Portas ou Portais
Chegando uma residência, na maioria delas, principalmente as de alvenaria. Iremos nos deparar com o objeto denominado porta. Não falo daquelas esquadrias que ficam ao redor, muito menos do retângulo feito, escavado, que irá abrigar. Mas daquela madeira bruta. A porta dá o sentido de obstáculo, aquilo entre, onde estou e onde pretendo estar. Não conseguimos adentrar a porta, ela é rígida demais para isso. Para abri-la, utilizamos estratagemas. Vazamos a porta com uma fechadura, nela introduzimos a chave. A chave abre a porta.
Eis o primeiro equívoco, a chave apenas abre a fechadura, a porta continua fechada. Ultrapassamos o ambiente, apenas desistindo da porta, deixando-a de lado, mas não ultrapassamos sua solidez. Mesmo olhando pela greta da fechadura, veremos o interior vazio, da ruptura que o mecanismo causou, mas a substância da porta, continua vela. Talvez a fechadura saiba do que se trata. A chave penetra a fechadura, rodopia dentro dela, mas também não alcança a essência da porta.
O sujeito que se porta, torna-se rígido demais. Portar-se, ou seja, ser porta, é algo bruto conosco e com os outros, já que no máximo, conseguirão utilizar fechaduras para transpor a nós, enquanto obstáculos. Existindo também a forma violenta de arrombamento, quando agredimos a porta, arrancamos pedaços. Uma fúria contra esse objeto indiferente aos apelos de penetração. Precisamos nos transformar em despedaçadores, para arrancar porções dessa madeira rude.
Em compensação, existe outra estrutura que na verdade está implícita e explícita na porta, onde utiliza esse enquadramento para manifestar-se. O portal. Essa dimensão que se abre em toda porta, que a madeira tenta nos impedir de ter acesso, mas que já percebemos pelo próprio obstáculo, que se faz entre. O portal abriga a ideia de planos distintos em um mesmo plano, uma transposição. Adentramos a cada instante uma outra dimensão, sendo que todas fazem parte de um mesmo buraco negro.
O portão é uma tentativa de junção, da porta e do portal, por isso é uma porta vazada, gradeada, com lacunas, que deixa algo escapar. Podemos ultrapassar um braço, nosso membro ficará habitando duas dimensões naquele momento, um dentro e um fora. O dilema do “Gato de Schrödinger”, estamos vivos e mortos ao mesmo tempo, já que fomos partidos, vivos para o fora e mortos para o dentro ou vice-versa. Uma lógica de mutilados, as grades são como serrotes, elas nos decepam os membros. Somos manetas mesmo visualizando a mão do outro lado, puxamos ela para dentro e temos a reconstituição do membro, feito prótese instantânea regenerativa.
Pensemos também no fator multidimensional, onde atravessamos várias estruturas, diversas partes do corpo atravessando e sendo atravessadas. Seria uma espécie de reencarnação budista, onde o espírito ocupa diversos corpos em uma mesma existência. Somos feitos muitos, ainda nos concebendo enquanto um. A internet dimensiona essa virtualismo, a ideia de portal faz parte da rede, onde habitamos várias dimensões, outras que nem damos conta, também nos percebem. Algo mais sofisticados do que aqueles filmes de ficção científica com viagem temporal, assim como teletransportes, onde vemos apenas o corpo todo ir de um ponto a outro.
Aqui nosso corpo é dividido, vários corpos. Os portais nos mostram como podemos desdobrar, expondo o fora de nós mesmos. O dentro inexiste. O portal é o vácuo ocorrido na dobra, aquele espaço vago que a curva fabrica, se desfazendo, quando desdobramos. Essa é a “verdadeira” forma de passagem, onde as portas se dissolvem, bem como as fechaduras, chaves, os portais são diluídos. Eis a própria analogia com a morte, chamada de “passagem”, que é assim percebida, pela dobra de nosso corpo. Só existe morte por causa da dobra, que causa essa vácuo de passagem. Desdobrando, não há mais o que ser transposto. O buraco da fechadura, são as religiões, um nada dentro de outro nada, um simulacro de portal, que não percebe a matéria bruta da porta e nem a fluidez do portal, prendendo-se apenas nessa busca por chaves.
O portal virtual pode ser vivenciado em diversos momentos, seja na transmissão sonora, onde captam o que fala à distância, uma imagem transmitida a milhares de pessoas em “tempo real”, talvez mais irreal. Quando vemos um membro decepado, como uma perna amputada, por exemplo, é como se aquilo não fizesse mais parte de nós. Nosso corpo tornou-se outro corpo. Mas quando atravessamos um portal, como no caso das grades, somos o outro estando no mesmo. Percebemos nunca ter sido os mesmos, mas somente esse outro dobrado. Não é apenas questão de estética visual.
Somos atravessados por portais, devido a imensidade de dobras que existem, em uma interação voraz. Somos aquele membro castrado no ato sexual, o bebê que no exame pré-natal, se projeta para fora do útero. Mesmo no parto, ainda existe aquela mistura ocorrido com o cordão umbilical, onde rompe-se mais uma porta, com força bruta, cortando em pedaços. A herança genética é desdobramento de habitar mais de um território, assim como os resquícios de gerações passadas, que se projetaram. Cada um de nós, esse outro molecular, que vem desde tempos remotos. Habitando dimensões diversas. Pensemos nas palavras de Aristóteles quando concebia que os animais se perpetuavam enquanto espécie.
Imaginemos não a espécie, no sentido apenas classificatório de gênero, mas abrangendo o sentido de linha. As dobras são subgrupos. A linha segue cosendo, de formas inimagináveis, dobrando e desdobrando, fazendo seus pontos, traçados, enredando. A linha das primeiras bactérias, continua a percorrer, passando por nossos corpos, assim como de outros seres que habitam o que chamamos mundo. Quando flexiona e dobra, temos a impressão de grupos, daí a ideia taxonômica de espécie, com seus gêneros distintos. Produzindo uma série de portas, que suas vacuidades de portais em conflitos constantes. Um desejando transpor o outro, sendo que não existe o “um” e o “outro”.
Para concluir esse ensaio, onde começa o “eu” e termina o “você”? Estamos misturados, além do que os olhos e as sensações mais imediatas possam conceber. Somos tudo por não sermos nada. Disso surge a ideia de deus, está em toda parte, não estando em parte alguma, a figura multidimensional, nós mesmos projetados. Dostoiévski já decretara : “Então, se Deus não existe, o homem é o dono da terra, do universo.” (DOSTOIÉVSKI,1967:1082). Ainda seguindo o romance dostoievskiano: “...“...mas como deus e a imortalidade não existem, o homem novo tem amplo direito a se transformar num homem-deus, seja êle embora o único da sua espécie, na terra; e depois de atingir êsse grau elevadíssimo, é-lhe permitido transpor, de coração leve, as fronteiras morais do homem escravo, se o julgar necessário. Não existem leis para Deus; o lugar onde êle está é um lugar santo.. ‘Onde quer que eu esteja, é êsse o local principal...’ ‘Tudo é lícito’, está dito...” (DOSTOIÉVSKI,1967:1082)
Referência Bibliográfica:
DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovicth. Os Irmãos Karamázovi. Introdução: Otto Maria Carpeaux. xilogravuras: Axel de Leskoschek. tradução: Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. (Obras Completas e Ilustradas)