O Enunciado Foucaultiano

Quando nos referimos ao enunciado, deparamos com algo diversificado, embora, aparentemente, esteja atrelado a uma evidência, tendo em vista seu papel de explicitar. O enunciado, manifesta o que é pela sua evidência, facultando aos que o apreendem um sentido “ex facto”, pela conformação de uma pré-visualização captada.

Deve-se ater a uma lógica intrínseca que se faz contrária a uma possível captação inteligível discursiva, ou com mais acuidade observamos, uma dinâmica própria recorrente da enunciação em si, criando um a posteriori a partir de uma metalinguagem condicionada por um continnum de rupturas relacionantes.

Parece, a princípio, algo de difícil assimilação, entretanto, o ensaio aqui exposto pretende um possível esclarecimento acerca deste processo.

O corpus teórico aqui apresentado explora a argumentação de Michel Foucault, conforme exposição a seguir: “O punhado de caracteres tipográficos que posso segurar na mão, ou ainda as letras que estão indicadas no teclado de uma máquina de escrever não constituem enunciados: são muito instrumentos com os quais poderemos escrever enunciados. Em compensação, as letras que traço ao acaso em uma folha de papel, tal como me ocorrem e para mostrar que elas não podem em sua desordem constituir um enunciado, que são elas, que figura formam?[...]

Eis-nos, pois, em presença de um certo número de conseqüências negativas: não se requer uma construção linguística regular para formar um enunciado (este pode ser constituído de uma série de probabilidade mínima); mas não basta tampouco qualquer efetivação material de elementos linguísticos, não basta qualquer emergência de signos no tempo e no espaço para que um enunciado apareça e exista.”(FOUCAULT,1972:107).

A partir da demonstração foucaultiana, evidencia-se como primeiro aspecto, dois fatores diretamente relacionados ao objeto-enunciado, constatando a priori que não basta apenas o fator físico linguístico, manifesto através de caracteres, tendo em vista o objeto mencionado no exemplo, ou poderíamos citar como exemplificação o teclado de um computador ou mesmo a logicidade de um processo binário analógico. O fato presenciado sob a perspectiva visual objetivante, demonstra a enunciação não concretizada, apesar de uma materialização de caracteres para uma possível instrumentalização.

O segundo aspecto apresentado é a diagramação desordenada dos elementos dispostos de forma aleatória em uma lauda, o que faz-se evidenciado enquanto não enunciativo, o que nos remete ao questionamento acerca do que diferenciaria o objeto-enunciado das dispersões acima mencionadas?

Levando em consideração o já mencionado, ou seja, procurando atribuir uma lógica própria ao objeto-enunciado, excluindo o simples fator copista de reprodução do objeto analisado, ou o reducionismo de relegá-lo a interferência de um sujeito, tornando o indivíduo fator preponderante na efetivação enunciativa, temos um terceiro elemento, e este transforma signos em enunciado.

O próprio Foucault, questionando-se a respeito de tal problemática, apresenta um quadro de quatro variáveis, que de forma sucinta exponho: “Uma série de signos se tornará enunciado com a condição de que tenha com ‘outra coisa’ uma relação específica que é concernente a ela mesma, - e não à sua causa nem a seus elementos.”(FOUCAULT,1972:111).

A princípio faz-se notório a necessidade relacional, mas não de forma apenas extrínseca ao objeto-enunciado, tendo em vista que as relações também são intrínsecas e dialogam dentro da esfera do objeto, criando assim uma realidade distinta ou meta-realidade que influencia “ex facto”. O enunciado é extrapolante às normatizações que lhe são alheias, sendo em contrapartida restritivo ao seu campo meta-linguístico (fazendo um adendo que a meta-linguística aqui exposta refere-se a uma permuta recorrente dentro do próprio enunciado, um processo endógeno). Foucault também expõe: “Um enunciado, além disso, se distingue de uma série qualquer de elementos lingüísticos, porque mantém com um sujeito uma relação determinada. Relação de que é necessário precisar a natureza e separar, sobretudo, das relações com as quais poderia ser confundida.”(FOUCAULT,1972:115).

O processo relacional não exclui o fator “sujeito” do processo, entretanto, o expõe como não condicionante, demonstrando a versatilidade e até certo ponto, independência do objeto-enunciado, facultando-o a um plano extra-indivíduo e de permuta relacional com o mesmo. Além disso: “Terceira característica da função enunciativa: não pode se exercer sem a existência de um domínio associado. Isto faz do enunciado algo diferente e mais que um simples agregado de signos que precisaria, para existir, apenas de um suporte material – superfície de inscrição, substância sonora, matéria moldável, incisão vazia de um traço. Mas isso o distingue, também e sobretudo, da frase e da proposição.”(FOUCAULT,1972:120).

Conforme exposto acerca da não finalidade materializante de sentido, o enunciado foge ao objeto demonstrado, extrapola toda aquela captação e busca no campo da cognição uma funcionalidade porvir, entrecruzando relações que se formam em um aparato intrínseco que possui uma lógica própria, negando a logicidade prescritiva, ao mesmo tempo criando uma dialógica descentralizada entre o relacional e não-relacional, focando no objeto-enunciado.

O fator preponderante nas relações manifesta-se pela utilização e regimentação do objeto, não apenas pelo que lhe pertence, mas também por sua negação, possibilitando a criação de um paradigma que possui a si enquanto referência, limitando o sentido que lhe é concernente e habilitando explorar lacunas dissonantes.

E como última etapa analítica do esquema foucaultiano: “Finalmente, para que uma seqüência de elementos lingüísticos possa ser considerada e analisada como um enunciado, precisa preencher uma quarta condição: dever ter existência material.” (FOUCAULT,1972:125).

Concluí-se que somente existindo o objeto pode ser um enunciado - seguindo a logicidade do processo - apenas facultando a racionalização analítica ao campo do concreto, lidando com o palpável e que mesmo não sendo restrito a ele, deve-se tê-lo enquanto imprescindível.

O enunciado projeta-se como uma complexa gama de inter-relações que abrange o sujeito, o objeto, a materialidade contida e adjacente, criando conexões próprias, ao mesmo tempo interligando o extrínseco consigo, fomentando uma hermenêutica embrionária restrita ao domínio espacial por ele mesmo traçado, ao ponto de corromper a estrutura de uma sintaxe ou mesmo não se limitando a um papel semântico, aparecendo tais fatores relacionais como o terceiro elemento que legitimaria o objeto-enunciado.

Sintetizando, o enunciado faz-se a partir de uma lógica relacional que envolve desde uma dialética material com as lacunas evidenciadas (imaterial), perpassando por uma delimitação espaço-temporal, envolvente no âmbito de um mutualismo com o sujeito em uma ambíguo permuta de influências, tendo por fim um campo imagético de ação que interage com certa autonomia em relação aos próprios fatores que o compuseram.

Referência Bibliográfica:

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 15. ed. tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. revisão: Lígia Vassalo. Petrópolis - RJ: Vozes, Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1972. (epistemologia e pensamento contemporâneo)