, que deixaram amores pelos tempos de outrora.

Pois a juventude se vai brevemente, e como toda semente, se rompe e brota, para nos fazer timoneiros dos nossos próprios barcos, ciclistas das nossas próprias rodas, fermento e motor que gerarão novas vidas, entre as quedas, arranhões e feridas, que ganhamos sempre que a subida da nossa escalada encontre terrenos e escarpas sem degraus e corrimões que nos apoiem ou nos impeçam de ralar os nossos joelhos, canelas ou dedos, quebrando as unhas, que não são fortes como as garras das águias, leões ou harpias, que caçam com elas.

E eu retorno aos exemplos dos antigos, de tios e tias, de sangue da família ou ajuntados, pela vizinhança amiga e companheira, que nos curavam as feridas, mesmo quando os muros íamos pular, buscando aquela manga doce ou a goiaba, as carambolas e outras frutas em todas as chácaras que os quintais das casas tinham, e nos deixavam a "curiar", com a curiosidade da pureza e ingenuidade como leveza, como resposta da natureza, que em toda criança é o que há.

E é assim que aprendemos que os passos que nós marcamos nos retalhos, são como trevos que se despetalam, mas mais que azar, nos trazem sorte de termos vivido como os periquitos e os sabiás, que furavam os frutos que achavam no caminho. Mas como todo pássaro ou cachorrinho, voltávamos para casa ou para o ninho, de nossos mães e tias a nos esperar, naqueles fins de tarde para o banho de bacia, tomado junto com todas as crias, pois a fartura não era de ouro ou de dinheiro, mas de carinho bem brejeiro de nossas mães a nos acarinhar.

É desse jeito que aprendemos a caminhar pelas estradas, enfrentando trevos e encruzilhadas, para com nossos próprios passos encontrar as nossas fadas ou magos e mestres para a jornada de nossas vidas perpetrar. E quando a saudade daqueles dias tão singelos, bate forte ao coração, colocamos ele em nossas mãos, pra lhe sentir os batimentos, que dão o ritmo e o sustento ao nosso sangue a irrigar as nossas veias e artérias de caminhos, mesmo com todos os espinhos que sempre teremos que enfrentar.

Mas com o gibão, caneleiras e as capangas que protegem, seremos as batutas que regerão todas as lutas e as nossas sinfonias e óperas, que mudarão o existir nesse planeta, o qual está carente e perneta. E enfim seremos como a muleta que tornará tudo o que há, em paraíso já aqui nessa batida, de trabalho e acolhida que toda a Terra sempre nos dá, já que ela se retalha em todo tipo de ambiente, mesmo para o mais frágil e carente, nos sendo trevos da sorte para caminhar.

Publicado no Facebook em 22/06/2018