Não posso sumir!
Lendo mais uma obra de João Ubaldo Ribeiro, intitulada "Sargento Getúlio", acabei me deparando com um trecho onde ocorre um diálogo entre duas personagens, conforme transcrevo abaixo:
"Por que vosmecê não some? Eu sumir, eu sumir?Como eu posso sumir,se primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre, não posso sumir de mim e eu estando aí sempre estou, nunca que eu posso sumir. Quem some é os outros, a gente nunca."(RIBEIRO, 1984: 84)
Tal trecho me fez desejar uma exposição sob a ótica existencialista.
Por que eu não posso sumir? Pois a partir do momento que sumo, deixo de existir, a minha presença é a manifestação de que existo.
Muitas vezes me deparo comigo mesmo diante do espelho, aquele olhar procurando o outro olhar, o que fazer? Posso até olhar em outra direção mas sei que ele continua ali, basta que volte a encará-lo e ele aparecerá. Esse sou eu.
Procuro muitas vezes fugir de mim, mas como fugir do eu-mesmo? Pois onde vou eu me acompanho e sei que estou à medida que sou. Sou por estar ali, por existir. Ah, eu existo!
Aquela sombra é apenas um fragmento outro do que seja esse eu-mesmo, o fato é que sou.
Apareço justamente por ser e apenas quando deixo de ser que ocorre a desaparição.
Mas quando ocorrer o meu desaparecer, já não serei mais.
Mas e até lá?
Bem, até lá, eu sou. Por mais que queira ser essa negação de ser, negando eu sou, a medida que só posso negar aquilo que é.
Mas como podemos perceber no restante do diálogo, o personagem cita que quem some são os outros.
Aqui sou remetido a alteridade sob uma perspectiva sartreana.
Apenas quando deixo de ser e me torno outro é que sumo. Eu apareço a eu mesmo a todo instante, mas não apareço ao outro, portanto inexisto a ele, mas quando passo a ser conhecido, me torno algo diferente do que era, assumo a persona sob a perspectiva daquele que me conhece. Me torno também outro. Esse outro que não eu mesmo, essa inexistência do que sou, captada apenas pelo outro ser.
Inexisto à minha percepção quando sou visto sob a ótica do outro, pois não posso captar esta outra dimensão de mim mesmo.
Assim como o pequeno trecho citado menciona, eu sou a partir do meu existir, eu comigo mesmo.
O outro inexiste e mesmo quando passa a existir é apenas uma apreensão outra que não aquela que ele conhece.
Eu estou para o outro como o outro está para mim, como inexistentes, mas ambos existentes em relação a si mesmos, podendo também ocorrer a percepção através da apreensão que fazemos, mas evitando a má-fé que ofusca e aprisiona a razão.
Assim temos a nós mesmos como parâmetro do que é, enquanto o outro equilibra sendo parâmetro do que não somos.
Minha existência acaba quando começa a do outro, ou seja, uma outra existência, outra percepção sobre o que sou, não captada por mim, apesar de fazer parte dela, deixando de ser um fim em si e me tornando um meio, sendo que os meios são outros fins.
Assim o outro através da inexistência de nós mesmos, permite que possamos conhecer uma outra esfera do que somos-sem-ser.
Isso me faz recordar uma frase que escrevi em uma outra ocasião: "O escárnio alheio é o escárnio de si próprio manifesto através do outro pela incompetência de sentir por si mesmo."
Chamo de efeito Medusa, pois como se conta na mitologia, quem olhasse para os olhos dessa Górgona era petrificado. Assim, nós, diante do espelho, conseguimos perceber ainda o que somos, mas o outro possui uma outra esfera de conhecimento de nós mesmos que é responsável por findar nosso existir. Entretanto, utilizamos o outro da mesma forma que Perseu, como espelho para poder enxergar a Medusa sem sem destruir, ou seja, captar essa outra realidade sem deixar de existir.
Além da compreensão valiosa feita por Clarice Lispector ao expor que o outro do outro sou eu mesmo.
Referência Bibliográfica:
RIBEIRO, João Ubaldo. Sargento Getúlio: romance. 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.