Fé X Religião
Da série: DUALISMOS
(Uma visão analítica, pelo olhar literário)
Fé X Religião
“Quando pratico o bem, sinto-me bem; quando pratico o mal, sinto-me mal. Eis a minha religião. ” (Abraham Lincoln)
Todos os dias quando retornava da escola, no caminho para a minha casa, eu via aquele homem ali, escorado na coluna de um velho prédio abandonado, pardieiro, resultado de um projeto de engenharia fracassado. Prostrado, ele me seguia com seus olhos, de soslaio, procurando dizer algo que o meu medo infanto-juvenil, denunciado pela azáfama dos meus passos, ainda não permitia descobrir. Assim ocorreu durante um bom tempo, até que num determinado final de manhã, o combustível daquele dia acionou o motor da curiosidade. Coincidentemente, eu estava com o sanduíche e o copo de suco, preparo diário da minha mãe, que naquele dia não os havia consumido, por ter tido um certo desconforto intestinal durante o recreio. Providencial intercorrência, viria a concluir mais tarde, pois só assim teria arregimentado um pretexto para se somar a já aludida curiosidade e, desta forma, me aproximar do tal homem. Tencionava também oferecer tais alimentos ao misterioso suposto mendigo.
Sendo assim, ao avizinhar-me daquele ser famélico, vestido, ou melhor, despido em seus andrajos, de longa barba e cabelos grisalhos, amalgamados pelo desalento dos anos, pude perceber, para a minha surpresa, que o mesmo já me aguardava, com um sorriso lacunoso, substanciado pela deserção de vários de seus dentes. O pobre, mas não miserável, então, ao certificar-se da proximidade adequada da sua lânguida voz com os meus vacilantes ouvidos, falou: “Eu estava lhe esperando”. Dito isto, quedou-se no seu sepulcral silêncio, comunicando-me pelo calar que era a minha vez na interlocução. Tomado de natural estupefação pela declaração tão intrigante, ainda apalpava na escuridão da minha timidez as primeiras palavras, pois não enxergava como desembaraçar os fios do novelo da nossa teórica conversa. Longos segundos se passaram até que eu balbuciei com voz trêmula: “o senhor me conhece? Sabe o meu nome? ”. Ele, regressando do exílio das suas palavras, levantou gradualmente a cabeça e içando os seus olhos ao encontro dos meus, respondeu-me: “Não preciso saber como se chama, para conhecê-lo”. “Já sei quem és, pelo semblante dos seus passos e pela expressão do seu olhar”. E continuou: “Não tenha medo, meu jovem, sente-se e aquiete seu coração”. Ainda permanecia num estado de intranquilidade, todavia aquela última frase, soou como um necessário refrigério às minhas dúvidas quanto ao fato de ter tomado ou não a decisão certa de estar ali. Devidamente instalado sobre uma manilha de concreto, num incomum arroubo de desinibição, disparei: “eu me chamo Leonardo e o senhor? ” O indigente, sentenciosamente, verbalizou: “me chame de “Profeta”. É por essa alcunha que todos aqui me conhecem”. A palavra desconhecida, pelo menos para um garoto como eu, de vocabulário acanhado, me fazia secretamente especular, que talvez este homem tivesse sido alguém de relativa importância, um professor, quem sabe. Instigavam-me novas curiosidades, mas não estava preparado o suficiente para exercitar uma latente coragem por meios de indagações adicionais. Depois de novas tentativas frustradas da minha parte em encadear tal colóquio, as palavras manifestavam-se refratárias ao exercício interlocutório, ele, o homem ainda para mim misterioso, novamente, se pronunciou: “A sua mãe deve estar lhe esperando”, lembrou-me do desaviso das horas. “Amanhã, continuaremos”. Silenciou-se. Eu, consequentemente, levantei-me e sem falar mais nada encetei os primeiros passos em direção à minha casa, quando, num estalo de memória, virei-me para o Profeta estendi a minha mão e ofertei-lhe o meu lanche não