A Maior Flor do Mundo: literatura de adultos para crianças ou literatura infantil para adultos
1. Introdução
O presente ensaio literário tem como objectivo analisar o conto infantil A Maior Flor do Mundo, como forma de responder a uma questão que inquieta uma legião de leitores: existirá literatura para crianças e literatura para adultos?
A obra em questão foi escrita pelo não menos célebre escritor José Saramago, ele que foi em 1998 galardoado com o Prémio Nobel de Literatura, o primeiro a ser atribuído a um escritor de Língua Portuguesa.
José Saramago é igualmente autor de romances memoráveis (algumas bastante polémicas) tais como Levantado do Chão (1980), Memorial do Convento (1982), A Jangada de Pedra (1986), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio Sobre a Cegueira (1995), A Caverna (2000), Caim (2009), entre outras, constituída por poesia, viagens, crónicas, literatura infantil, peças teatrais, contos, diários e memórias, no seu vastíssimo «Mar Literário» sulcado desde a sua estreia em livro com o romance Terra do Pecado (1947).
Com o conto infantil A Maior Flor do Mundo, cabendo as ilustrações ao João Caetano, José Saramago estreia-se na Literatura Infantil, obra que posteriormente, em 2007, pela Continental Animación, veio a ser adaptada para o cinema numa curta-metragem de animação realizada por Juan Pablo Etcheverry, na qual José Saramago aparece como personagem principal.
2. A Maior Flor do mundo: uma história a ser contada
N’A Maior Flor do Mundo José Saramago, transformando-se no personagem principal da história, não conta uma história, como tem sido o caso de muitas que conhecemos, mas sim faz um esboço de uma história que ele gostaria de contar, a qual seria a mais bela e surpreendente de todas as histórias já contadas, como se pode constatar logo nas primeiras páginas do livro, «Se eu tivesse aquelas qualidades todas poderia contar, com pormenores, uma linda história que um dia inventei, mas que, assim como a vão ler, é apenas o resumo de uma história, que em duas palavras se diz… Que me seja desculpada a vaidade se eu até cheguei a pensar que a minha história seria a mais linda de todas as que se escreveram desde o tempo dos contos de fadas e princesas encantadas…» (SARAMAGO: 2002, p. 3), ou ainda na maneira que a inicia, «Na história que eu quis escrever, mas não a escrevi, havia uma aldeia» (Idem: 2002, p. 4).
Há aqui quase que um chame ao mundo dizendo que «a perfeição só existe fora da singularidade», como igualmente podemos complementar o dito anterior buscando a célebre frase que diz que «A força da mão está no somatório das forças dos dedos». Saramago demonstra a sua humildade pedindo ajuda aos seus leitores (mais novos, ou talvez não só) para que o apoiem na dura tarefa de escrever livros mais belos e extraordinários do que os que lhe valeram o Prémio Nobel de Literatura em 1998, ou ainda o Prémio Camões em 1995.
3. A Maior Flor do Mundo e A Caverna de Platão
De acordo com a Wikipédia «A alegoria da caverna [A Caverna de Platão], também conhecido como parábola da caverna, mito da caverna ou prisioneiros da caverna, foi escrito pelo filósofo grego Platão e encontra-se na obra intitulada Livro VII de A República.»
A Caverna de Platão, uma metáfora descrevendo a condição humana perante o mundo, no que diz respeito à importância do conhecimento filosófico e à educação como forma de superação da ignorância, é uma parábola de homens que vivem numa caverna subterrânea, que estão virados de costas para a entrada, presos com correntes, pelas mãos e pelos pés, podendo somente olhar para a parede da caverna. Por detrás dos prisioneiros há um muro alto, e atrás desse muro passam através das frestas vultos humanos que levam diversos objectos por cima do muro. Ardendo atrás desses objectos uma fogueira, eles provocam sombras trémulas na parede da caverna. A única coisa que os homens presos na caverna podem ver é a sombra dos homens que estão para além dos muros altos. Uma vez que os prisioneiros da caverna estão ali desde que nasceram, para eles as sombras são tudo o que existe no mundo.
N´A Maior Flor do Mundo Saramago conta a história de um menino que vivia numa aldeia situada no pico de uma montanha, uma aldeia chamada Aldeia do Pico, história de um menino que adorava abrir novas páginas no livro da sua vida, um rapaz que era apaixonado por descobrir coisas novas, novos horizontes, novos mundos. Saramago, através deste conto infantil nos leva à Alegoria de Platão, como que iluminando a mente do leitor sugerindo-lhe: E se um dos prisioneiros da Caverna de Platão se desacorrentasse e deixasse de olhar a parede na qual se projectavam sombras de homens que se encontravam além dos muros da caverna? E se ele voltasse a cabeça para entrada e decidisse fugir para o mundo exterior, além dos muros? Não serão os habitantes da «Aldeia do Pico» os prisioneiros da caverna e o menino o único que consegue de lá escapar?
Adiante, na história, numa dessas aventuras, quando o menino deu por si já estava perdido no fim do mundo. No fim do mundo, ele encontra uma flor «tão caída, tão murcha». O estado no qual o menino encontra a flor é, no fundo, uma crítica através da qual José Saramago faz a ela relevo para aduzir o seu agastamento sobre o devassamento dos valores ético e moral do homem. Aliás, relativamente a isso, Saramago termina o conto perguntando: «E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?» (SARAMAGO: 2002, p. 17).
Voltando para a história, vendo o menino a flor assim «tão caída, tão murcha», ele resolve salvá-la, buscando num rio, do outro lado do mundo, através do côncavo das mãos, água, que dela só chega à flor apenas três gotas de toda água recolhida. O menino fê-lo quanta vezes fosse necessário, até que, de cansaço, ele adormeceu debaixo da flor.
