A Linha e a Dobra

Quando pensamos na projeção de uma linha, aquela chamada série de pontos numa dada seqüência, temos a noção de principiarmos esse segmento. Eis a ilusão, já que a linha se faz a priori, antes de a percebermos. Nos damos conta do prolongamento dela, vamos em seu encalço, pois ela já está dada. Seria como uma pista em que de repente nos vemos caminhando. Quem nunca se pegou andando em uma estrada, e se deu conta de que aquele traçado é apenas um dos muitos, que qualquer passo em qualquer direção, irá conduzir a um outro perímetro da mesma vertente.

Na gramática se dá algo parecido, pegamos a linha já traçada. Que o digam as folhas pautadas, onde discorremos com a grafia. Mas a grafia é a mesma linha que percebemos no papel enquanto margem, só que dobrada. Cada letra é uma dobra de linha, com rupturas para poder modificar sua forma. Não que seja ruptura no rigor do termo, de uma separação total. Mas no sentido de mudanças de perímetro.

As linhas se prolongam, mas a tensão sobre elas causa mudança de direção, ocasionando dobras, que chegam a ponto de intercruzarem, causando uma infinita variedades de conexões, já que percorrem sempre um novo desdobramento. A resistência da linha sempre se faz no sentido de volta a seu antigo trajeto, que é linear e contínuo. A dobra agride sua estrutura, numa curvatura que investe sobre si, acarretando um retorno a si mesma.

Pensemos em um círculo, traçamos a partir de um ponto e o fechamos. Até mesmo as antigas imagens que representam o infinito, seguem o modelo circular. Mas esse formato é uma abstração longe da realidade, já que enxergamos um continuum, mas se em dado momento se principiou, com um término sobre o ponto inicial, devemos acreditar que existe um elo, uma espécie área fendida, como numa solda, onde uma peça parece proporcional, mas os olhos do perito enxergam área onde ocorreu a fusão.

Quando o ilustríssimo senhor Michel Foucault, nos brindou com sua análise enunciativa, estava debruçado sobre essa questão. Os enunciados circulam, com intuito de passarem despercebidos, mesmo sendo perceptíveis. Ao buscar desvendar o enunciado, lidamos com a tentativa de encontrar o “ponto de solda”, revelando interfaces, a ponto de causar nova ruptura nessa linearidade. Provocando uma nova dobra, mas de caráter rompante, já que certas linearidades que possuem a pretensão se fecharem, costumam ter caráter empedernido.

Escrever é provocar dobras na linha da linguagem, mas com isso provocamos novos lineamentos, caminhos que os segmentos de linha irão fluir, num fluxo que busca incessantemente prosseguir. Cada letra expressa, demonstra uma curvatura linear, sendo que os limites, apenas demonstram convergências, espécies de bifurcações, encruzilhadas e outras formas análogas em que podemos vislumbrar esses descaminhos que reinteram o sentido caminhante.

Quando lidamos com axiomas, fatores proposicionais, entre outros, estamos diante do que algumas letras poderiam representar, a título visual alegórico. Temos o exemplo da letra “A”, que por mais demonstre esse formato triangular na parte superior, demonstram linhas que escapam para o solo, outro exemplo seria a letra “P”, quase se fazendo um círculo, mas também se projetando para baixo. Já ao lidarmos com a letra “O” ou mesmo o numeral “8”, fica a impressão de não haver nem uma sobra, nada que escape. Essa é a ilusão de um enunciado, parecendo conciso a ponto de passar despercebido, percorrendo toda nossa imaginação no primeiro olhar, mesmo em um segundo momento, causando fascinação por sua forma sedutora de aparente invulnerabilidade.

Use uma caneta, quem sabe o mouse no paintbrush, observará quantas linhas pode retirar sobre aquela figura, adentrando seus espaços, preenchendo a ponto de fazer sumir, entrecortando aquela aparente estrutura, desnudando em um jogo de sobreposições. Ao borrar um desenho, apenas fazendo conexões de linhas, da forma como elas se dão, caóticas. Um figura é um delineamento, mas tentamos seguir certa lógica com intuito de criar dada forma. Mas as linhas são desprendidas, ou presas a ponto de poder encarcerar novamente aquele aparente “solto”.

Pensando nas ideias expostas por Gilles Deleuze e Félix Guattari no magnífico “Mil Platôs”, podemos conceber que existe uma necessidade das linhas dobrarem-se, já que o espaço é finito, causando essa rearrumação constante, territorializado desterritorializante. Da mesma forma nosso olhar sobre essa estética que é cartográfica, ou geo-gráfica, eco-gráfica. Temos a disposição dos lineamentos que transcorrem sobre dado plano, mas que também compõe esse mesmo plano, cortando-os por todos os ângulos possíveis. São o solo que irá proliferar ou germinar sobrepostos entrecruzamentos.

O que detém uma linha é ela mesma, no seu movimento de contorção. Temos uma malha com trama fecunda. As tecnologias contemporâneas que não deixam mentir, linhas aéreas, linhas telefônicas, ondas sonoras, não esquecendo que o movimento ondular é oscilação de dada freqüência linear. Realmente da serpente numa analogia mística é bem produtiva, já que remete a este ser de forma linear, mas que se move em curvas, ondeante, até chegando a enrolar-se em círculo, num gesto oroborizante.

