Um percurso de leitura acadêmica e suas implicações na compreensão das teorizações saussureanas
O primeiro contato que tive com as ideias teóricas de Ferdinand de Saussure foi no ano de 2007, em uma disciplina denominada Linguística I. Naquele ano, eu iniciava meus estudos de graduação no curso de Letras Português/Inglês e respectivas Literaturas (Licenciatura) na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), em Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul. Esse primeiro contato resumiu-se a uma apresentação geral dos conceitos norteadores da ciência Linguística saussureana através de textos de outros autores. Tal apresentação elencava Saussure como o fundante da ciência Linguística, pelo fato de estabelecer um objeto de estudo, bem como elencava algumas das principais dicotomias presentes no Curso de Linguística Geral, a saber, Língua e Fala; Sintagma e Paradigma; Sincronia e Diacronia.
Em momento algum tive contato com a materialidade linguística do Curso de Linguística Geral nessa iniciação às ideias teóricas de Saussure. A metodologia utilizada pela professora da disciplina de Linguística I para testar o aprendizado da turma, basicamente estruturava-se por meio de provas, nas quais tínhamos de definir as dicotomias saussureanas vistas em aula. Desse modo, pelo que recordo, eu decorava as definições de Língua e Fala, de Sintagma e Paradigma, de Sincronia e Diacronia, as quais eu tive acesso em textos de outros autores e as reproduzia nas provas da disciplina em questão. Sobre o C. L. G. ser uma reescritura das ideias de Saussure por parte de seus alunos Charles Bally e Albert Sechehaye, a professora tão somente mencionou o fato e não o fator, ou seja, ela apresentou o fato do C.L.G. ser uma compilação de cursos que Saussure ministrava na Universidade de Genebra, mas não o fator da reescritura de escritos de Saussure por parte de seus alunos. Talvez por ingenuidade característica da idade, eu acabei não procurando o C.L.G. para verificar em sua materialidade como se mostrava essa questão da autoria, ao que tudo confluiu para a autoridade da professora ser considerada como verdade absoluta.
No ano de 2009, tive meu segundo contato com as ideias saussureanas, quando do meu segundo semestre da graduação em Letras Português e respectivas Literaturas (Licenciatura) na Universidade Federal de Santa Maria. A disciplina de Linguística Geral, ministrada pela professora Amanda Eloina Scherer não necessitava ser cursada por mim, na medida em que eu já havia conseguido sua dispensa (cabe ressaltar que sai da URI e vim para a UFSM, por isso da dispensa da disciplina), mas, julguei necessário cursar novamente tal disciplina, que tinha a mesma ementa e carga horária daquela disciplina cursada na URI. Por que essa necessidade em cursar mais uma vez essa disciplina? Porque eu realmente tinha consciência do meu conhecimento ínfimo de Linguística, principalmente sobre a teoria linguística de Saussure.
Foi nesse momento que tive contato com o texto integral do Curso de Linguística Geral (a professora solicitou a compra do C.L.G.) e pude compreender um pouco mais a importância de Saussure para a constituição de uma nova ciência da linguagem, visto que ele delimita e recorta elementos para formular pressupostos e definir um objeto. Com a disciplina de Linguística Geral, pela primeira vez travei contato com o conceito de Signo e com a dicotomia Significado e Significante de Saussure, assim como contato com o conceito de Valor linguístico. Uma apreensão mais profunda, no sentido de internalização do conhecimento adquirido, certamente adveio das relações dos conceitos saussureanos com materialidades do mundo “real”, isto é, um entendimento melhor das ideias de Saussure foram apreendidas quando a professora Amanda relacionava-as à linguagem em uso, a fatos da fala e a fatos da língua que estavam mais próximos da minha realidade sociocultural. Parece que foi nesse instante que, de certa maneira, descobri como funcionava realmente o meu processo de aprendizagem.
