O enquadramento de Um copo de cólera na Pós-modernidade
Com base no texto Histórias do Brasil Contemporâneo, de Ligia Cademartori, buscou-se uma aproximação entre a novela Um copo de cólera e algumas postulações ou características da chamada narrativa “pós-moderna”. Como opção para direcionar o encaminhamento da análise, o primeiro tópico a se elencar foi a ausência de um grande projeto social ou político por parte do protagonista, uma postura que encadeará várias outras. O protagonista anônimo decidiu enclausurar-se num sítio, construindo como que uma fortaleza, adotando um estatuto de ermitão, passando grande parte de seu dia no terraço, num contato muito esporádico com os empregados, apontando para uma falência de comunicação. Sua vida é manter-se alheio a tudo que acontece ao redor, digamos que até ao que se passa em seu próprio sítio. Não tendo um projeto de vida, não se pensa num futuro, até mesmo há uma descrença quanto a este, levando, inclusive, a um descrédito quanto às palavras, já que “eram soluções imprestáveis” (pg. 52). O problema não se concentra apenas no futuro, o presente é desestabilizado e o passado luta para ser apagado. Nesses moldes, a noção de mundo e a percepção moral enfraquecem, estendendo o descrédito até os valores, sabendo que “já foi o tempo em que reconhecia a existência escandalosa de imaginados valores, coluna vertebral de toda ‘ordem’” (pg. 54). O acúmulo de descrenças vai se condensando a ponto de culminar na ideia de desordem, com cada um tendo sua própria ordem: “e você, que vive paparicando as ciências humanas, nem suspeita que paparica uma piada: impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém arruma a casa do capeta; me recuso pois a pensar naquilo em que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a família, a igreja, a humanidade; me lixo com tudo isso!” (pg. 55). Crítica ao poder e ao autoritarismo, aqui surge a ideia de superioridade e aniquilamento do outro: “não é você que vai me ensinar como se trata um empregado” (pg. 40). Destruição do outro ou mesmo uma autodestruição se dá no terreno em que razão e emoção já não se separam, com o fim da discussão, repleta de cólera, a jornalista vai embora e o protagonista se vê no chão: “eu só sei que de repente me larguei feito um fardo, acabei literalmente prostrado ali no pátio, a cara enfiada nas mãos, os olhos formigando, me sacudindo inteiro numa tremenda explosão de soluços (eram gemidos roucos que eu puxava lá do fundo)” (pg. 81).
Pensando na relação do par protagonista, está clara a anulação dos laços matrimoniais e a opção pelo “ajuntamento”, e que só pelo calor da paixão anula-se a oposição entre ambos. Há quase uma unificação, embora a jornalista entre praticamente como figurante no ato sexual em si. Parece acertado mencionar que até em relação ao sentimento vê-se uma oposição, pois o homem aquece a relação com o álcool, de combustão rápida, mantendo uma opção pela paixão; enquanto a mulher opta pela lenha, metáfora para o que seria o ritmo diferenciado do amor. Ela tenta segurá-lo mais tempo na cama após a relação, tenta seduzi-lo no banho, busca mudar o processo de combustão masculino, mas o protagonista foge e não se rende, há um esvaziamento sentimental. Digamos que haja uma vida a dois, mas esta se sustenta em casas separadas: “e quando cheguei à tarde na minha casa” (pg. 9), nas palavras do protagonista; “e quando cheguei na casa dele” (pg. 83), nas palavras da jornalista.
Nesses termos, são desnudados os “precários vínculos orgânicos entre os indivíduos” (CADEMARTORI, 1996), exacerbados pela dinâmica social imposta pela obsolescência programada. A precariedade é tanta que não se questiona a ausência de nomes referentes ao par protagonista, são unicamente lados opostos. O nome sugere conhecer o outro, e na narrativa o outro só aparece por meio de pré-conceitos, juízos de valor instaurados por suposições inexoráveis: “eu sabia, que eu tinha a explorar áreas imensas da sua gula, sabendo, como eu sabia, de que transformações eu era capaz” (pg. 70). Sem contar o fato de que o ver o outro é praticamente metonímico: “ela de mansinho, muito de mansinho, se achegaria primeiro dos meus pés, que ela um dia comparou com dois lírios brancos” (pg. 17).
