Perdição ou a Lógica do Labirinto
Partindo das análises deleuzianas, acerca da superficialidade, ainda unidas aos desenvolvimentos guattarianos, pensemos na proliferação rizomática. Na falta de altura, assim como profundidade, excluindo as análises verticais, abraçando as expansões horizontais, nos deparamos com o plano, a superfície. Fincados no solo, desde as colocações nietzschianas, como a diversidade foucaltiana. Nos deparamos com outra faceta dessa perspectiva superficial. A falta de entrada ou saída.
Baseados nas casualidades, escorregamos nessas linhas que nos fazem deslizar sobre um plano territorializado que vai sendo desterritorializado a todo instante. Algo sem referência de alto ou baixo, que aplica-se em uma caótica indeterminação, ou determinações múltiplas que não nos deixam ter uma referência una, excluindo esse integralismo, mergulhamos no pluralismo. Mesmo no caráter genealógica nietzschiano, ainda estaremos atrelados ao fator temporal imediato, aquilo que se deu em dado momento sob determinadas circunstâncias, na arbitrariedade de pressupormos o que seja. Longe de atribuir significados, estamos flutuando em meio a significantes, ou melhor dizendo, deslizando, escorregando, patinando.
O Eterno Retorno de Nietzsche mais uma vez em voga, aquilo que não acaba por nunca ter começado. Se não possui começo e nem fim, o que dizer de entradas de saídas? Simplesmente inexistem. Não estamos lidando com uma gênese, no sentido de saber de onde viemos, deduzindo para onde iremos, estamos mais para o “carro de Jagrená” desgovernado, conforme exposição de Giddens. A analogia mais apropriada para nos situar, ou pontuar, com nossa mania de pontuação ou fixação, seria o labirinto.
O labirinto possui dimensão plana. Totalmente cruzado por caminhos de descaminhos, entrelaçamento de distâncias, movimentos prolongados e interrompidos. São rotas intermináveis, um Tarô eterno, uma Torah infinita, um Tao absolutizado. Indiferentes a como penetramos, temos a ânsia de percorrer distâncias, por isso nos perdemos a cada momento. O terror sempre a espreita, pois uma possível saída pode fazer confrontar com o Minotauro, pronto a nos devorar, destruindo o caminhante. O Grande Touro é a diluição total, o Nada que nos espera com sua ferocidade devorante, em um abismo bucal.
Encontrar uma saída, sempre remete a novos descaminhos, cavernas e mais cavernas, platonicamente falando. Os fios de Ariadne também se perderam em meio a tantos espaços estriados, cortes abruptos de passos, um descompasso movente. Não existe um dentro, nunca passamos do fora. Nunca entramos, como poderemos sair? Contornamos, vivemos em torno. Daí a necessidade em nos tornarmos algo, estamos en-tornados, com gravidade que atrai para a superfície, mas nunca ultrapassando a condição de perdidos, já que se encontrar é estar confrontando o Touro de Minos.
As rotas estão abertas num caleidoscópio que deslumbra a visão, tornando-a confusa, desencontrada em meio a cores misturadas. Por isso a importância dos estudos de Max Weber, que focava sem a preocupação com a origem, ao contrário de Marx, assim como as brilhantes investigações de Michel Foucault, outro sem preocupações criacionistas, desprovido dessa histeria pelo design. Os próprios estruturalismos se desfazem, pois não estamos no campo da localização, onde temos um ponto de partida e chegada, entrada e saída, mas somos tomados pelo labirinto, é a labirintite que nos afeta.
Teseu jamais escutou Ariadne, porque já adentrou surdo o labirinto, por isso a necessidade de linhas para orientar-se visualmente. Mas seu desequilíbrio não permitiu seguir esse rastro retilíneo, que exige compasso. Acabou perdido em meio aos múltiplos descaminhos que seus passos vacilantes davam. Nós também fomos lançados no mundo sem esse senso de direção, por isso essa compreensão acerca do tudo e do nada, já que cada pisada é uma incerteza, abrindo abismos com humor minotáurico. Desde a morte da metafísica, o jogo deixou de ser o daquilo que é com a essência, passando a ser o daquilo que não é com a aparência.
