Nelson Rodrigues: o “anjo pornográfico” guardião da criatura humana, órfã de Deus

23 de agosto de 2012: Nelson Rodrigues estaria comemorando 100 anos. Ruy Castro, no livro “O Anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues” (1992, p.11), diz o seguinte: “No dia 23 de agosto daquele ano […] Nelson abria os olhos para a realidade além-útero e se sentia expulso do paraíso materno…” Na cidade do Recife, acabava de nascer Nelson Falcão Rodrigues, um dos grandes nomes da Literatura Brsileira. “Aquele ano” era 1912, uma distância de cem anos deste 23 de agosto de 2012..

Quando o menino tinha oito anos, no cenário de uma sala de aula, nasceu escritor. O menino Nelson trouxe à luz uma primeira revelação do que seria Nelson Rodrigues Falcão, o prosador, o jornalista , o dramaturgo.

“Um dia Dona Amália anunciou que, em vez de escrever sobre imagens que ela lhes mostrava ( geralmente gravuras de animais domésticos, como vacas ou pintos) cada um iria discorrer sobre o que quisesse. As composições foram escritas e entregues no mesmo turno de aula. Dona Amália passou os olhos sobre as folhas de caderno, quase caíram-lhe os óculos, ao ler uma delas. E, por via das dúvidas, selecionou duas vencedoras. […] a de Nelson era uma história de adultério. Um marido chega de surpresa em casa, entra no quarto, vê a mulher na cama, e o vulto de um homem pulando pela janela e sumindo na madrugada. O marido pega uma faca e liquida a mulher. Depois ajoelha-se e pede perdão (CASTRO, 1992, p. 24).

Cheia de estranheza lendo uma história assim, escrita por uma criança de oito anos. Dona Amália levou o fato ao conhecimento do corpo docente da escola. Uma comitiva de professoras foi à sala de aula. E ficaram olhando para aquele menino de oito anos, o qual

“confessaria depois que, ao sentir-se tão olhado, adorou pela primeira vez ser o centro das atenções. A redação de Nelson não tinha como não ser premiada, mas não podia ser lida em classe. Então premiou-se também a do rajá no elefante , e só esta foi lida em classe. Mas, intimamente, Nelson sabia que havia sido o único vencedor” (CASTRO, 1992, p. 24).

Era a primeira convivência com a “censura”, a interdição que dava o prêmio ao outro menino. E penso que posso fazer uma analogia: Nelson Rodrigues não foi um “imortal” da Academia Brasileira de Letras, mas está imortalizado na herança da produção literária que deixou para o Brasil.

Teriam razão as censoras?

De um menino de oito anos, espera-se que tenha um imaginário povoado de heróis do mundo ainda inocente das crianças. Nem sempre, entretanto, é assim.

Não só hoje, como também naquela época, o imaginário de muitas crianças vai sendo marcado por experiências de uma realidade violenta, onde a fantasia não tem verdes ramagens, nem lindos sonhos, nem frutos apetecíveis. É um cenário que pode tornar-se nascente de águas turvas que desfigurem a inocente face da infância.

No que se refere ao pequeno Nelson, em agosto de 1916, os Rodrigues foram morar no Rio de Janeiro, num subúrbio, a Aldeia Campista, onde ficava a Rua Alegre, hoje Rua Almirante João Cândido Brasil. Foi aí, logo após a mudança, que Nelson fez quatro anos,

Do cenário da Rua Alegre, “Nelson espremeria até a última gota de suco, em suas futuras peças, romances, contos e crônicas” (CASTRO, 1992, p. 22). A história “censurada”, que o menino de oito anos não foi autorizado a ler para a turma, talvez tenha sido a primeira de uma dessas gotas de suco da Rua Alegre.

Tendo como referência Ruy Castro (1992, p. 25), podemos reconhecer, nessa história ”censurada”, um traço da paisagem suburbana da Rua Alegre, onde enredos não-ficcionais com desfechos menos trágicos, podiam ser reconhecidos naqueles criados pelo futuro ficcionista, que de si mesmo disse (1997): “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico (desde menino)”.

