Ponto

Pontuar, pensando sobre o conceito de ponto, costuma estar associado a algo fixo. No sentido de referência, já que podemos a partir disso, criar. A reta não nos deixa mentir a esse respeito, já que intercala a distância entre dois pontos. Embora tenha um emaranhado de outros pontos entre os determinados, ficamos com aquele selecionado. Nas palavras de Leonardo Boff, “ponto de vista é a vista a partir de um ponto”. Sobre isso que trata esse ensaio, uma vista sobre ou sob um ponto.

A pontuação aparece na gramática, dando pausas, concedendo distâncias, provocando quebras, interrupções, dando margem a pensarmos em uma continuação. Mas quando pensamos no sinal ortográfico separado, não nos damos conta que os pontos, como poros, estão invadindo cada letra, se fazendo valer mesmo onde não são vistos, nos chamados espaços entre pontos.

O próprio apontamento já remete a uma fixação, bem como o ponto de ônibus e tantas outras analogias que poderiam nos ser úteis. Só que o “buraco é mais embaixo”, como revela o ditado, talvez a expressão embaixo seja inadequada, pois lidamos com a superficialidade, faltando cima ou baixo, restando-nos o plano. Assim, o pontuar se torna um marco. Pensando a respeito da superfície, se só temos acesso a ela, como explicar esse signo que emerge, já que uma emersão estaria associada a profundidade?

Eis que nos deparamos com um aspecto interessante da pontuação, que não indica algo pró-fundo, mas serve de plano de fundo, com representatividade invertida ou inversa. O ponto é o verso de si, o outro lado do mesmo, a dimensão do poço sem fundo, um abismo raso. Apontar é olhar uma perspectiva. Faz com que ignoremos a dobra que nós mesmos fabricamos, já que não podemos ver a extensão, selecionamos uma fração. Ao destacar uma parte, mutilamos, por visualizar apenas uma porção dobrada, um nó instituído.

Com o ponto detemos, retemos, fixamos, criamos até mesmo uma reta, já que verticalizamos em marco. Fixamos um mastro, erigindo-o até regiões de pico. O intuito é encontrar o fundo desse poço, daí a elevação. Quanto mais alto, maior a fundura, pela distância em relação ao solo. Só que a ideia de alto é aérea no sentido de abstração. Nossa herança de Ícaro. Queremos as nuvens, sem darmos conta de ser impossível sair do chão. Basta abrir num continuum e chegaremos a resultados espaciais extra-terrenos, onde tudo parece flutuar, pois perdemos esse sentido de fixo.

Nosso planeta é um outro nó, outra tentativa de retenção, até a desdobra ocorrer. Esses poros pontuais, não são vazados, no máximo uma epiderme lisa, nada estriada. Olhamos o ponto em contraste com seu verso, que são os pontos não percebidos que contrastam pela dobra, numa espécie de origami. Como se víssemos nossa pele, com pontos visto de “fora” como os que habituamos a ver e outros vistos de “dentro”, ou seja, a pele por dentro do nosso corpo, que não percebemos por sermos seres dobrados. Um quebra-cabeças com peças viradas ao contrário, que não deixam de se encaixarem, mas causam um contraste visual, por não identificarmos a figura por inteiro, apenas pontos disformes.

A profundidade pontual está em sua imensa possibilidade rasante, já que sua superficialidade fragmentada, abre possibilidades de uma dupla face, mesmo que seja em horizonte, uma única face. O desdobramento de um, em duplicidade consigo, pela curvatura do movimento que volta sobre o movimentado, como uma onda se quebrando. Ondas e mais ondas até voltar ao estado plano de mar, naquela extensão liquefeita. O ponteiro que se faz ponta, apontada para aprisionar o próprio tempo, tornando-o temporalizado. Se concebemos linhas, isso se deve a primeira ideia de pontuação, um pré-conceito que faz posicionar.

Não é reflexo, antes um plexo, entrelaçado de percepções visualizadas em uma movimentação constante ou inconstante. No ir e vir, captamos matizes. No jogo de sombra e luz, somos levados a vultos. Escuridão e luz já seriam duas formas apreendidas em uma dobra, o vulto é o que vislumbramos, aquilo que corta ambas, feito um espectro que não se contenta em sedentarizar em um ou outro extremo, sendo nômade entre. A fuga diante do amplexo. Também não se contentando com formas geométricas, já que tendem a atribuir ao ponto uma forma circular. Ele até tenta rodopiar por uma tentativa nossa em fechá-lo, pela percepção reduzida. No final, sempre sobra alguma aresta.

O panóptico, bem demonstrado por Michel Foucault, possuía esse caráter integral de ponto, fechando sobre si, elevando-se em um movimento circular. Mas podemos perceber as fugas, as arestas, pela própria dissolução desse modelo. São novos pontos que tendem a mudar o foco, mais vistas, mais pontos. Uma permuta entre o querer ver e o conseguir ser visto. O ponto é autoritário, não é como uma vírgula que escapa com um rabicho que se insinua abaixo da margem. Esse universalismo do ponto já se faz perceptível desde tempos remotos, o próprio ícone que representou e ainda representa o sol na história, demonstra aquele ponto dentro de um círculo. A dupla face insinuando-se.

O próprio Arquimedes disse só precisar de um ponto, um apoio, para fazer o planeta girar. São as duas faces da reta matemática, positivo e negativo, que existem por conta de uma dobra, criando uma tensão que resulta o confronto do mesmo, que sai de primeira pessoa do singular, fazendo-se segunda pessoa pois também cria um ele. Depois é remetido a terceira pessoa, como eles, a união de si consigo. Por fim, a quarta pessoa do singular, o fora que contempla o movimento e faz-se prova dessa coabitação entre dobramentos que se desdobram. Todos juntos completam o nós da primeira pessoa do plural.

Pontilhamos. Feito os vestígios deixados por João e Maria. Queremos demarcar um caminho, termos orientação para não nos perdermos, sendo que essa é a forma mais fácil de perdição, que o diga a fábula infantil. Se nos déssemos conta que estamos mais próximos da reticência do que do ponto final. O ponto tem a presunção de ser pronto, mas não passa de um pondo. Fazemos como certos felinos diante do feixe de luz emitido por dispositivo laser, corremos atrás dele até outra perspectiva que venha nos distrair. Nos ferimos, pois são pontiagudos, se fazendo de estalactites e estalagmites, prontas para nos impalar.