Podendo ser forca, causando o enforcamento, espremendo em dado momento. Daí a noção de bolo ou novelo, são nós. Tal emaranhado causa uma extrema tensão e a necessidade emergente de ruptura. Mas a linha não se parte. Temos o nó como condição acumulante de linhas que se entrelaçam em dado montante. O nó se faz como acúmulo de uma dobra, a ponto de causar extrema tensão. A linha como necessidade de prosseguir, irá pressionar o emaranhado para que se desfaça, ocasionando uma posterior ruptura.

Devemos perceber que uma linha não é formada como a visão ilusoriamente percebe, já que a mesma é uma série de rupturas, onde não se percebe os vácuos existentes, mas a não percepção não faz com que deixem de existir. O nó é uma tentativa de reter rupturas, ocasionando um rompante de maior violência, pelo acúmulo de força causada pela tensão. A ideia de linha parece muito concisa. Mas devemos pensar algo menos rígido, mais maleável, além do fato combinatório de diversas vazantes lineares, que percebemos em modelos gráficos.

Perceber uma linha, apenas abre caminho para tantas outras que cortam essa percebida em todas as direções que possamos conceber, horizontal, vertical, transversal. São linhas e não retas, daí a maleabilidade do conceito, já que a reta indica uma direção mais condicionante, as linhas podem varias conforme infinidade de curvaturas. Traçar é já ter sido a priori traçado, cortado, vazado. Fácil percebemos essas influências vetoriais, quando desde tempos remotos nas próprias primeiras manifestações agrícolas, cortamos a terra, mesmo com introdução tecnológica do arado, seguimos a estratificação linear do solo, criando carreiras, semeando vertentes.

Nossa linguagem demonstra essa mesma necessidade de fuga, que traça riscos que se prolongam em um campo tornado território. A lógica política, econômica adere a tal necessidade, com modelos de escoamento, estatísticas com suas grades de gráficos, etc. A Matemática precisou da reta para demonstrar sua aritmética, o que dizermos então da geometria, que demonstra essas linhas em posicionamentos variados, criando campos vetoriais onde aplicamos determinado modo de saber. O saber, já todo tramado nessa linearização, desde sua origem, nos primeiros passos da caligrafia, onde aprisionamos a escrita em duas margens sobrepostas, que catequizam as dobras, ao mesmo tempo promovendo quebras dos fios soltos que tentam ultrapassar seus limites.

Nós lemos a partir das linhas, que o digam a necessidade de formalização da frase, temos uma contextualização que rege segmentos, os planos que são traçados. Temos a ciência como experimento que segue, a História na busca pelo tempo, até para tratarmos de determinado ato nos servimos de uma linha teórica. A luz chega a nós através de feixes, linhas de luz que riscam, vazam nossa retina, chegando ao cérebro com efeitos de raios luminosos que fazem recordar aquele emaranhado luminosos de um sofisticado sistema de alarme. A cartografia contribui para percebermos essa visão linearizante, com seus mapas que delimitam territorializando.

São vias que nos dão acesso, mas nosso foco é centrado, por isso a reta, que abre-se de forma universalizante, tentando trazer tudo para seu caminho, sendo que é apenas um dos tantos caminhares. Basta atravessar uma estrada, parando em um dado ponto, para apreciarmos nos acostamentos, diversas maneiras de sair daquele plano regular, bastando explorar além das margens, criando novos traçados, uma estratégia de direção, a ideia de guerrilha representa bem isso. Mesmo a borracha, pensando na dissolução de uma linha, não significa extinguir, mas sobrepor outra linha sobre a anterior. No paintbrush temos bem essa noção, já que a borracha é apenas o branco sobre outra cor, se o fundo for preto, a borracha também muda sua cor, porque nessa relação contam matizes, que são retas de cores.

O espaço em si, é considerado a partir de representações lineares, que tornam possível a concepção de plano, pois traçamos esse campo a partir de uma perspectiva perimetral, ou seja, só na tentativa de contornar que deduzimos um espaço, talvez o melhor seria dizer que “com tornamos”, já que utilizamos a linha como espécie de torno, afim de possibilitar capturas. As curvas, ao contrário das dobras, possibilitam apegar-se a variantes, tornando-as não variáveis. Como um gráfico de eletrocardiograma, podemos averiguar nas curvas uma leitura acerca das linhas, as oscilações que nos dão a noção de dado diagnóstico ou faz com que o interpretador se torne um gnóstico, acerca das correntes registradas pelas ondulações que os músculos cardíacos promovem.

A linearidade é tão forte, que podemos observá-la como uma constante nas concepções imaginárias ao longo do tempo. Se pegamos o rio de Heráclito, temos a linha em fluxo, já que a própria ideia de rio remete a dada vertente. Platão demonstra seus planos numa convergência em curva, a própria idealização de hermenêutica, cria uma ponte, que é outra maneira de retalizar em linha. A epistemologia mais uma vez tenta seguir, até mesmo Nietzsche com o eterno retorno, não deixa de voltar-se para esse aprisionamento de um plano retilíneo.