Com a disciplina de Linguística Contemporânea, no ano de 2010, ministrada pela professora Marcia Cristina Côrrea, pude aprofundar os conhecimentos já obtidos acerca da teoria saussureana, observando a sua pertinência para os estudos contemporâneos da linguagem, posto que, grande parcela dos estudiosos posteriores ao C.L.G. utilizaram como aporte embasador de suas teorias, os conceitos de Saussure. De tal maneira, percebe-se que se há um avanço para os estudos no campo da Linguística, esse só foi possível graças aos fundamentos saussureanos, os quais, não somente desenvolvem conceitos para o estudo da linguagem, mas também, elaboram procedimentos científicos para tal estudo. Ademais, para formular conceitos científicos sempre houve a necessidade de refutação e crítica de conceitos anteriores, ou seja, só se faz ciência na medida em que se conhecem os pressupostos já dados, criticando-os e reelaborando-os. O próprio vocábulo REELABORAÇÃO marca o sentido de construção a partir do já dado. Saussure e suas ideias linguísticas podem ser considerados como esse ponto de partida, o qual ainda recebe grande atenção nos estudos linguísticos e ainda oferece subsídios para que o campo da linguística continue a movimentar eficazes teorizações sobre a linguagem.
Enquanto mestrando em Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Santa Maria, nos anos de 2014 e de 2015, deparei-me pela primeira vez com os Escritos de Linguística Geral, de Sausurre, um texto que apresenta a transcrição dos manuscritos originais das aulas de Linguística Geral ministradas pelo linguista em forma de curso. Esse texto organiza-se de modo fragmentado, pois por se tratar de uma transcrição de manuscritos, é comum a elipse de certos enunciados, e também por serem esquemas didáticos para um curso, ou aula, não se desenvolvem em um continuum abarcador de uma totalidade. Os Escritos de Linguística Geral, de Saussure vem à tona no ano de 1996 e trazem os mesmos aspectos gerais e os mesmos conceitos norteadores presentes no Curso de Linguística Geral (publicado originalmente em 1916), entretanto de maneira difusa, assim como trazem alguns aspectos suprimidos ou elaborados de modo distinto do C.L.G.
Ao que me parece, a divergência mais acentuada entre o Curso de Linguística Geral e os Escritos de Linguística Geral refere-se à definição do objeto da Linguística. No C.L.G. afirma-se que Saussure defende apenas a língua como objeto, mas nos E.L.G., Saussure trata da dupla essência da linguagem, em que aponta a indissociabilidade entre língua e fala, na medida em que a língua somente é criada e atualizada em razão do discurso. O C.L.G. delimita e cria um caráter conclusivo ao objeto da Linguística a partir das anotações de alunos de Saussure, ao atribuir graus de importância à língua e à fala, de modo a construir a preponderância daquela sobre essa, porém nos E.L.G., Saussure evidencia a inconclusibilidade de seus pensamentos quanto aos níveis de importância da língua sobre a fala, colocando-as, antes em grau de paridade e de interdependência nos fatos da linguagem do que em grau de hierarquia, desenhando uma dupla linguística, em que os valores da língua e da fala aparecem contributivos um ao outro. Perspectiva demonstrada pelo seguinte excerto:
[...] a linguística, eu ouso dizer, é vasta. Em especial ela comporta duas partes: uma que está mais perto da língua, depósito passivo, outra que está mais perto da fala, força ativa e verdadeira origem dos fenômenos que logo se avista, pouco a pouco na outra metade da linguagem (SAUSSURE, In: E.L.G., 2002, p. 232).
Saussure, ainda, demonstra em seus manuscritos um fluxo somatório de questionamentos quanto a uma integração finalizadora e conclusiva de suas ideias, ao apresentar um movimento de relativização dos pressupostos que cria, em direção a uma não precisão totalizadora do que teoriza. A busca por unidades conceituais, para Saussure, epistemologicamente, surge da sucessão de hipóteses, e talvez, seja essa a grande diferença presente no C.L.G. e nos E.L.G., pois aquele se define em termos de formalização conclusiva e esses se definem em termos de refutabilidade para a abertura de novas problematizações, como em “A língua só é criada em vista do discurso, mas o que separa o discurso da língua ou o que, em dado momento, permite dizer que a língua entra em ação no discurso?” (SAUSSURE, In: E..LG., 2002, p. 236).