Dizer de si mesmo, que era e sempre tinha sido, desde menino, um “anjo pornográfico”, parece uma definição muito paradoxal que Nelson Rodrigues deu de si mesmo. Como pode ser entendido este “anjo pornográfico”? Qual a abrangência do sentido da palavra “pornográfico”, no contexto do universo rodrigueano?

Um sentido de “pornográfico”, na Língua Portuguesa do Brasil circunscreve-se a situações que ferem o pudor, à indecência, à devassidão. E isto, em geral, remete apenas a sexo. Nós nos esquecemos de uma outra amplitude do que pode ser “pornográfico”, e que engloba agressões à dignidade humana, à ética.

Nelson Rodrigues não se esqueceu de que o significado de pornográfico vai para além da agressão ao pudor, no que se refere a sexo. Em suas obras, fala de sexo, de sangue, de famílias malditas, da miséria humana, numa patética e despudorada exposição das chagas sociais.

Sua obra lacera as vestes da humanidade, tecidas de hipocrisia e de uma moral nem sempre ética. “Nelson vê no dilaceramento humano o caos, a desordem, a morte (MAGALDI, 1992, p. 79). É uma ostensiva laceração , sem pudor, É o absurdo da condição humana dado à nossa contemplação.

A voz do ficcionista, do dramaturgo, do jornalista, do “anjo pornográfico” subverte o culturalmente estatuído, o moralmente desejável, conspurca mitos de relações amorosas sacralizadas.

É a voz que, dos oito aos sessenta e oito anos, não se calou, mesmo quando amordaçada pela censura. É a voz que parece ter emudecido na manhã do dia 21 de dezembro de 1980, um domingo, quando faleceu, no Rio de Janeiro,

Mas, na verdade, o menino não se calou e continua, na monumental herança de sua arte de brincar com a palavra, o mesmo “anjo pornográfico”, a denunciar as diferentes formas de pornografia protegidas por simulacros que escondem formas, as mais cruéis, de agressão ao ser humano.

Nelson Rodrigues, o dramaturgo é um ícone. Entretanto também no romancista, no contista, no cronista, no jornalista existe o brilho de uma estrela de primeira grandeza.

Como romancista, usou um pseudônimo, um nome de mulher: Suzana Flag. Mas o “anjo pornográfico” também aí está, numa urdidura de enredos fantásticos, dramáticos, românticos, misteriosos, enunciando temas carregados de morbidez e ironia cínica. É numa teia de intrigas que, à semelhança da moira, condena as personagens, inexoravelmente, à culpa, à morte, ao desejo interditado, à loucura, ao paradoxo amor x ódio, à traição. O primeiro dos nove romances, “Meu destino é pecar”, publicado em 1944, teve adaptações para uma novela de rádio, para um filme, para uma minissérie da Rede Globo e para uma peça de teatro.

Só tardiamente é que Nelson Rodrigues passou a ser reconhecido como um dos grandes contistas da Literatura Brasileira. Uma causa pode explicar por que um escritor consagrado como dramaturgo não tenha o mesmo mesmo reconhecimento, quando se trata das faces de sua criação literária. Ruy Castro, na contracapa da antologia “A vida como ela é: o homem fiel e outros contos” ( RODRIGUES, 1994) assim diz:

A vida como ela é... (com reticências e tudo) era um conto que Nelson Rodrigues escrevia diariamente para Última Hora, o jornal de Samuel Wainer. Durante dez anos, de 1951 a 1961, Nelson criou quase duas mil histórias de amor, paixão e morte em torno de um tema único e obsessivo — o adultério. [...] Talvez por isso — ou porque “A vida como ela é ...” saísse junto à seção de crimes de um vespertino — os contos de Nelson pareciam “fora da literatura”. O preconceito impediu que ele fosse reconhecido como um dos grandes contistas da língua. A reabilitação começa agora com este primeiro volume de “A vida como ela é...”, com 45 das histórias favoritas do próprio Nelson.

Nas histórias de “A vida como ela é”, percebem-se influências de “casos que lhe contavam, da sua própria observação dos subúrbios cariocas ou das cabeludas paixões de que ele ouvira falar em criança. Mas, principalmente da sua meditação sobre o casamento, o amor e o desejo” (CASTRO, apud RODRIGUES, 1994).