consumido naquele dia. Ele aceitou placidamente o providencial alimento e com um meneio de cabeça transmitiu o seu agradecimento. ( ). Novos dias se seguiram, e eu, já despojado de qualquer sentimento de hesitação, sempre lhe dedicava alguns minutos na volta da escola, com a merenda que agora, por outro motivo, deixara de comer. Conforme ia conhecendo-o, ou pensando que o conhecia, ia fazendo algumas perguntas que a natural curiosidade da idade cultivava, ainda mais perante tão inusitada circunstância. Ele respondeu a quase todas, de forma enigmática, é verdade, e ainda por cima camufladas pela tíbia voz, que eu já me acostumara, malgrado permanecesse a dificuldade de escutar perfeitamente todas as suas construções frasais. Mas isso não importava. O que eu não compreendia muito bem, seja pela baixa vocalização, seja pelo vocabulário mais apurado para a minha tenra concepção, eu deduzia e entre uma dúvida ou outra a comunicação que era possível se estabelecer, se estabelecia. Apenas uma única pergunta, a respeito da sua religião e da sua igreja, ele negou-me, naquele momento, a resposta. ( ). O tempo novamente transcorreu-se e num desses dias das contumazes conversas lestas, eis que o Profeta, sacou de uma espécie de alforje, de textura maltratada duplamente pelo tempo: o cronológico e o climatológico, saliente-se, uma também maltrapilha caderneta com alguns escritos. Na primeira página podia-se ler: “haja o que houver, nunca perca a sua fé”. Ele apenas deixou-me que eu lesse esta inscrição. As demais, pediu-me para que as lesse em casa, pois aquele repositório de mensagens, nas suas palavras implícitas, era um presente que estava me dando, não propriamente ou exclusivamente em gratidão ao pão e ao suco diário, mas também em retribuição a um outro alimento, igualmente indispensável, desta vez, para a sua existência. Ao dedicar-lhe o pouco tempo que dispunha entre a saída da escola e a percepção da minha demora por parte da minha mãe, eu restaurara, sem saber, em alguma medida, a dignidade do Profeta, que a vida havia lhe destituído. Nunca o presenciei embriagado pelo álcool, contudo vivia como um bêbado existencial [Nota 1], desde o desaparecimento dela, que eu, tão cedo, não saberia quem era. Ao me entregar tal presente, embora não anunciasse pela lassidão da voz, deu a entender que este seria o primeiro e último regalo que daria a mim. Neste dia, despediu-se com um olhar mais triste do que de costume, mas com um certo alívio no peito, uma espécie de reconhecimento pelo dever cumprido. Fiquei assustado, por óbvio, naquele exato dia com o teor das últimas palavras e com a atmosfera da despedida. Dormi apreensivo aquela noite, desejando que o sol acordasse mais cedo para que eu, juntamente com ele, pudesse, em caráter inédito, visitá-lo antes da aula, no caminho de ida da escola. Para a minha surpresa, chegando no seu habitat de cimento nu e vergalhões à mostra, não mais o encontrei. Achei, no entanto, junto à coluna na qual costumava se acostar, sob uma pedra, um bilhete escrito num amarfanhado papel de embrulho, pontilhado por algumas migalhas de pão, com os seguintes dizeres: “Garoto Leonardo, a fé é a minha verdadeira religião e os meus pensamentos e as minhas ações diárias são a minha igreja ”. “A minha esperança de viver repousa nesta certeza, e com ela vou ao encontro dela”. Nunca mais o vi. Muitos anos mais tarde, num recorte de jornal, pude reconhecê-lo numa foto, com a aparência rejuvenescida e em companhia de uma mulher. O texto que se seguia era extremamente curto e lacônico e apenas dizia: “homem reencontra depois de 10 anos a sua esposa desaparecida. ” Na imagem ainda era possível ler na sua camiseta preta, uma mensagem em letras brancas garrafais: “ Haja o que houver, nunca perca a sua fé”.