Ademais, Saussure ao analisar a língua enquanto estrutura fixa utilizada pelo social, a estuda em seu princípio de classificação e parece no C.L.G., não se ater aos usos da língua em sua forma contextual, ou seja, na fala, como esclarece o seguinte trecho: ]
[...] é necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somente a língua parece suscetível de uma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito (SAUSSURE, In: C.L.G., 2006, p.16).
Entretanto, é perceptível tanto no C.L.G. quanto nos E.L.G. que o foco saussureano está no social, primeiramente, porque tomando como base a língua homogênea, Saussure define-a em virtude de um contrato social entre membros de uma comunidade. Os E.L.G. trazem formulações de que Saussure pretendia uma investigação mais detalhada de certa instância diferenciada que por meio da língua dá o conhecimento do discurso, todavia esse interesse apresenta-se suprimido no C.L.G., pois a instância formal, coletiva e homogênea (a língua) é descrita como um elemento que não se complementa com a instância discursiva, heterogênea e contextual (a fala), mas que apenas compõe uma parte da linguagem, uma unidade da linguagem.
A importância de Saussure para a minha formação acadêmica pode ser dividida em dois fatores, os quais se imbricam, atualmente, por força de um conhecimento mais reflexivo, crítico e legitimado por leituras basilares para uma compreensão menos parcial das teorizações saussureanas. De um lado, o Curso de Linguística Geral pode ser entendido como um marco epistemológico das Ciências humanas, daí sua principal importância, na medida em que as ciências linguísticas ocidentais foram modificadas pelo conceito saussureano de sistema, o qual é essencial para a constituição e formação da ciência Linguística, bem como da disciplina Linguística. Saussure, ao estudar a lógica interna da língua, de modo organizacional e estruturante origina a autonomia de uma ciência da linguagem: a Linguística.
A par de todos os principais conceitos presentes no C.L.G., Língua e Fala; Signo; Significado e Significante; Sincronia e Diacronia; Sintagma e Paradigma; Valor linguístico; Princípio de arbitrariedade, etc, a relevância e pertinência de Saussure para o campo dos estudos da linguagem, além da sistematização de ciência Linguística na definição do seu objeto, acredito ser o legado dos conceitos norteadores do C.L.G., especialmente a definição de Signo e das suas partes constitutivas, na medida em que os signos ao serem produtos do ser humano e da cultura e não da natureza demarcam que a ordem da língua não está para a ordem do mundo, isto é, existe uma soma estável de sinais na coletividade (a língua), mas esta sustenta-se por um caráter arbitrário e não por um caráter naturalista. Desse modo, destacam-se, sobretudo, tais conceitos sob suas contribuições aos estudos posteriores que abarcam a linguagem, principalmente os ligados ao estudo da língua em uso, os quais são subsidiados pela operacionalização científica de Saussure, ou seja, Saussure pode ser nomeado como um paradigma para a produção do conhecimento científico a partir do século XX.
De outro lado, os Escritos de Linguística Geral, entre outras coisas, orientam os leitores a perceber que Saussure, principiava determinados questionamentos acerca da língua em funcionamento discursivo, e, portanto, partindo das significações coletivas (do sistema; sociais; formulações linguísticas e simbólicas) para chegar à reorganização do sistema na atualização da fala. Isso posto, no C.L.G. e nos E.L.G., Saussure coloca a linguagem em seu lugar estabelecidamente lógico, estruturando o funcionamento linguístico dentro do sistema da língua, oportunizando os subsequentes estudos da linguagem em suas relações com o social, o psicológico, o cognitivo, o cultural, o histórico e o ideológico no campo da Sociolinguística, da Psicolinguística, da Pragmática, da Análise de Discurso, da Linguística Textual e da Linguística Aplicada, entre outros.
