O NARRADOR
As histórias (quaisquer que sejam) e a História (toda ela) têm um dono. Não. Não me refiro ao autor. Não. Tampouco aos editores! Também não falo dos que representam a indústria da arte contemporânea. Falo do narrador.
O narrador. Este ser criado e imaginado e experimentado por seus criadores: os pobres autores! O narrador. Este ser entre o real e o imaginário, o ambíguo e o contraditório. Tímido ou panfletário...
Somos capazes de acreditar no que ele diz. Somos capazes de odiá-lo. Amá-lo?
Ao acabar o seu texto, o autor morre. O narrador não. A palavra é sua. As verdades e as mentiras, as nuanças de cor e as dúvidas que encerra. Tudo o que disser, sendo ele personagem ou não, sairá da sua boca como se fosse vida.
Em Grande Sertão Veredas, o desesperoamorpaixão de Riobaldo por Diadorim é o desespero amoroso do narrador. As falas monossilábicas de Fabiano, em Vidas Secas, são a aridez e a contenção do narrador. O riso, a crítica, a língua e o olhar de João da Ega, em Os Maias, para além de Eça, pertencem ao olhar e à língua do narrador. O mistério e as sombras que acompanham Tomás Manuel da Palma Bravo, assim como as desventuras do caçador-escritor, para além de Cardoso Pires, são o nevoeiro e as desventuras do narrador (este, no caso, narrador-personagem – muito apropriado, diga-se de passagem). O escritor-narrador-personagem observa, brinca conosco e escreve ou pretende escrever um livro. E, no escrever, faz-se a história. E acompanhamos todas as suas agruras.
Mas, entre tantos romances, contos, crônicas, destaco dois, em especial: Brás Cubas, o defunto-autor e Bentinho.
O primeiro, do outro lado da vida, dedica: “Aos primeiros vermes que roeram as frias carnes do meu cadáver...” O sarcasmo e a mediocridade de Brás Cubas lhe cabem e lhe pertencem do primeiro ao último parágrafo. Seguimos com ele. Rimos. Confiamos e desconfiamos de Brás Cubas. Machado de Assis observa, apenas observa seu narrador-personagem discorrer sobre a vida e a morte. Muitos há que não compreendem o mistério: um morto que escreve. Mas escreve morto? E como se dá? Tal a associação feita entre a pessoa do escritor e o narrador. Machado parece transformar-se em Brás Cubas. Brás Cubas parece transformar-se em Machado. É o narrador e o que diz: as suas verdades e as suas mentiras.
O segundo, entre o ciúme e a obsessão, a todo instante escreve sobre os olhos de Capitu: culpada! Não... Machado, mesmo que declarasse a inocência de Capitu, não nos convenceria porque Bentinho é incisivo e doentio: culpada! E o bruxo do Cosme Velho ri! O danado do seu narrador! Ela é culpada segundo a versão do narrador. A versão é falsa? Distorcida? Isso não importa! Importa é que os fatos são apresentados por ele: as suas verdades e as suas mentiras!
Enfim, o autor deste despretensioso ensaio cala-se ao cumprir o trabalho de organizar o texto. No entanto, no momento em que outros olhos fitarem estas palavras, muitas vozes, inúmeras vozes se manifestarão, dentre elas, a do narrador.