As formas labirínticas são diversas, podendo assumir postura diagonal, verticalizada, espiral, já que os caminhos serão alterados por nossa desordem do equilíbrio ou falta de equilíbrio. Enxergamos, feito naquela brincadeira, em que seguramos uma caneta com dois dedos, balançando a mão em frente os olhos, parecendo que o corpo da caneta amolece, começa a dançar de forma ondulante, no ritmo do balanço. Nós balançamos, fazendo o plano oscilar, vacilante diante de nossa visão móvel. Estamos sendo dobrados, mas acreditamos que nós provocamos a dobra na superfície, mas nós somos superficiais, como não percebemos o movimento terrestre, acreditamos tudo estar fixado, bastando um giro, para vermos tudo rodopiar.
Como penetrar nos mistérios, se nunca existiu esoterismo algum, estamos no plano do exotérico, o tempo todo. Além disso, Hegel já chamou a atenção para o fato de mistério estar atrelado a revelação, já que os chamados Mistérios de Elêusis eram assim chamados, por serem relevados assim que os neófitos eram iniciados. Nada de velado, apenas revelado, num velar fotográfico, onde captamos estes simulacros medonhos, enxergamos apenas o falso, bem ao estilo de Baudrillard, ou nem isso, já que admitir uma falsidade é por conseqüência determinar uma verdade, mas o verdadeiro também inexiste, restando apenas o percebido, que é inqualificável, não adjetivado. Há muito tempo que o véu de Maia deixou de esconder segredos, já que ele é o próprio segredo, ou seja, a falta do oculto, devemos buscar as malhas desse tecido, feito epígonos das Moiras, as matriarcas de Ariadne.
Além do labirinto ser móvel, sofrendo mutações de diversas formas, o seu solo é líquido, o que promove escorregões constantes. Pela falta de profundidade, não devemos temer afogar. Em compensação, as quedas geram traumas, causam dor, nos quebram, esmigalhando nosso sentido ósseo. Quando suamos, pelos poros que são nossos pontos vistos sobre um dos ângulos da dobra, estaremos misturados a esse fluir, diluindo junto, sem dissolvermos por inteiro. Procuramos o apoio das paredes, mas sua mobilidade nos joga a outros caminhos, são como portais, sugados por esses buracos negros, sempre prontos a abrir novas dimensões.
Sem cima nem baixo, começo ou fim, fundo ou raso, dentro ou fora, bem ou mal, certo ou errado, vencer ou perder, enfim, nada de entrada ou saída. Nos fazemos meio apenas por determinarmos a priori dois pontos, que serão referenciais para se traçar uma reta, ocasionando a tensão em que somos projetados. Cada ponto que erguemos se faz de nova parede labiríntica, um novo obstáculo em nossa trajetória. Ao mesmo tempo nos protegem, são a divisória entre nós e o Touro devorador de homens. Toda auto-proteção é um obstáculo, pois a defesa é barreira, barricada, fronteira entre ataques. A defesa ou paralisa ou recua, somente o ataque avança. Atacar é se expor, podendo ocasionar o confronto com o Homem-Touro ou Touro-Homem.
O próprio Minotauro é dois em um, homem e touro, humano e animal, daí sua fúria, por ter se tornado um híbrido. Seu hibridismo é de espécies distintas, tornado abominação, ao contrário do Teseu, um grego puro. Vencer o Minotauro não é assegurar o sucesso, já que o herói grego acaba sendo lançado penhasco abaixo. O labirinto é o jogo de encaixa e desencaixe, onde sair dele significa parar o movimento, tornar-se sedentário, o que acarreta a ruína. Nosso labirinto se parece com um jogo de encaixes, feito um Lego, ou um Tetris bem mais sofisticado, onde observamos brechas entre encaixes e desencaixes, vamos nos esgueirando por trilhas que vão surgindo ao longo do trajeto. Não se mover significa ser esmagado. A força do movimento impulsiona para uma direção, que escolhemos, determinando pontos referenciais, sempre com a dúvida do objeto-minotáurico a ser revelado.
Somos perdidos. As escrituras religiosas que dizem a perdição ser o grande castigo do homem. Pois creio que perder-se seja a única forma de ação. Não podemos ser perdidos, pois nunca nos encontramos. Daí a lógica dos desencontros. Não existe castigo porque não erramos, não existe dádiva porque também desconhecemos os acertos. Nossa mira se baseia em pontos cegos, projéteis vazios que se dissolvem em um nada conflituoso. Inexiste a possibilidade de eixo, por conta de nossa labirintite. Somos como bêbados, embriagados de ilusões, escorando aqui e ali, cambaleantes, caindo e levantando, evitando o último gole que levará ao coma alcoólico ou Minotauro.