Uma vez bandido sempre bandido

“Para ex-detentos, a luta por um emprego é ainda mais difícil”

(Folha de São Paulo, 16/03/2017)

“Você marcha José, José para onde?

Marcha José, José para onde?

José para onde?

Para onde?” Carlos Drumonnd de Andrade

José acorda na madrugada escura, é segunda-feira. Levanta, acende a luz do quarto. O interruptor sujo na parede sem reboco faz a luz percorrer o cômodo pequeno. José toma banho, coloca a roupa separada na noite anterior, passa perfume, olha no espelho: cabelo em dégradé, barba alinha, aprova a imagem refletida. Na cozinha, passa o café preto, tira da sacola branca o pão amanhecido do mercado. O bolo no estômago torna difícil a ingestão. Lava o copo americano, guarda o resto do pão. Procura a caneta e o caderno. Abre a carteira, tem quinze reais que a mãe lhe dera, o suficiente para o ônibus e o lanche da cantina. Põe a blusa de moletom, o gorro na cabeça, abre a porta de zinco, a favela também se levanta. Caminha ao ponto de ônibus, desvia das valas, pula o esgoto. A parada está cheia, procura um canto, quer ser invisível. A senhora que mexe no celular o encara desconfiada. O coletivo para. Lotado. Trabalhadores se comprimem, uns empurram outros, tentam ser educados. José fica por último. Passa a catraca, segurando pelos condutores de ferro, procura pelo local que poderá ficar imóvel. O olhar baixo contempla o crescimento da favela, no bairro seguinte chegou asfalto. Reconhece a mecânica que trabalhou anos atrás. O movimento do veículo ajuda contrabalancear o sacolejo da ansiedade de começar uma vida nova.

*

Outro José, acorda uma hora antes, a esposa percebe o movimento na cama. Ela acende a luz. No quarto ainda dormem os dois filhos no beliche. Senta-se perto do marido, um abraço de conforto é dado, ainda bem que está aqui, vamos recomeçar. Em silêncio, ele retribui o gesto. Banheiro, vaso, banho, barba, perfume e espelho. Gasta mais tempo se olhando, gosta da aparência, aprecia o barulho na pia da cozinha, satisfaz-se com o sono dos filhos. Encara a instalação de fios soltos que sai do batente da porta do banheiro até o chuveiro, orgulha-se por saber que em breve poderá arrumá-lo. A esposa esquenta o pão na frigideira fina, a margarina rescende. No copo são misturados o café e o leite, sentado José come, enquanto da mochila das crianças a mulher tira algumas canetas, lápis e um caderno. Beija-a, sai para a rua. Ônibus, gente, tumulto. Ainda não conseguiu se acostumar com tanto movimento. Procura sorrir para as pessoas que passam ao seu lado, quer ser gentil. Em determinado trecho, o coletivo passa ao lado de uma gigantesca edificação, as pernas tremem.

*

Josés levantam, se arrumam, se olham no espelho e se encaminham até aos afazeres diários de um cidadão comum, pessoa normal, que busca por meio dos esforços, do trabalho, o sustento, a moradia, a dignidade. Porém, levantam-se, depois de adultos, para o estudo.

A narrativa de si é ficcional. O tempo, o espaço, o movimento, a realidade palpável das coisas, misturam-se ao corpo, ao ser e é pela intermediação da linguagem que se compreende o entorno. José já foi feto, criança, adolescente e tornou-se jovem. José já foi filho, já foi aluno, já foi moleque, já foi “parça”, já foi trabalhador, já foi namorado, já é pai, já é esposo.

Acontece que a sociedade impõe a Josés padrões que só serão atingidos caso consiga controlar a si e transformar-se em número - trabalhadores, consumidores, bens. Caso fuja da determinação, realocará José na prisão, distante dos que amam, porque uma vez bandido sempre bandido e bandido bom é bandido na cadeia.

As relações de poder regulam e criam leis. Lei e sociedade dá nomes a José: bandido; criminoso; detento; presidiário; delinquente; bandido; vagabundo. Quando solto, instituições pegam José, que não é mais José, e sim coisa/posição, o colocam em outro lugar e o tornam outra coisa semelhante à coisa anterior: vagabundo a ser capacitado para um mundo.

José é esquecido, toda ficção que José cria do tempo, do espaço, das convivências, das escolhas erradas ou acertadas, são varridas para baixo da única verdade que importa em seu tempo. Varrido José é para baixo do tapete do mercado que determinará o que se tornar.

Fábio Piantoni
Enviado por Fábio Piantoni em 23/09/2018
Código do texto: T6457700
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