Assim como o contista, também o cronista Nelson Rodrigues, não teve o mesmo reconhecimento que o dramaturgo. Mas não se pode negar a importância do cronista que, de 1950 a 1970, num estilo polêmico e iconoclasta, enseja uma leitura crítica do Brasil urbano. São crônicas classificadas como esportivas, sociais, comportamentais e memorialistas e se estruturam como comentários do cotidiano.

O universo tragico da dramartugia rodrigueana tem feições de tragédias clássicas, com heróis que, condenados ao aniquilamento, despertam “o horror e a piedade”, segundo o dizer aristotélico. Seres obcecados por paixões avassaladoras, tornam-se vítimas da inexorabilidade de um destino, que não é traçado pelos deuses, mas pela contingência humana. Um horror sem precedentes é dominância nos enredos: paixões, neuroses, homicídios, suicídios, incestos, loucura e o desalento de uma solidão sem precedentes. Nenhuma das dezessete tragédias está imune à atmosfera de nonsense em que homem toma consciência do “desgarramento de uma unidade perdida, inconsolável órfão de Deus.

Há um deblaterar insano em terreno hostil. Resta o sentimento permanente do logro - a vida prega uma peça em todo mundo” (MAGALDI, 1992, pp. 66). Há um apagamento da consciência, na medida em que se realiza “um mergulho na consciência primitiva do homem” (MAGALDI, 1994, p. 37). Desreferencializadas, multifacetadas, as personagens são profundamente dilaceradas, por paixões que as colocam como margens de texto, porque em “insana” rebeldia à moral vigente.

Como exemplo desta feição de tragédia clássica na dramaturgia rodrigueana, podemos lembrar “Álbum de família”, que atualiza a temática do guénos maldito, eixo de duas trilogias gregas: “Trilogia tebana” (“Édipo rei”, “Édipo em Colono” e “Antígona”), de Sóflocles e “A Trilogia de Orestes” (“Agamenon”, “Coéforas” e “Eumênides”). Como guénos maldito, “Álbum de família” enreda uma teia de relações incestuosas, de paixões homossexuais, de um patético desamor que num sacrílego estraçalhmento dos “sagrados” laços de família.

Sobre as “Tragédias cariocas” Sábato Magaldi ( 1994, p. 68) enfatiza: “Dramaturgo que evitou o panfleto político, por conhecer os maus resultados literários do proselitismo de qualquer espécie, ele acabou por realizar um doloroso testemunho sobre as precárias condições de sobrevivência das classes desfavorecidas financeiramente". Uma das “Tragédias cariocas” é “Boca de ouro”, cuja trama vai tecendo, de forma inexorável, a negação do desejo de um ser humano socialmente rebaixado: o bicheiro da Madureira. “Trabalhando” na ilegalidade do jogo do bicho, a personagem tem o sonho de vingar-se do rebaixamento social. Por isso ostenta suas arcadas dentárias em ouro maciço e antevê a a glória de ser enterrado num caixão de ouro. Mas é assassinado, roubam-lhe os dentes de ouro e ele não pode encomendar nem pagar um caixão de ouro. De um necrotério qualquer, foi levado ao túmulo e sepultado sem o esplendor de um esquife de ouro.

E assim a ficção rodrigueana vai realizando sua trajetória no tempo, sem ameaça de esquecimento. Ao contrário, terá sempre espaço na atualidade, mediando a aprendizagem da sabedoria que sustenta a vida, apesar da condição trágica – inerência de nossa humanidade.

Concluindo, posso dizer que o estudo sobre Nelson Rodrigues aqui apresentado tem a natureza de um ensaio, é breve. Mas, na brevidade deste texto, quero estar em comunhão com os que celebram a presença viva deste escritor centenário e a perenidade da obra que compôs, com a coragem do “anjo pornográfico”, guardião da criatura humana, órfã de Deus.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Ruy. O Anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

MAGALDI, Sábato. Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações. São Paulo, Perspectiva, 1992.

_________________ (Organização, introdução e notas). Teatro Completo. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994.

RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é: o homem fiel e outros contos. Nelson Rodrigues, seleção Ruy Castro. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992.

___________________. Flor de obsessão. São Paulo: Ciompanhia. das Letras, 1997.

Professora Maria Felomena Souza Espíndola

Mestre em Literatura Brasileira

Membro da Academia Tubaronense de Letras – Cadeira 20