As Casas
Quando pensamos a respeito da casa, esse lugar que se faz de lar, imaginamos diversas inspirações a respeito, desde os romances, quanto às obras de viés pesquisador, impossível não vir á mente uma “Casa Grande e Senzala”, para quem já obteve o privilégio de ler tal clássico. Mas as casas podem demonstrar diversas outras funcionalidades e peculiaridades no ambiente social.
Outrora, imaginávamos a precariedade humana em relação ao poder de outras espécies da natureza, fazendo com que se acolhesse em verdadeiras tocas, com intuito de se resguardar. As antigas cavernas serviam bem a este propósito, já prontas e profundas, onde outros mamíferos já usufruíam de sua suposta segurança. A sociedade se modifica, bem como seus valores, fazendo com que a moradia passe a ter outras funções. Identificamos o desejo por conforto e de peculiaridades que irão diferenciar uma da outra, criando a ideia de propriedade privada, não querendo resignar a questão de propriedade de forma tão simplista.
Aparecem distinções de classe, os status que cada casa podem ter, levando em consideração o gasto com sua construção, localização etc. Mas, o homem muitas vezes se esquece dessa materialidade que o abriga. A porta de entrada é o convite ou a barreira para que se entre, com sua figura imponente se faz de porteiro, ficando resignada a velar o interior ou mesmo sofrer agressões de quem deseja ultrapassá-la. A porta de saída, tanto serve como o impedimento para quem está recluso, como a maneira de escoar aquele que deseja libertar-se, sofrimento e alívio, como o segundo porteiro magistral. Outras portas fazem o mesmo serviço internamente, com sentidos mais privados, preservando pudores em um sanitário ou aconchegando doces gemidos no quarto de amantes.
As janelas são verdadeiras vitrines, onde podemos vislumbrar o exterior, o que causa a angústia de também ser visto, o interior fica exposto. Daí a necessidade de recursos e vidros. Estes adereços podem ocultar o que está dentro, mesmo que muitas vezes não o prive de ver o que há fora, como é o caso do olho mágico da porta e outros sistemas de vigilância. Essa é a primeira forma de panóptico, onde o sujeito passa pela rua e sente que pode estar sendo observado por alguém atrás de uma cortina ou algo parecido, quem sabe de uma tenda indígena. O que está dentro, possui a segurança da casa que o cerca, cravando os olhos de forma acintosa ao transeunte passivo de observação.
Os cômodos são ambientes diferenciados que transmite a sensação de mais de um lugar estando no mesmo local. Podemos transitar pela moradia, com aquelas surpresas de cada área, o que permite a arquitetos e decoradores, explorarem a ambição por estética, que fará com que a pessoa não se entedie com o habitual. Destinar cada parte a uma função, exerce o poder do ordenamento social.
A área das refeições, onde é possível mutilar as presas que serão consumidas e tratar de tudo que a parte gastronômica exige. No que se refere aos sanitários, existe o apelo à higiene e necessidades fisiológicas, que cada vez mais passam a ser saneadas. O quarto é o abrigo do corpo exausto, como também a satisfação da libido, por isso existe esse ar sacro nesse ambiente, onde reina uma maior preocupação em resguardar algo tão íntimo. A sala é o local de recepção. Ali, existe a necessidade de socializar, o que faz com que muitas agreguem atrativos manifestando uma vontade além daqueles que ali residem. A modernidade trouxe aparelhos de som, imagem, para que multidões presentes. Local de reuniões abertas, ao contrário de cômodos mais formais, próprios para certos debates. Muitos outros cômodos foram criados e aperfeiçoados ao longo do tempo.
Na área externa, temos a rua se movimentando bem próxima, o que reforça a necessidade em demonstrar limites. Obstáculos para os que estão do lado de fora, são um aviso dos limites a que devem obedecer. Muros, cercas e outros obstáculos, são os vigilantes, que a princípio protegem os de dentro e afastam os de fora. Existe a área de transição onde o sujeito caminha para fora ou volta para a segurança do lar. Alguns tornam essa área atrativa, como um convite aos que observam o lugar, outros já se contentam em demonstrar que o estranho não é bem-vindo, com animais ferozes e outras formas de manter distante o outro. Animais, plantas, são todos adaptados ao ambiente, a moradia estabelece o limite do que está fora e também do que está dentro. Sabemos até onde podemos ir, qual parte nos pertence, como devemos nos comportar até certo ponto, já que existe um comportamento privado distinto do social.
O ato de convidar alguém para que nos visite e a apresentação da casa é uma forma de demonstrar nossa privacidade. A maneira como se organiza uma residência, pode dizer muito sobre quem vive nela. Um sofá macio em frente uma televisão pode indicar uma pessoa com hábitos televisivos, mas claro que certas impressões são bem superficiais. A forma como se estrutura a casa é que se torna curiosa, dificilmente se desvirtua o padrão social. Não encontramos muito uma pessoa que dorme no banheiro ou defeca no quarto. Claro que existem quartos com banheiros, mas me refiro a uma privada no meio do quarto. Porque foi estabelecido o perímetro de higienização e ele não deve ser transposto. Existe um código de segurança dentro do próprio habitat. Os corredores em casas, servem como dutos misteriosos que desaguarão em algum local, por isso costumam ser pouco explorados, já que não são o atrativo, mas apenas uma condução aos cômodos.
As casas são essa extensão da natureza humana, que perverte a natureza em função de suas próprias condições de existência. Elas acompanham nosso processo existencial, fazendo com nos identifiquemos mais essa materialidade que nos abriga e promove a interação ou interrupção de relações. A moradia é o usufruto da territorialidade, onde o homem se vê diante do espaço e começa a promover suas demarcações políticas, interagindo com os outros familiares, ou os que moram só, com os próprios limites de nossa natureza multifacetada. A história das casas se confunde com a nossa história, já que estamos conectados, nesse desejo de preservação, que mantém seus alicerces mesmo após a extinção de muitas sociedades, deixando essa herança para as gerações vindouras, que também possuíram suas tentativas de permanências e seus legados monumentais.