Folha em Branco
John Locke escrevera que nascemos como tábula rasa, ou podemos anacronicamente traduzir para folha em branco, pensando nos respectivos desenvolvimentos pcitográficos, escriturários, além de laudatórios que ocorreram ao longo do tempo.
Mas quando penso sobre a sentença lockeana, me deparo com outra realidade travestida, pois não creio que uma tábula ou folha, varia o adjetivo conforme a preferência do leitor, seja realmente não preenchida.
Minha crendice acerca do que utilizamos como superfície para grafar a escrita, faz pensar que uma lauda não é vazia, mas totalmente preenchida, pois é inteiramente coberta por uma camada que abrange quase toda sua estrutura, fazendo com que seja uma grande demonstração de algo já preenchido.
Quando dispomos uma tintura sobre essa superfície, não inserimos algo num espaço vazio, mas sim num campo preenchido previamente, que graças a seu preenchimento, podemos fazer tal associação com a nova forma que se sobrepõe.
Acrescemos algo que se mescla ao já dado, criando uma conexão entre o que foi e o que está por vir, que para nós se revela como estar sendo. A associação entre esse já existente com o que irá existir, comporá uma amálgama entre fatores de substância semelhante, daí a convergência.
Quando escrevemos sobre a folha, além de não removermos a substância primeira, acrescemos algo nela, mas não a completamos, pois entre uma palavra e outra, ou mesmo nas aberturas expostas em cada carácter, estaremos sempre nos deparando com a face primeira, descotirnada em lacunas.
Escrevemos por uma vida sem conseguir dar conta dessa superfície que nos capta, ao mesmo tempo precisamos da mesma para poder construir essa linguagem vivificada. Fazendo sobressaltar estes pontos minúsculos, que o papel aparentemente esconde da visão menos aprofundada.
Mesmo que possamos delimitar a lauda, com margens e outras formas de perímetro, sempre existirá uma fuga. Seja dentro do círculo da letra "o", ou no espaço entre uma palavra e outra, ou mesmo entre cada letra, sem contar a impressão viva a cada vez que preenche, pois é aquele abismo aparentemente repleto de branco, que se revela, pronto a aceitar em partes o que lhe escrevemos.
Mesmo se pensarmos no lirismo eufêmico de Locke para tratar de uma reprovação ao inatismo, ainda assim, foi ingênuo. Pois aceitou a supremacia, absolutizando esse princípio de um nadismo, com uma referência tão cheia de sentidos. Talvez confessando um inconsciente que reprovasse o que a sua consciência decsrevia.
O que Locke pensaria sobre Malevitch e seu "Quadrado Branco Sobre Fundo Branco"?
A escrita apenas [de]forma, ou seja, dá outra forma ao já estabelecido, num jogo de cores que podem variar caldeidoscópicamente, conforme o aparato de químicas pictóricas que o sujeito tenha disponível. Embora o básico seja aquele tom preto sobre o branco, mais uma vez Malevitch, agora o "O Quadro Negro Sobre o Fundo Branco"?
Devo ainda ressaltar que soprepor não significa anular o que está sob, pois este serve de solo ao sobre-inserido, criando uma duplicidade, manifesta numa revelação em forma de relevo. Daí surgir esse objeto-outro em destaque, ocupando um plano que emerge, destacado, onde acarreta uma soma, que a visão limitada acredita ser o mesmo, mas que são dois numa sobreposição.
Não ocupam um mesmo plano, mas o segundo elemento tem como referencial o primeiro, criando um novo patamar que seja similar ou simulado à base que lhe serviu de molde. Uma espécie de sombreamento, mas não caindo em um platonismo de mundialiades distintas, pois aqui se refere a um plano mais "palpável".
O já impresso, mesmo partindo de um sentido inato, ainda na referência a Locke, consegue usufruir dessa convergência com o novo posto ou [ex]posto, justamente por ambos serem feitos de materialidade substancialmente recíprocas, o que escapa a metafísica de outrora e relega a um campo de uma meta física.
Não poderia expor algo num campo mais orgânico, no sentido genético, anatômico, pela falta de conhecimento acerca desses elementos. Entretanto, a lógica faz deduzir que a conexão só pode ocorrer entre similares, não é algo etéreo, mas sim físico.
Assim temos a dita morte, que não finda, mas transforma, sabendo que cada um dos que existem são partes dos que já existiriam, são a manifestação fóssil mais autêntica de uma arqueologia humana, pois suas células estão interligadas a uma genealogia em que possivelmente nem havia uma formação do que hoje temos como consciência.
Também não poderia ser tão darwinista assim, ou malthusiano, para os que buscaram as influências de Darwin. Estamos evoluindo, progredindo, processando, existe um eterno retorno? Ou seria tudo isso ao mesmo tempo, pois poderia ocorrer embate e permanência, novas aglutinações e antigos estados formados, pois se existe fluxo, é matemáticamente lógico que combinações coincidentes também podem ocorrer.
Mas voltando a questão da lauda, se a projetarmos dentro de um microscópio, enxergaremos cadeias laudatórias ainda mais prufundas, onde perderemos a referência que nossa visão é capaz de captar e cairemos na dedução de um estado "sine qua non", "ad infinitum". Pelo menos até o finito concebível como infinito presumívelmente dado.
Cabe acrescentar que o sentido em branco apresentado é o de vazio, mas que não se poderia visualizar um vazio, o que mais uma vez descarta o exemplo da folha, pois é visível demais para ser tratada com tamanha indiferença.
A folha também pode revelar sem que se escreva nela, não apenas em sua forma aparente, mas na sua mobilidade, cabendo o conceito de "dobra", quem não se rende a arte do "origami"? Esta lauda é uma superfície, logo, ela atende uma ocupação dada, não podendo ser diluída enquanto não-coisa.
Nem temos a sofisticação de sermos impressos, pois a tábula é a primeira impressão, no máximo seremos [re]impressos, justamente por ela nos acompanhar nessa aparente revelação, como se ela formasse a base, entre nós existisse o carbono e nós fossemos a folha debaixo.
Aqui o sentido é analógico, a folha autêntica está dada, mas nós nos fixamos a ela nessa confluência carbônica, onde o processo dessa junção gerará impressões em nossa forma sobreposta. Em dado momento nós também fazemos papel de carbono nessa relação e os frutos gerados que fogem a nossa compreensão imediatista, são as cópias espalhadas, trocadas de mãos e reproduzidas incontáveis vezes por motivos alheios à vontade primeira.
Baseados nos argumentos expostos até aqui, não posso concordar com John Locke, nós não somos tábulas rasas, folhas em branco, laudas pálidas e nem papiros virgens. Somos uma infinidade na forma tabulista, folhista, laudatória e papírica, até pela formação a nível pré-industrial da matéria-prima que compõe tais objetos, cada uma delas formada por minerais, vegetais e outros tantos fatores que ignoramos, devido a nossa taxonomia limitada.