Sobre Gêneros
Quando evocamos a palavra “gênero”, a princípio, não podemos fugir de sua origem taxonômica aristotélica, pensando no sentido de classificação de grupos, o que remete a espécies, classes e quaisquer outras derivações gregárias ao longo da história. Mas o gênero, ganhou uma elevação em sua procedência, a partir de estudos que o adotaram como terminologia política para o feminismo rivalizar com o machismo. A questão aparece neste ensaio, com intuito de abarcar essa ideia de “sexo”, com as distinções que dela acarretam ou possibilidades que ela propõe.
Uma vez, conversando com uma amiga acerca dessa questão de gênero, ela havia exposto esse conceito, ou esse posicionamento sexual, como a primeira violência imposta ao sujeito que nasce, distinguindo se ele é homem ou mulher. Eu discordo da dedução dela e quaisquer outras nesse viés, pois como comentei na época, acredito que existem “violências” ainda mais brutais antes dessa, como a humanitarista, que diz antes mesmo de nascermos que somos um homem, humano, homo, o que implica já um padrão de comportamento inato, além da outra brutalidade, a distinção entre “normal” ou “anormal”, quando antes mesmo de saber o sexo, o exame de ultra-som já busca alguma “anomalia”.
Deixando nossa pequena discussão de lado, o gênero concedeu ao homem, pelo menos a possibilidade da alteridade, de reconhecer um outro, o que já nos possibilita dizer ao homem/mulher. A questão de alteridade, do material que tive acesso a leitura, acredito que o mais fértil para mim tenha sido “O Ser e o Nada” de Jean-Paul Sartre, onde possui uma boa parcela da obra dedicada ao fenômeno do “Outro”.
Mais já que evocamos a mulher, imprescindível citar Simone de Beauvoir, que chamou essa diferenciação de “segundo sexo”, deixando clara a barreira intransponível diante desse fato, a separação entre sexos distintos, ou se preferirmos as palavras de Lacan, são dois que nunca serão um. As possibilidades que essa segunda percepção fornecem são vastas, podendo inclusive tratar “ser ou não ser” shakespereano, ou tantos outros filosóficos, que demonstram o outro como o limite do eu, ou o além de mim.
Ainda dentro de tais perspectivas, as chamadas “ciências sociais ou humanas”, abriram espaços para outros grupos, tal pluralidade pode ser observada em diversos campos de pesquisa, me agrada mencionar o foucaultiano. O que faz pensar que essa bipolaridade, macho/fêmea, já não pode mais dar conta da diversidade a partir deles.
Temos o chamado homossexual, que apesar de ser classificado de acordo com sua genitália, não corresponde ao que o padrão hetero impõe, tendo relações que ignoram a premissa heterógena-coital. É a primeira quebra do gênero conceitual, pois é um comportamento que difere da prerrogativa classificatória.
Na perspectiva homossexual, temos o travesti, que além de negar em suas relações, também altera a estética, camuflando feito um camaleão a sua genitália, ele utiliza uma persona sobre a imposição do gênero. Só sendo reconhecido em exame restrito de suas genitálias, passando perante a sociedade como outro ser.
Surge também no âmbito homossexual, o transexual, que já utiliza o prefixo “trans”, que dá margem a algo além, o que é uma espécie de mutilação do gênero. Pois renega a genitalização a ponto de castrá-la ou transformá-la. Como exemplos, temos a chamada “operação de sexo”, onde uma mulher pode confeccionar através de hábeis cirurgiões um pênis, e um homem pode ter uma tão sonhada vulva. É a imposição da vontade sobre a autoridade da taxonomia.
Para deixar a questão de gênero ainda mais fértil, temos o chamado “hermafrodita”, quero salientar que utilizo apenas nomenclatura cotidiana, não me atendo neste ensaio a discutir questões etimológicas e afins a esse tipo de pesquisa, mas sim ao fenômeno “genérico” e suas implicações ao ser problematizado. O hermafrodita, seria a encarnação dos dois em um, nasce com os dois gêneros, embora queiram classificá-lo dentro de características que venham sobressaltar sobre um ou outro aspecto, o fato é que nasce contradizendo a lógica do “um ou outro”, já que é “um e outro”.
Podemos adentrar o campo da fisiologia, anatomia, invadir as ciências médicas e constatar que temos exemplos ainda mais diversificados, como nascidos sem genitália, que seriam chamados “anormais ou anomalias”.
Diante desse amplo quadro de possibilidades, peço muita cautela aos senhores taxonômicos, assim como as definições absorvidas pela sociedade, pois estamos longe desse rigorismo que desejam nos convencer. Pensar que no início era apenas homem e mulher, seria cair numa ingenuidade bíblica, voltemos ao Adão e Eva. Embora existam estudos “esotéricos”, assim como pesquisas científicas tanto históricas, quanto semióticas, que apresentem um Adão hermafrodita, ou no mínimo siamês, daí a Eva que sai do mesmo.
Os siameses seriam outra forma de se pensar o gênero, um corpo e duas genitálias, ou uma genitália para dois troncos. Correria o risco de tornarem mito como alguma divindade hindu.
O estudo do corpo, como o próprio Michel Foucault salientou, é imprescindível ao homem contemporâneo. Mas esse corpo também se transforma ao longo do tempo, assim como a classificação que se faz sobre o mesmo. Devemos estar atentos a essa diversidade, que tem possibilitado problematizar o/a sujeito/a ao longo do tempo. Qual o intuito de dizer se é homem ou mulher, quais implicações de ser um e outro? E não ser nem um e nem outro? Em caráter comportamental, ainda temos uma vasta gama, mas aqui evoco os andróginos, por essa mescla que não se permite definir do jeito dado, auto definindo-se.
Para concluir, acredito que devemos buscar tal diversidade no âmbito conceitual, sair do homem ou um, e também da mulher ou dual, explorando os travestis, transexuais, homossexuais, andróginos — por que não ginósandro, colocando o gineceu na frente do androceu —, e tantas outras variantes, sabendo que são mutáveis, mas não excluindo a importância de cada uma delas. Isso refletindo no código ético, respeitando as escolhas de serem homo, hetero, trans ou variantes bissexuais, pansexuais, enfim, sejamos férteis sem a necessidade de sermos apenas seres reprodutores, o “crescei-vos e multiplicai-vos” já caiu por terra, basta ver os anticoncepcionais (viva a revolução feminina), abortos, casais sem filhos e tantos outros meios de não conceber como de conceber sem o ato em si, vide inseminação artificial, etc. Não sejamos genelaristas.