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Esta estória, naturalmente é fictícia, mas bem que poderia ser real. Quem sabe não a é, neste oceano de gente esquecida nas construções e desconstruções da vida, abandonada no abandono de uma obra, ou por obra do abandono de alguém?
O que me importa nestas linhas já fatigadas pelo peso das palavras, além da narrativa ficcional, presumivelmente baseada em fatos da vida real, é estabelecer um paralelo entre os dois elementos que dão substância ao título deste ensaio: A religião e a fé. São estes necessariamente faces da mesma moeda? São eles uma relação dicotômica no universo místico-religioso que absorve a vida de uma parcela significativa da população mundial? À exceção dos ateus convictos, que, segundo o dizer do Millôr Fernandes, gozam de plena saúde e dos agnósticos com a conveniente presunção de incompreensão de determinados aspectos religiosos, todos os demais humanos, cristãos, judeus, muçulmanos, e de outras tantas manifestações sobrenaturais, em alguma dimensão se apoiam neste binômio. O mais importante, contudo, é perceber por uma análise embebida no cálice da temperança, que o fato de alguém não praticar as suas convicções de ordem religiosa ou similar, por intermédio da frequência assídua, ou não, a uma igreja, templo, sinagoga, terreiro, mesquita ou qualquer outra representação que os tijolos de uma edificação mística possam revelar, não implica necessariamente que tal indivíduo não seja uma pessoa de fé. Por seu turno, não me parece crível conceber, que pessoas que não alimentam uma fé, mínima que seja, possam se sentir estimuladas a frequentar as aludidas construções e ainda mais compartilhar as suas crenças dentro da ritualística de qualquer um desses cultos, salvo por uma questão de protocolo social. A Religião, na minha concepção absolutamente particular, sem pretender ferir suscetibilidades sejam de que natureza forem, é um conceito mais dogmático, institucionalizada ao longo do tempo por meio de uma doutrina construída e constituída de elementos culturais, étnicos e históricos, cada qual à guisa dos seus fundadores. A Igreja, por sua vez, também inserida no mesmo subjetivismo já colocado, traduz-se numa espécie de estruturação e hierarquização das relações homem-divindade, hodiernamente impulsionada nesta direção pelo uso intensivo das mídias. A impressão que fica, a despeito do poder de persuasão sobre uma massa cada vez mais ávida de respostas para os seus dilemas espirituais, massa essa derivada, nas palavras do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), de um mundo líquido, amorfo, é que muitas destas propaladas religiões, ou determinadas ramificações, infelizmente, se especializaram menos na captação e mais na cooptação dos seus fiéis, mediante um discurso de alto apelo mercadológico e pouco apreço ideológico. Não vou citar denominação alguma, pois deixo-as, obviamente, a cargo da percepção e discernimento dos que que me leem. Preocupo-me apenas com a reflexão que minhas argumentações pretendem ensejar. Diante do exposto neste ensaio, já em rota de iminente colisão com o ponto final, a fé apresenta-se contextualizada por uma manifestação verdadeiramente autêntica, por ser ela, o elemento mais individual, intransferível e indissociável da relação direta do homem com a sua divindade, sem a intermediação quantitativa ou qualitativa de quem quer que seja e quaisquer que sejam as intenções ou conduções dos respectivos operadores formais. Quiçá seja necessário, antes mesmo da passagem para um plano metafísico, para aqueles que assim acreditam, encontrarmos ainda neste plano físico, algum profeta literário ou algum Abraham Lincoln contemporâneo, que nos ensine que o conjunto de nossos pensamentos e principalmente das nossas ações ainda é a melhor tradução desta imensa e crescente “torre de babel” que as religiões edificaram ao longo de milênios.
Nota:
[1] A despeito deste conceito, queira ler meu ensaio “As faces ocultas da embriaguez”.
© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves
29 de maio de 2018
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