Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector: a personagem Lóri, entre a individuação e a submissão
“Sou o grande homem da minha vida.” (MARÍLIA GABRIELA no texto Dois pontos, Revista Época, 10 de abril de 2006).
Lóri, a personagem ator e actante (D’ONOFRIO, 1995). Lóri, a personagem humana investida de atributos e a personagem conceito, identificada pela estrutura profunda dos seus desejos postos à prova pela transformação até o possuir do objeto idealizado: o amor para sentir-se uma mulher completa.
Ela (Lóri) é a protagonista do romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1998), de Clarice Lispector. E em que repousa essa afirmativa? Geralmente, a protagonista possui apenas o querer, a procura. No caso de Lóri, essa busca é o incessante movimento pelo amor que, segundo ela, a tornaria completa. Falta-lhe, pois, o saber e o poder para que a tensão principal do romance se construa. O rumo à posse do objeto/objetivo/valor é fornecido pelo segundo ator e actante do romance, isto é, Ulisses.
Ulisses atua então, como o desencadeador da performance de Lóri. É ele quem modela, demonstra e intensifica as competências do querer do Lóri. Evidencia-se o comprometimento de Ulisses em tornar o desejo de Lóri em realidade física, transcrevendo-se um trecho do romance: “Ele quisera ensinar a Lóri através de fórmulas?” (linha dez, página 154). Parece-me pouco sustentável categorizar Lóri apenas como a protagonista do romance em questão, uma vez que a tendência do romance moderno é abolir a institucionalização centralizadora da agência narrativa. O peso da importância de Lóri, na narrativa de Lispector, é muito mais a sua complexidade psicológica do que a força e a vontade de vencer obstáculos para se chegar a um fim (enquanto nível estrutural do que se concebe como uma personagem protagonista na Teoria da Literatura).
Seria a vida de Lóri apenas a figuração recalcada de seus anseios? O “eu” (ego, também) de Lóri só se firmaria e afirmaria no mundo a partir da sua complementação com um “tu”, ou o eu de Lóri seria um não-eu pela ausência da vitalidade das suas ações? A substância de Lóri é a sua tenaz convicção de que não precisa e não de que não quer sentir prazer em sua vida, por isso ela se prende cada vez mais na aliança e na união com alguém para transformar seu vazio em certa amplitude.
Interessante salientar que a presença da personagem Lóri se faz, justamente, pela sua ausência. É essa interdição do seu “eu” que não aceita as medidas da normatividade social, mas que anseia por essa normatividade, que pode ser tomado como o foco, ou como o ponto de vista do romance. O traço que está em jogo no romance de Clarice é subjetivação do feminino por alguns vieses (o viés da mulher subjetivando-se, o viés do homem subjetivando o feminino e o viés englobado de todo o padrão social que subjetiva o feminino).
A acusação de que a mulher tem como elemento básico uma malevolência inata foi difundida, espontaneamente, durante a Idade Média por meio da constituição religiosa apregoada por alguns textos pilares da Igreja Católica. Evidentemente, a veneração pelo sexo masculino e pela hostilização da mulher não são adventos apenas do Catolicismo, porquanto são relatados no mundo grego, o qual propunha o homem como racional em oposição à mulher instintiva e obscura, podendo assim, enlevar o homem pelo seu tom enigmático e sedutor (de difícil acesso). Os gregos (Antiguidade Clássica) creditavam à mulher apenas a condição de receptáculo constante para a reprodução, ou seja, a mulher era considerada somente como uma procriadora com o encargo de ser a obra geradora (doar), mas não a obra criadora (nutir) da humanidade.
A teoria freudiana da Psicanálise (NASIO, 1991) reduzia a temeridade do homem em relação à mulher pelo fato dessa invejar o falo masculino (o medo subjetivo/simbólico da castração). As mulheres fálicas aquelas (NASIO, 1991), as que assumem o poder simbólico de dominação do falo masculino, assustam os homens por conta da não submissão a esses. Desnormatizar, “lutar contra a corrente” de convenções socioculturais incrustadas no imaginário social prescrito há muito tempo, é a postura feminista que teve insurreição no século XIX e que foi crescendo a partir da década de 1960 e 1970 do século XX.
E no romance de Clarice, Lóri é uma mulher fálica ou uma mulher subordinada aos valores sexisistas de dominação do masculino sobre o feminino? O campo semântico das palavras do romance em questão evidencia, senão pormenoriza, a certeza de que Lóri é uma mulher que cumula sua felicidade por meio da associação dessa com um par masculino. O vocábulo “maçã”, por exemplo, na narrativa, pode, por meio da simbologia, especificar e representar a totalidade, a eternidade e a fecundidade. De modo, que o símbolo da maçã (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998) confirma a inferência de que Lóri buscava sua totalidade no amor de um homem, através da relação sexual, a qual lhe faria eterna por meio da fecundidade. Outro item a citar-se para corroborar com a ideia da união enquanto eternidade é a referência simbólica ao badalar do sino (linha treze, página 148, do romance de Lispector).
O sino (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998), tido como símbolo, representa a união entre o Céu e a Terra, sendo o Céu uma iconografia do masculino e a Terra uma iconografia do feminino. Por conseguinte, o badalar do sino representa o anunciar da reunião entre o Céu e a Terra. E, de fato, nos parágrafos seguintes aos da página 148, existe essa união: a carnal (pela relação sexual entre Lóri e Ulisses) e a amorosa (pelo prenúncio do desejo em casarem-se).
Há de se ressaltar que Lóri trata-se como Natureza. A Natureza, segundo o sistema de semioses da simbologia é o eterno feminino, o que rege a fecundidade do mundo e o que origina as renovações. Pois bem, Lóri somente se considera mulher pelo pertencimento a um homem: “Sim, disse Lóri, sou mulher tua.” (linha 24, página 158). Trata-se, então, de uma mulher reduzida e particularizada por seus instintos de mulher, ou uma mulher regida pela norma subjetiva da sociedade que representa o feminino como submisso e como dependente do masculino?
Lóri, acredita-se, é a mulher fálica que procura sua identidade suprema como agente de sua própria história, mas que, ao mesmo tempo, busca uma mulher tipificada pela norma falocêntrica em face desse seu anseio de complementação à totalidade se realizar por meio da união com um homem. A grande procura de Lóri, talvez seja a felicidade suprema que nunca sentiu e que tanto teme, e sabe ela que essa tal felicidade está na projeção (na ideação normativa do que é ser uma mulher segundo um sistema de crenças patriarcal). Projeção no amor com um homem. Projeção em seu apagamento em função de um homem.
Como julgar a atitude de plasticidade de Lóri, que se transfere de atuante-passiva (idealiza segundo convicções individuais suas, embora não as realize) para passiva-atuante (derruba as convicções para moldar-se às suas idealizações)?
Lóri é uma personagem redonda (a personagem passível de mudanças, de transformações, segundo D’ONOFRIO, 1995), pois suas ações e seus pensamentos oscilam pelo seu bel-prazer (pela sua individuação). Ela é a personagem complexa que se desenvolve para a transformação. Lóri procurava a completude e a totalidade fora dela, sem perceber que de autora da sua vida, ao se enamorar por Ulisses, passou a ser a coautora. De personagem plana (sem alteração de comportamento), ela passa a ser personagem redonda pelas suas ações (dualidade entre o submeter e o não submeter ao masculino), mas personagem tipo (caricatura da mulher submissa ao masculino) pela sua consciência.
Referencial bibliográfico:
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto I. São Paulo: Ática, 1995.
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
NASIO, J. D. A histeria, teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.