DOM XICOTE – ORALIDADE E IMAGEM CRONOTÓPICA

DOM XICOTE – ORALIDADE E IMAGEM CRONOTÓPICA

* MOURA LIMA

“Um escritor se firma e permanece na lembrança de seus contemporâneos especialmente em função de sua inventiva, de sua técnica, de sua linguagem e/ou de seu poder renovador”.

Almeida Fischer

Francisco Miguel de Moura, romancista, poeta, contista e crítico literário dos mais atuantes hoje, entre os laureados de maior destaque no cenário das letras do país, graças ao seu talento e à seriedade na elaboração de sua vasta obra,que o projeta acima de seu tempo e de seus contemporâneos. O seu sucesso como escritor é marcado por vários prêmios, inclusive de âmbito nacional, figurando também em antologias editadas no Brasil e exterior.

Como crítico literário de acentuada militância na imprensa, notadamente, em seu estado, já publicou, com sucesso editorial, dois livros de ensaios: “Moura Lima – Do Romance ao Conto-Travessia Fecunda pelos Sertões de Goiás e Tocantins”, e “Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho”. A sua crítica é refletida, impressionista, simples, sem o vazio inibidor, que camufla a linguagem erudita de muitas publicações.

Porém, o novíssimo romance Dom Xicote, de Francisco Miguel de Moura, é o registro da síntese literária de toda a sua obra, é como se o víssemos percorrendo uma extensa planície e, no final, o divisássemos bem no topo de uma montanha, estático, de gesto sereno, de quem não tem pressa; com o rosto voltado para o poente, mas pleno de satisfação, e contemplando, de forma definitiva, o resultado de sua vitoriosa carreira de escritor bem-sucedido, na ficção brasileira.

O novo romance do festejado escritor piauiense já nasceu predestinado ao sucesso, foi ungido no nascedouro com o prêmio nacional Fontes Ibiapina de Literatura, da Fundação Cultura do Estado do Piauí.

Mas é bom que se diga; o que garante o sucesso de uma obra literária é o conteúdo artístico – nada se altera ou se acrescenta, se o autor é rico, pobre, político, feio, bonito, nobre, plebeu. Graças ao soberano dos mundos, é um jogo de inteligência e competência, onde não entra o domínio corrompido do poder material - temporal da sociedade.

De fato, o que garante, em literatura, a imortalidade da obra de arte são os requisitos da técnica de construção, o estilo, o enfoque profundo, a competência de movimentar personagens como seres vivos, de carne e osso!

Se, no romance “Laços do Poder”, o romancista maior do Piauí atingiu a plenitude de sua obra ficcional, com uma narrativa fragmentada, dialógica, em que as vozes das personagens vão-se interligando, numa atmosfera de denúncia e conflitos existenciais, e, agora com o novo romance, qual foi o caminho palmilhado pelo notável escritor?

Responderão, naturalmente, os Senhores da escrita: - Foi o caminho da maturidade e da experiência com o texto acabado!

Da nossa parte, creio eu que o escritor Francisco Miguel de Moura, simplesmente, deu uma pausa na sua já consagrada obra literária, para atender o apelo secular de Tolstói:

- Volte para a sua aldeia, e serás Universal!

E, assim, o fez o brilhante escritor, para cantar e decantar em Dom Xicote a região de Curral Novo, fazenda Jenipapo, reduto de seu nascimento, no sertão agreste do Piauí.

O romance é bem estruturado, com diálogos bem elaborados, frases melodiosas, que, no dizer de Gilberto Freyre, dá vida ao estilo do escritor. E tem personalidade própria, pois uma obra sem personalidade é uma obra morta. O romance, sem embargo, resiste de forma convicta a qualquer desmontagem ou análise de texto que se lhe faça.Os elementos de literariedade, que lhe assinalam toda arquitetura, respondem com vitalidade os questionamentos que lhe sejam feitos. A visão da sociedade sertaneja que comunica é a da vivência do autor. O personagem central, Dom Xicote com X, que não é Dom Quixote, de Cervantes, mas que foi alcunhado pela namorada Amanda, no fundo, não passa do alter-ego do autor, que, num processo de assunção psíquica, volta a sua infância sofrida, naquele chão bruto, onde campeava a fome e a negra pobreza. E a única alegria do menino Xicote (CHICO), de aspecto magricelo, verdadeiro cipó de dar em alma, era quando a mãe dirigia-se para a casa da rica tia, a tia Rosa, que na verdade não passava de uma unha-de-fome, uma muquirana, pois, na hora de o pobre Xicote matar a fome, de pronto advertia:

- Zefa, este menino seu come demais. Eu não suporto.