Considerando-se o meu projeto de mestrado em Estudos Linguísticos no Programa de Pós-Graduação em Letras (UFSM), o qual, procurou (re) educar alunos de Ensino Médio da Educação Básica da rede pública à Literatura e à autoria literária, para criar um instrumental didático de ensino de Literatura nas escolas que levasse em conta o perfil e as necessidades da clientela, a partir da Teoria Holística da Atividade (RICHTER, 2006) e da Pesquisa-ação (THIOLLENT, 1996), entendendo Língua e Literatura como interdependentes, uma vez que a Literatura ancora-se em suas interfaces com a Língua, a Sociedade, a História, a Cultura e a Subjetividade, assim como procura propor um enquadramento de trabalho docente crítico e reflexivo, refletir-se-á sobre a relação que o mesmo mantém com certos norteamentos teóricos de Saussure.
Saussure, ao propor uma constituição teórica abstrata para a ciência linguística dimensiona um sistema de valores puros determinados por certo construto social, logo, evidencia que as entidades linguísticas estão na linearidade de uma cadeia, estabelecendo seu valor linguístico dentro do sistema, portanto, o pensamento tem necessidade do significante e do significado em suas relações de abstração para a significação, mas não para o sentido. O valor linguístico está na história da língua e somente permanece pela recorrência das significações, enquanto o sentido dá-se com a discursividade funcionando dentro de um sistema de língua. A negociação dos sentidos, por conseguinte, é dependente não só do sistema da língua, ou da significação, mas também, dos aspectos contextuais de produção e utilização do discurso. O meu projeto de mestrado encaixou-se, justamente nesse jogo de mediação entre significação e sentido para a Literatura, no que diz respeito à potencialização dos aparatos contextuais como sensibilizadores dos alunos à arte literária, uma vez que os seus universos de interesse, as suas subjetividades e as suas inserções socioculturais e históricas são molas propulsoras para o conteúdo curricular exigido pela disciplina de Literatura nas escolas da Educação Básica.
Na tentativa de estabelecer meios, modos e objetos para o ensino de Literatura na escola, definindo procedimentos padrões de aplicabilidade, ressalta-se um movimento em direção ao que Saussure também realizou. Um trabalho docente metodologicamente amparado em procedimentos viáveis ao desenvolvimento satisfatório das habilidades linguísticas e literárias dos alunos, considerando suas necessidades “reais” e não apenas as exigências curriculares, de certa maneira, aproxima-se das formulações saussureanas para a autonomia da ciência linguística, visto que Saussure parametriza um modelo de cientificidade para o estudo da linguagem, estabelecendo, objeto, conceitos e método, o qual até os dias de hoje serve como sustentáculo para as Ciências humanas. No plano de uma prática docente centrada no profissional de Letras enquanto mediador no gerenciamento da leitura e da escrita dos alunos, tomando-os como leitores e como autores de literatura, num gesto estético aproximado de suas “realidades” socioculturais, cria-se uma unidade contingente para a descoberta de hipóteses de novas aplicações didáticas e para a regulamentação de protocolos engajados (docente crítico e reflexivo que toma decisões em conjunto com os alunos) para o ensino de literatura nas escolas, em contraponto ao atual ensino, que privilegia um distanciamento entre língua e literatura, uma visão apenas historicista da literatura, um esvaziamento da experiência literária, um silenciamento da criação literária dos alunos, na medida em que os estudantes não se reconhecem no nível conteudístico da disciplina.
Referências bibliográficas:
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 27ª ed., São Paulo: Editora Cultrix, 2006.
SAUSSURE, Ferdinand de. Escritos de Linguística Geral. Org. Simon Bouquet e Rudolf Engler com colaboração de Antoinette Weil. Trad. Carlos Augusto Leuba Salum e Ana Lucia Franco. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.
RICHTER, Marcos Gustavo; et al. “O modelo holístico como alternativa à formação docente”. IN: I CONGRESSO LATINO-AMERICANO SOBRE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUAS, 1., 2006, Florianópolis. Anais. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006. 1 CD-ROM.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1996.