É justamente em Nietzsche que aparece a noção maior de ruptura, pois invoca a dobra, o que faz pensar na planificação ao qual estamos reduzidos. Pois mesmo quando dobramos, é sobre si ou a partir da linha dada, ou seguimos ou dobramos, mas permanecendo nela. Eis a natureza de Nietzsche, que percebe o emaranhado, retirar uma linha é estar inserido em outra, como uma maldição de Ariadne, antes tivéssemos enfrentado logo o Minotauro, do que se perder nesse novelo infinito. A grande estratégia de poder é justamente perceber as linhas, podendo assim manusear as disposições, onde a questão não é tanto incluir ou excluir, mas arrumar, saber onde fica, uma questão de posicionamento. Poder é pôr-se e consequentemente opor-se.

Quando nos relacionamos com alguém, determinados os traços de onde eu começo e o outro termina, ou onde eu termino no outro e vice-versa. A arte demonstra bem essa disposição que os traçados impõe. A voz também segue a linha sonora, são as ondas, ou mesmo pensando nos ritornelos, tão bem expostos por Deleuze e Guattari, a captação circular pelos tímpanos. São as curvas manifestas nos sentidos, já que a ideia de reta remete a morte, vide a linha reta no eletrocardiograma, que representa bem o morto. A linearidade dissolve num prolongamento contínuo, mas curvas e dobras causam variáveis que escapam por dado momento ao fatídico destino.

Temos também o poder de fora, como força gravitacional que causa curvas, oscilações, transgredindo o caminho retal, numa espécie de movimento peristáltico. Podemos aqui voltar aos nós, já que esse emaranhado causa certa gravidade de massa concentrado num extremo que promove tensão. Aqui a potência seria medida entre extratos lineares, onde a relação entre linhas causaria essa disputa de forças. Só que o problema das linhas são mais abrangentes, pois não seguem esse padrão uno ou dual.

As linhas são produzidas a todos momento, pois escoam, o que significa que uma ruptura faz surgir novas linearidades do rompimento, como uma cauda de lagartixa ao regenerar, só que muito mais rápido seria o processo de encadeamento linear. Outro ponto importante é seu caráter pluralista, uma linha rompida gera várias desmembramentos, como no exemplo no novelo, já que desatara um nó num rompante, desencadearia diversos fios soltos, como múltiplos tentáculos. O que se iguala em analogia as linhas seria a Hidra da mitologia, já que cortando uma parte nascem duas da cortada e assim por diante. O corte faz aumentar segmentos, pois ele divide, criando micro linhas.

As linhas diminutas tem maior desenvoltura em suas relações, pois promovem uma gama bem maior de associações, sempre com intuito de voltar a uniformizar. A linha é sempre autoritária, tentando reger um direcionamento, mas o fora que age sobre sua natureza, causa uma transformação do seu estado original e promove a tentativa de reintegração. Imaginem a água, se abrirmos um canal ele segue seu curso, a medida que abrimos outros canais e agregamos obstáculos, ela levará um tempo maior para chegar ao objetivo, ainda assim o atingirá. Mesmo ao represarmos, se levarmos em consideração uma corrente de água infinita, chegará hora que teremos o chamado “estouro”, quando a barragem se romperá e a pressão terá uma violência maior por ter sido retida.

O efeito de análise genealógica, proposta por Nietzsche, também é linear, assim como genomas e outras formas de sequenciar ou sermos remetidos a fluxos. Quanto mais rígido, mais linearizante. Que o digam teorias adotadas, como os evolucionismos, marxismos, fascismos, existencialismos, estruturalismos, historicismos, etc. A ciência é puramente linear, sua cadeia de experimentos tem a necessidade desse continuísmo, ao mesmo tempo se vê na necessidade de rompantes, pois sempre o contínuo leva a extinção. O que me faz voltar mais uma vez a Nietzsche, com seu eterno retorno, aqui visto como dobra, a necessidade de retornar para sairmos da condição de reta, mas sem nunca deixar de sair dela. O círculo que podemos associar ao cármico hinduísmo, vamos e voltamos, mas sempre com a condicionante de linhas, onde projetamos, nos virtualizamos.

Vejam, não são as linhas que se dão sobre o espaço, mas o espaço que se faz através das linhas, que já transportam criando dimensões. O espaço seria uma matriz, criado a partir de um entrelaçamento de linhas. Fala-se de espaço geométrico, deveria-se antes falar de uma geometria do espaço, baseada em linhas que dimensionam para criar um campo. Determinar uma linha é justamente determinar um ponto ou pontos, o que significa uma infinidade de outros em torno, o que remete a se posicionar em relação aos outros. O homem se projeta numa reta num posicionamento perante tudo que escapa a sua percepção, na tentativa de criar uma tensão que o faça reter ao máximo sua condição, sendo atravessado por linhas que o desejam diluir, se fazendo de obstáculo para esse poderoso fluxo, aguardando o estouro, quem sabe nos moldes de um Big Bang.