Portanto, em Dom Xicote encontram-se duas vertentes da ficção de Francisco Miguel de Moura. A primeira é a do romancista voltado para o drama psicológico das personagens. A segunda é a do escritor preocupado com os problemas sociais do seu tempo. E essas projeções introspectivas devem ter assinalado ao autor, como orientação de suas premonições artísticas. Afinal, seus personagens – tipo predominante ao longo do romance, e também de sua produção literária podem ser rotulados como “pacatos”, “predadores”, “oprimidos”, e, estão cheios da timidez e da compunção moral, como fator de uma mentalidade atormentada pelo agravante do meio, aliás, extremamente corrupto, degenerado e cruel.

A arquitetura social do romance se reveste de superioridade, em razão da unidade alcançada, bem como do cronotopo delineado, e enquadra-se com uma série de esquetes, memória pessoal, documental e constituindo, assim, uma forma mista. Com efeito, o autor misturou o erudito, o burlesco e o popular. Com isto, dentro de sua intuição artística, criou uma acentuada sátira menipéia dos sertões brasileiros.

No romance está presente o discurso polifônico, que o torna uma manifestação multívoca, em que as mais diversas vozes sociais encontram espaço de emissão. O autor no seu processo criativo usou o enobrecimento da linguagem através de recursos estilísticos, consagrados pela língua culta, isto é, a literaturidade.

Não pense, porém, que este é um romance picaresco. Pelo contrário, Dom Xicote é, sobretudo, um romance de ritmo, de clima, de ambiente, e de uma atmosfera carregada, onde a morte é uma presença constante, como também a morte espiritual, simbolizada pelo estiolamento psicológico dos personagens. È uma narrativa sombria, pesada, que envolve os personagens numa solidão asfixiante.

Assim sendo, nada melhor do que ilustrarmos o presente ensaio com subsídios do próprio texto do autor. Vejamos, porém, a seguir uma passagem do autor de grande poder imagético, que nos faz lembrar de Dostoievski, no seu romance “Recordação da Casa dos Mortos”; a cena soberba da expulsão da águia ferida, que estava impossibilitada de voar por causa de uma asa quebrada. A ave recusa-se a ser amansada, negando-se até mesmo a comer. Os forçados (prisioneiros), logo se cansaram da novidade, em razão do espírito indomável da águia que os levou a libertá-la:

-“ Que morra, mas não na prisão! ”

E um forçado a soltou para a liberdade, naquele dia frio, de final de outono, na tenebrosa paisagem da Sibéria, que no fundo simbolizava o sonho de liberdade de todos os prisioneiros. Os forçados observavam, curiosos, sua cabeça esvoaçando por cima da grama.

-Olhem para ela!- disse um deles sonhador.

- ... Ela está voando!

- Ah, é certamente a liberdade. È a liberdade que ela está farejando.

Vejamos, agora, um recorte do texto de Francisco Miguel de Moura:...

- “Só tenho raiva de Zé Bila porque roubou meu canário. Estava resolvido a soltá-lo, queria, sim, vê-lo tirando um vôo grande de liberdade!”

E esse “ vôo grande de liberdade” é a voz subjetiva do narrador, que tenta, de forma sutil, a libertação dos grilhões sufocantes que o prendem ainda, inconscientemente, na masmorra da pobre infância e do círculo dos excluídos sociais.

Vejamos outro fragmento revelador dessa atmosfera densa e opressiva:

- “ Os ricos... Eles não trabalham. Só comem, são os esmeris da humanidade”.

E, assim, o autor vai marcando o tempo psicológico com unidades de recordações e criando personagens marcantes como a do falso médico doutor Crucifon, que enganava aquela sociedade sertaneja, no dizer do narrador – a terra dos condenados -“Era um lugar carente de tudo, de dentista, de padre, de médico...”

E, concluindo, devemos ressaltar que a oralidade está presente na transposição lingüística e na irradiação semântica, que marca a ação combinatória ou sintagmática do torneio frasal, e cria efeitos de grande poder expressivo, talvez reflexo do que lhe ficou dos autores que o marcaram como William Faulkner e Thomas Hardy. Não há dúvida de que o romance é marcado pela dor, a angústia, o ceticismo, mas aponta para a posteridade como obra profunda e de exuberante riqueza estilística, que certamente conduzirá o autor para o panteão da moderna literatura brasileira.

**Texto extraído do livro do escritor Moura Lima – Zênite-A linguagem dos Trópicos - ed. Cometa, 2° edição, Gurupi-to-2007

*Moura Lima é advogado, pós-graduado em língua portuguesa, escritor, romancista, contista e ensaísta. Membro fundador da Academia Tocantinense de Letras, cadeira nº 15, pertence também à Academia Piauiense de Letras, como membro correspondente.

E-mail: j.mouralima@zipmail.com.br

MOURA LIMA
Enviado por MOURA LIMA em 30/11/2009
Código do texto: T1952853
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