Desmemoriados

O processo de esquecimento é uma característica essencial no ser humano, conforme expus em outros ensaios. O homem não possui essa capacidade de armazenar todas as impressões recebidas. Talvez nenhum outro animal e quem sabe o homem pode ser um dos que mais conseguem fixar algo na mente, dando a isso o nome de memória. Ao longo das experiências, filtramos e guardamos uma seleção bem restrita, o que faz com que possamos ir acumulando novas memórias, sobrepondo-se às antigas. Claro, que algumas são marcantes, a ponto de persistirem ao longo de uma existência, conservando esse estímulo potente. Percebemos a necessidade de lembrança e uma maior necessidade de esquecimento, eis o ponto focado. Ao mesmo tempo, parecemos acumular uma espécie de arquivo, onde vez o outra, aparecem lembranças que não sabíamos estarem ali guardadas, com gatilhos que fazem com que apareçam e se revelem.

Existe outro ponto no que se refere ao esquecimento, que se faz um tanto quanto nefasto nas relações humanas, a falta de prioridade ao que é esquecido. Acordamos com uma agenda atribulada, são tantos os afazeres de uma vida que se predispõe a fazer algo. Por exemplo, o sujeito tem como meta o trabalho, ele se prepara todos os dias para aquilo, porque existe a necessidade de sobrevivência em uma sociedade de assalariados. Quando alguns desejos falam mais alto, como o sexual, logo tratamos de saná-los. Quando feridos, a busca por uma solução que faça a dor extinguir é algo motivador. Tudo é esquecido e concentra-se apenas no que possa solucionar o drama vivido. Se na memória existir algo que possa auxiliar, como um conhecimento quase esquecido de primeiros socorros, quem sabe possa emergir e estancar um ferimento.

Outro fator importante é o da renovação. Já que é preciso que memória venha agregar novos conhecimentos, a medida que vivemos e vamos absorvendo o que nos é oferecido pela vida, acabamos nos vendo impelidos a suprimir algo que esteja ocupando constantemente nossa mente. Vamos à prática. Muitas vezes nos irritamos com a rotina, o chamado cotidiano, pessoas amadas como nossos familiares, se tornam entediantes, porque a continuidade daquela aparenta realidade corriqueira, faz com que a memória busque novos atrativos o que faz com que torne desinteressante o habitual. Entramos na faculdade, maravilhados, e depois de alguns anos, desejamos sair o mais rápido possível. Ganhamos um animal de estimação, aquilo é magistral, com o tempo é um enfado até mesmo alimentá-lo. O mesmo se aplica as enfermidades. Pessoas caem em prostração por causa de alguma doença, a família cuida, mas ao longo dos anos se torna uma exaustão. Isso não significa que não seja importante auxiliar as pessoas e conviver com elas, mas existe um conflito da memória que deseja suprir sua necessidade de vida. Alguns casais começam a ter filhos ou a buscarem parceiros fora do casamento, por conta dessa luta contra a rotina.

Percebe-se que a importância é real. Basta o falecimento de um ente, logo caímos em um abismo. Não desejamos mais esquecer aquele que foi para o maior de todos os abismos, o túmulo. A morte é esse esquecimento fatal e intransponível, daí a necessidade de se fazer além dessa vida. Os que tentam acompanhar essa imposição da memória, além de viverem uma vida muito artificial, já que nada conseguirá satisfazer esse desejo do novo, estará caindo em um embuste, pois não se livrará da maior figura cotidiana de uma vida, que é sua própria existência. Não podemos fugir de nós mesmos, eis o desespero dos que se drogam e tentam fugir desse ser monótono. Talvez, a solução esteja em perceber a mudança no que se apresenta constantemente e ao temos a sensibilidade de perceber. Nós mudamos, o mundo muda, as pessoas, como nós, mudam. Não podemos nos desligar desse mundo, nem mesmo depois de mortos, mas aprendemos a conviver com suas maravilhas. Cada pessoa é um mundo. Uma esposa está sempre a desabrochar como uma flor rara e de perfume inigualável. Podemos surpreender no trabalho ou em um simples gesto cordial a uma pessoa desconhecida na rua. Nos olhamos através do espelho e notamos a diferença, mas a real mudança ocorre dentro de cada um, perceber o processo faz com que o olhar do observador altere tudo a seu redor e fará com que não precise da perda suprema para conseguir avaliar a importância desse infinito que se repete diante de nós. O amor é essa força que faz enxergar a cada ato um universo e em cada percepção uma saborosa eternidade.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 29/06/2013
Código do texto: T4363786
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