Ler é Despedaçar-se

Eu leio!

E quando faço, não dou conta de um livro como as pessoas sugerem. Pois aquela encadernação me vem seduzindo para que possa violá-la. Não importa se a capa cheira a mofo ou se tem aroma de plastificação, ela pede para que eu a estupre com meus olhos e dedos. Vou adentrando o volume, abrindo as páginas, que revelam sua indecência masoquista, que me impele a prosseguir, desnudando até soltar pedaços, que se movem em fragmentos gráficos. A cusparada que a pessoa ao lado lança na ponta do dedo, ao manusear o papel, apenas revela essa libido de tocar com os dedos, de molhar esse ser invaginado, retraído perante o ato que ele mesmo induziu.

Não molho os dedos. Penetro rudemente, deixando as letras formarem palavras que se juntam em frases, até que ganhe um corpo textual, que irei tecer conforme meu frenesi. Sou nojento. Por isso irei travestir conforme minha vontade, farei dessa vítima carrasca, uma forma de manusear eu mesmo, entre linhas visivelmente invisíveis. A margem diz que estamos aprisionados, uma alcova literária, onde provo o gosto dessa escrita de tinta seca. Toco sem sentir o relevo da fonte, desejando ser cego para ter relevo em braile. Mas minha cegueira é latente, ou pelo menos me forço a acreditar nisso.

Corro olhos que seguem laudas sujas, ocupadas por rabiscos que tentam se fazer ordenados, com intuito de me remeter a um padrão. Só que eu escapo, chegando a escorrer. Por isso babo fonemas, em um muxoxo patético. Os signos vão sendo gravados na mente, sou possuído por uma entidade ortográfica. Vez o outra regurgito o espírito que me habita. É quando produzo mais dessa anarquia ordenada. Serpenteando por superfícies que dobram, aceitando meu ato invasivo. Prisioneiro de um processo cíclico.

A tristeza aparece ao objetivar esse suposto dado, já que observo a “vaca”, que não é o ruminante que pasta a alguns quilômetros daqui. Tenho apenas essa maquete, que mata o animal e viola meu senso estético, criando paralelos em um silogismo que forma fantasmas, ou seja, sinônimos. Costuro cada caractere em uma trama de agulha epiléptica, em que cada espasmo é um ponto de crochê. No final, terei um tecido deformado, torto, renegando a simetria. Uma Ariadne esquizofrênica, que cria milhares de labirintos para seu Teseu, sabendo que o objetivo sempre será o de buscar a saída, mas nunca encontrá-la.

Quando comecei no Capítulo Um, me tornei qualquer coisa, menos uma unidade. A medida que caminhei pelos traçados, vi que vários eu’s foram lançados ao longo desse caminho. Falar sobre um deles já não posso, muito menos sobre todos. Me fiz de migalhas lançadas ao vento. Que alguém possa recolher uma porção sequer e dizer que fui isso ou aquilo, o que já seria muito. Me fariam de um marcador efêmero, que pode pontuar, como qualquer gota de saliva ou tinta, quem sabe desse sêmen ou qualquer outra forma de secreção.

Meu cérebro capta palavras e finge ler, pareço ter uma boca cerebral, que profere fazendo eco na mente. O verbo que deflora em sinapses. Em pensar que fui induzido a crer em meu estado de algoz, mas não passo de uma vítima inocente. A armadilha me coloca em estado de alerta, para que eu fique inquieto e possa me comprometer ainda mais. Cada livro é texto de palavras com frases feitas de letras em caracteres simbólicos que devassam meu ser, até que não reste mais nada a ser feito, pois sou apenas um feto que nunca floresceu, mantendo-se ligado a essa matriz que o conduz, seduz, reduz, induz. Nem posso morrer, porque até para morrer é preciso estar vivo e para isso eu precisaria nascer.

Então fico... e me abrigo.

Reduzido e consumido.

Nada mais que isso.