Destroços e Lembranças

Quando tratamos a respeito do passado, existe toda uma lógica de ideias altera conforme a perspectiva de cada um. Nós, seres presenciais, confirmamos a experiência passada por esse hoje consequência do ontem. Não entrando aqui em uma discussão temporal, como outras vezes me aventurei, pretendo apenas tratar do relativismo. É fato que os fatos ocorridos na vida de cada um acabam por marcar, fazendo com que tenhamos mais atenção a uns e menos a outros, como lembramos de alguns e esquecemos de outros. Recordar faz parte do que somos e daí a necessidade de memória, embora saibamos que ela seleciona muito pouco do vivenciado e tende a alterar ou mesclar com novas vivências, já que sua capacidade de armazenamento é limitada.

Muitas vezes nos deparamos com frases como “quem vive de passado é museu”, outras vezes, diante de alguém que tenta preservar um patrimônio histórico, dizem, “porque devemos ligar para essas ruínas, poderiam investir em algo mais benéfico para a população”. Eis a primeira perspectiva que tratamos nesse ensaio, a dos destroços. Destroço é tudo aquilo que se avoluma e não se vê sentido. Mesmo diante de uma catástrofe, quando ocorre um desabamento, uma enchente ou mesmo conflitos em guerra, dizemos que buscamos explicações, vítimas, sobreviventes, enfim, tudo que está embaixo dos destroços. O destroço é o que impede, possui efeito de barricada, como um obstáculo que interfere no desejo de ir além. Tratamos como destroço aquilo com o qual não nos identificamos, daí a crença em uma pilhagem inútil e que atravanca o chamado progresso.

O museu, infelizmente, muitas vezes assume esse perfil de destroço. Muitos observam como velharias acumuladas o que ali está contido, por faltar esse ponto essencial de identificação. É possível observar, que mesmo nos relacionamentos, se por exemplo, um parente consangüíneo se fez distante por longos e longos anos, criamos mais afeição as pessoas que estavam em convívio conosco, pois ocorre a proximidade que é fundamental ao valor que damos ao que nos cerca. Quando se criam políticas de amnésia para a população, temos um povo que recolhe destroços, vivendo em uma apatia alienada. A falta de identificação faz com que muitos possam aderir a novas propostas, que tentam influenciar e acolher esses tantos desmemoriados. O resgate pelos valores históricos de um povo, daí a necessidade de historiadores, antropólogos, filósofos, geógrafos, sociólogos, geólogos, paleontólogos, arqueólogos e tantos outros profissionais empenhados em perscrutar o ideário humano, são a busca por essa identificação essencial ao desenvolvimento humano.

Por outro lado, como segunda perspectiva, apresentamos o argumento da lembrança. Lembrar é algo convidativo, tem a ver com o que nos toca profundamente, a ponto de desejarmos preservar. A saudade é uma fonte de satisfação da lembrança, que busca se concentrar e permanecer. A permanência é essencial em certos aspectos do desenvolvimento social, pois ela dará um sentido de coesão, fazendo com que possam se unir em um ideal comum. Essa identificação geral é que valida movimentos revolucionários e formas de resistência que tem surgido ao longo da história. A perda de um ente querido, além da dor sofrida pelo rompimento abrupto que a morte proporciona, também é a capacidade de se lembrar, intensamente, por ser algo de melhor que desejamos preservar em nós mesmos. Não se vive uma lembrança como destroço, pois ela é um motivo e não empecilho. Lembrar é acreditar em algo que apesar de ter aparentemente passado, continua se fazendo presente, vivo, uma inspiração.

Portanto, o questionamento apresentado se refere ao que desejaremos fazer com nossas memórias. Devemos transformá-las em lembranças ou destroços? As motivações ou falta de motivos são muitos, a seleção cabe a cada um de nós, que faz parte desse corpo social, com intuito de buscar uma transformação ou estagnação diante da realidade, que a cada dia se modifica e não deixa de acontecer por conta de nossas escolhas. Mas claro, que o chamado “real”, pode também ser maleável conforme a vontade do observador, que pode se deixar alterar, fluindo junto com esse fluxo vivente. A indagação sartreana, sobre a questão estar concentrada não no que fazem de nós, mas no que nós fazemos do que fizeram de nós. A memória atua como efeito do feito sobre o indivíduo, mas se ele fará disso um destroço ou uma lembrança, se lhe servirá como empecilho ou incentivo, cabe a cada um esse poder de decisão.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 18/07/2013
Código do texto: T4392898
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