Com este episódio Saramago quer que os seus leitores sejam cônscios disto: o caminho para a liberdade é longo e bastante sinuoso; ele requer muito esforço e sacrifício da parte de quem a almeje, como já defende o filósofo moçambicano Severino Ngoenha quando diz que «A liberdade é uma bela mulher que deve ser cortejada todos os dias». O acto de se desacorrentar, tirar os olhos das imagens projectadas nas paredes dos muros da caverna e alcançar o exterior, por parte do prisioneiro que se liberta da caverna, é carregado de muito esforço e sacrifício.
Enquanto isso, em algum lugar da terra descrito no conto de Saramago, longe do fim do mundo, sentindo a falta do filho, e ajudados por familiares e vizinhos da Aldeia do Pico, os pais do menino perdido resolvem procurá-lo por toda parte. Mas não o encontram (!). Aqui o acto de procurá-lo equivale a que os prisioneiros que ficassem na caverna descrita por Platão igualmente despertassem e resolvessem buscar pelo mundo que se esconde no exterior, além dos muros que os circunscrevia ao mundo das sombras projectadas na parede da caverna.
Entretanto, foi a flor que o menino ajudou a devolvê-la à vida, regando-a com o somatório dos litros que resultaram de cada três gotas correspondentes a uma viagem, que ajudou os habitantes da Aldeia do Pico a encontrarem o menino perdido: a flor cresceu tanto que podia ser vista do outro lado do mundo.
O final da história sugerida por José Saramago é feliz, como é característico em literatura infantil. Por outro lado, nada mais do que felicidade pode encontrar o prisioneiro que consegue alcançar o mundo exterior n`A Caverna de Platão. Saramago sublinha isso muito bem no conto: «as pessoas diziam que ele [o menino, que estava perdido] saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos.» (SARAMAGO: 2002, P. 15).
4. A Maior Flor do Mundo, literatura infantil para crianças de todas idades
Em linhas gerais, diríamos que literatura infantil é aquela cujo grupo alvo são crianças dos seus dois a dez anos de idade. Geralmente a literatura infantil possui texto com conteúdo de fácil entendimento para a criança que o lê, seja por si mesma, ou com a ajuda de uma pessoa mais velha.
Estudiosos da literatura são unânimes em enumerar as seguintes características para a literatura infantil: i) ausência de temas para adultos e/ou não apropriados a crianças, ii) são relativamente curtos, ou seja, não possuem mais do que 80 a 100 páginas; iii) presença de estímulos visuais (cores, imagens, fotos, etc); iv) são escritos em uma linguagem simples, apresentando um facto ou uma história de maneira clara; v) são de carácter didáctico, ensinando ao jovem leitor regras da sociedade e/ou comportamentos sociais; vi) possuem mais diálogos e diferentes acontecimentos, com poucas descrições; vii) crianças são os principais personagens da história; viii) possuem um final feliz.
No entanto, se por um lado Saramago inicia o conto dizendo que «As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples, porque as crianças sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las complicadas.» (SARAMAGO: 2002, p. 2), mais adiante da história ele ressalva que «(Agora vão começar a aparecer algumas palavras difíceis, mas, quem não souber, deve ir ver no dicionário ou perguntar ao professor.)» (Idem: p. 4), para deixar a mostra a sua veleidade em querer escrever uma história para crianças de todas as idades, porquanto existem adultos que não entendem livros infantis e crianças que entendem livros de literatura para adultos.
Há uma unanimidade entre os filósofos quando o assunto é saber-se quando se pode considerar alguém filósofo: «Para nos tornarmos bons filósofos precisamos unicamente da capacidade de nos surpreendermos» (GAARDER: 2012, p. 37). Ou seja, só se pode ser verdadeiramente filósofo quando começamos a olhar o mundo a nossa volta como se ele fosse algo novo.
As crianças, ainda pequenas, com meses de vida, começam a aperceber-se de uma realidade completamente nova, surpreendem-se com a pedra que depois de lançada ao ar volta a cair, o ladrar do cão, o gesticular das pessoas, o falar dos pais, etc. No entanto essa capacidade vai se perdendo a medida que elas crescem, passando a saber que a pedra, depois de lançada ao ar, volta ao chão devido ao efeito da gravidade, o cão ladra porque é sua natureza, assim se comunica com o ambiente que o rodeia, as pessoas gesticulam quando falam porque é sua natureza, é dessa maneira que nos comunicamos.
O poeta Mário Quinta (1906-1994) disse: «A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda». E eu digo: talvez seja da preguiça que os adultos tenham de ler obras infantis que possivelmente esteja escondida a capacidade de se surpreenderem com o mundo que nos/os rodeia.
Não sei se será manifestação eloquente da criança-adulta ou do adulto-criança que possivelmente haja em mim, mas penso que seja oportuno que as últimas palavras deste texto sejam as mesmas com as quais José Saramago inicia o discurso pronunciado a 7 de Dezembro de 1998, na Academia Sueca, quando ele foi galardoado com o Prémio Nobel de Literatura: «O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever.» (SARAMAGO: 1999, p. 5).
Referências Bibliográficas
GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia. (2011) 30a Edição. Lisboa: Editorial Presença.
SARAMAGO, José. Discursos de Estocolmo. (1999) 1ª Edição. Lisboa: Editorial Caminho.
____________, José. A Maior Flor do Mundo. (2002) 1ª Edição. Lisboa: Editorial Caminho.
Celles Leta, 22 de Novembro de 2013