Rascunhos

Quem não se deparou com um rascunho? Seja seu ou de outrem, o que pertence a si, sabemos o fim primeiro a que se destinou, os dos outros, tentamos deduzir a sua concepção. A perspectiva do rascunho será tratada neste ensaio, levando em consideração a suma importância do mesmo.

Quando esboçamos um rascunho — um esboço realmente? — temos já concebidos um fim, que este princípio nos levará. Lançamos desse artifício como a pedra fundamental, ou antes, o gerador da pedra fundamental.

O rascunho é aquilo passivo de erros, questionamentos, o campo imperativo das dúvidas, das rasuras, da não necessidade da ordem a que será remetido o texto ou objeto, depois de formatado. Faz com que adentremos o turvo pensamento, consubstanciando o que virá ser chamado de algo pronto a posteriori.

Através desse instrumento, caminhos dentro de limites mais afrouxados, onde nos esforçaremos para adequar a uma regra vindoura. Nosso campo de arrumação, daí sua importância num pesquisa ou qualquer outra forma de desenvolvimento técnico. Devo ressaltar que não apenas técnico, já que poderíamos chamar rascunho, outras formas de concepção prévia, mesmo que o termo ainda não tenha sido cunhado, para não cairmos em um anacronismo. Consideremos apenas a ideia do experimento.

Rascunhar é experimentar, por isso a ciência observa ao longo do tempo, seus inúmeros pensadores, carregando seus maços de papéis com inscrições quase ininteligíveis, alguns realmente foram indecifráveis. Enquanto analogia, poderíamos sugerir diversos exemplos.

Em vez de sugestionarmos possíveis rascunhos, vamos trabalhar com a ideia em si desse conceito. Pois quantas vezes, diante de uma avaliação educacional, não nos deparamos com o professor dizendo que poderíamos utilizar um rascunho, além de ser necessário anexá-lo a prova. Diria o rascunho nesse caso, é a verdadeira prova, no sentido de evidência.

Quando faz-se um rascunho, estamos diante de um conflito, entre aquilo que concebemos e o desejo de adequação do concebido ao já concebível. A ordem já se faz presente, mas nossa forma de pensar resiste, criando, no âmbito conceitual por exemplo, uma outra perspectiva, que tende a rivalizar com a já existente. O rascunho é o campo de batalha desse embate, entre a ordem que criamos e a ordem já criada. Nossa tendência posterior é adequar o objeto que concebemos ao já concebido.

Justamente por esse motivo, o rascunho costuma ser relegado a um lugar de menos importância, pois assume função transitória, servindo de ligação. Foca-se no já feito, numa espécie de epistemologia, que vamos buscar ligar a pensamentos passados, tornando-os unos, até que possam se sustentar como continuum.

A originalidade do criado é massacrada pelas regras, que vão lapidando o objeto bruto até torná-lo algo que o descaracteriza de sua essência. Como exemplo claro, podemos mencionar as academias, onde o sujeito elabora um conceito, no entanto precisa seguir regras da ABNT, regras da instituição ao qual faz parte, regras do orientador, regras do corpo teórico, ou seja, regras e mais regras que encareceram, isolam, disciplinam, alteram, conforme uma vontade que foge a do criador.

Os “mestres”, buscam nas provas, nas avaliações, o resultado, aquilo singular de cada sujeito, o que o destaca, a originalidade. Mas excluem o elemento de maior fertilidade dessas questões, que é o rascunho. É nele que encontraremos os conflitos, os pensamentos com seus “erros”, as peças ainda bem desconexas ao nexo que a ordem exige.

O rascunho também demonstra o que muitas vezes o resultado dele encobre, já que ao fazer uma prova, exclui-se tudo que não seja pertinente a ela, inclusive, elementos que poderiam macular a imagem do criador. A pessoa cria uma persona, o rascunho revela traços atrás dessa máscara avaliativa, onde notamos até divergências quanto ao conteúdo, mas que serão subtraídas em função da boa imagem.

Mas o rascunho perde essa função vibrante, se for tomado como importante desde o início. Quando um professor diz, que vai anexar o rascunho à prova, o aluno faz desse esboço uma outra prova simulada ou dissimulada, para não ocorrerem discrepâncias, mais uma vez escondendo esse campo combativo em prol de uma determinação avaliativa. Parecido com uma adolescente que escreve um diário, sabendo que este será lido pelos pais, não sejamos ingênuos de imaginar que terá a mesma desenvoltura do que aqueles escritos trancados a chave.

A partir de tais perspectivas, saliento a vital importância do rascunho, assumindo uma importância maior do que uma prova, avaliação, ou se preferirem a dialética de Hegel, uma síntese. Ele deve ter a função de manter aberta essa zona de conflitos de uma criação, permitindo a quem o contemple, distinguir traços do autor e das regras a que deseja subjugar sua criação. Claro que o rascunho é uma das primeiras formas de adequação, mas justamente por ainda não estar totalmente formatado, se é que algo esteja totalmente em algum momento, ele apresenta um menor rigor em relação à regra que pretende alinhar-se, o que favorece uma diversidade crítica em relação ao criador.

Críticos podem evocar o fato desse rascunho já estar repleto de ordenamentos, não existindo um momento criador, já que todo esse embate é composto de naturezas já dadas. Aceito essa análise, mas o objetivo é salientar a importância do embate, de como ordenamentos conflituosos podem se dar nesse campo experimental. Apresentar um campo empírico de batalha. Já que quando falamos sobre conceitos, filosofia, pensamento, matéria, tudo parece bem abstrato. No entanto, o rascunho é um campo de conflito demonstrável, onde objetos agem e reagem, por isso uma folha desse tipo é tão rabiscada, “suja”, pois é o conflito real. Ao contrário da “limpeza” de uma tese, onde tudo está, aparentemente, no devido lugar que supuseram ser o adequado.