Embora haja uma única cena de amor na narrativa, afinal esta vai da tarde de um dia à do outro apenas, ressalta-se uma espécie de apatia por parte do protagonista, dominando a esfera do sexual e a da luta política. Ele não tem uma luta, o sexo é frio, sem prazer para a mulher, um sexo praticamente verbal, mais no seu diálogo do que nas imagens: ele fugiu das garras dela no capítulo O levantar. É interessante mencionar que ele empregava mais ardência no extermínio das formigas que no ato sexual: “a reprimenda múltipla que trazia, fosse pela minha extremada dedicação a bichos e plantas, mas a reprimenda, porventura mais que queixosa, por eu não atuar na cama com igual temperatura (quero dizer, com a mesma ardência que empreguei no extermínio das formigas)” (p. 35). As marcas de um sujeito medíocre pululam na luta por aniquilar o formigueiro, causador do buraco na cerca viva, pois ele se desdobra, toma atitudes exageradas, se descontrola com algo tão ínfimo, vai colecionando ações irrelevantes até encontrar algo mais forte do que ele: a mulher com discurso. Nesse ponto extrapola o rosário de ações que não geram nada produtivo, pois sem possibilidade de enxergar a mudança presente na mulher, agride-a e acaba no vazio. Em se tratando da cerca viva, notamos a precariedade e as soluções limitadas, visto que ao conseguir destruir o formigueiro não compreende que o problema não estava nele, mas na precariedade de uma cerca viva.
O problema da incomunicabilidade é crucial na novela, já começamos a notá-lo no início da narrativa, quando o casal sobe para o terraço: “e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio” (pg. 10). É ela que tenta romper esse silêncio, porém o resultado é insatisfatório, ele não responde as suas perguntas. Delata-se também a oposição que se efetivará mais com o desenrolar da trama. Tudo aponta para o caos na vida dos dois, a tão difícil convivência: “já foi o tempo em que via a convivência como viável” (pg. 54). Desta crítica germinava outra ao mundo, a um “mundo estapafúrdio” (pg. 55). Nas palavras de LIPOVETSKY, “as pessoas cada vez mais suportam com dificuldade os outros e acho que há uma aspiração à comunicação, mas sempre com maior dificuldade em obter uma comunicação satisfatória com os outros”. Isso é mensurável nos diálogos, se assim podemos chamar, que compõe o momento do esporro, no sexto capítulo.
Se o problema de comunicação é vigente, a ideia que temos é que o sexo é a única solução para vencê-lo: “e ela entrando em agonia disse suspirando ‘amor amor amor’ e eu vi então que eu tinha definitivamente a pata em cima dela, e que eu podia subverter” (pg. 74).
Dá-se o retrato de uma sociedade agônica: “tom trágico como protótipo de uma classe agônica” (pg. 59), regrada pela noção de espetáculo, de mandar o privado às ruas. A primeira noção de espetáculo só envolve os dois, “nós parecíamos dois estranhos que seriam observados por alguém, e este alguém éramos sempre eu e ela” (pg. 12). Em outro momento há menção a uma plateia: “ela não só tinha forjado na caseira uma plateia, mas me aguardava também c’um arzinho sensacional” (pg. 33). Um pouco mais adiante, intensifica-se a noção de espetáculo: “não tinha dúvida de que ela gozava de audiência” (pg. 51).
Por fim, deve-se mencionar a presença de intertextualidade, primeiro uma bíblica: “e quem é o macho absoluto do teu barro?”, fazendo alusão ao fato de que a mulher veio da costela do homem, e este veio do barro. Depois se menciona Aristóteles e “seu mundo das ideias”, até chegar a Fernando Pessoa: “eu tinha sido atingido, ou então, ator eu só fingia, a exemplo, a dor que realmente me doía”.
Referências Bibliográficas:
CADEMARTORI, Ligia. Histórias de um Brasil Contemporâneo. In: CERRADOS – Revista do Curso de Pós-Graduação em Literatura. Brasília: UNB. n 5, ano 5, 1996.
LIPOVETSKY, Gilles. O caos organizador.
NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.