Das Camas

(01.04.2009)

Certa vez, fiquei a refletir sobre quem inventou que transar é na cama. Como se chegou a essa trama: transa na cama?

A cama é um bom lugar para se ler. Lê-se de tudo. Vê-se, também. Televisão, filmes, a Lagoa da Conceição etc. Vê-se até “Na Cama com Madonna”. Estava a refletir sobre este nome: “Madonna”. Nossa Senhora, em italiano. O que a Madonna tem de Nossa Senhora? Só se for nossa. Senhora é que ela não é. Principalmente, na cama. O que retorna à idéia de transa. Pois é, a primeira coisa que cama nos lembra é de sexo. Porém, é o que menos fazemos nela. Por exemplo, quando criança costumava ouvir: “vai chorar na cama que é lugar quente”. Era uma forma de ofensa, de xingamento. Tai, de novo usamos o que nos dá prazer e descanso para o descaso de agredir. Estranha essa humanidade, não?

Na cama, podemos refletir. Deitarmos para relaxar, descansar, tirar uma soneca, sonhar, dentre outras coisas mais; e más. Quanto a refletir, segundo Aristóteles, o melhor é andando. Fundador da Escola Peripatética, o filósofo gostava de dar seus ensinamentos de forma itinerante ao redor do Liceu. Donde vem a palavra “lição”. Curioso é que, se “peri” significa “ao redor”, por quê, quando solto, o termo “patético” significa “sem graça” ou coisa que o valha? Sei não; sei lá. Sei que as “Pathetique”, de Beethoven ou Tchaikovsky, nada têm de sem graça.

Contudo, nem toda cama é patética. Liteiras também eram camas e serviam para levar Domine e outras formas de senhoras e senhores aos seus destinos. Carregadas por escravos, era um meio de transporte chique, na Roma antiga. Portanto, desde aquela época a cama poderia significar sacanagem. Seja para escravizar, seja para os bacanais. E, daí, é importante frisar que bacanal era um ritual dito inspirado por Bacco, o Deus do Vinho e patrono da agricultura e do teatro. Bacco é a versão romana para o Deus grego Dioniso. “Dio” de Deus, “Niso” de ninfas. Pois, está lá a cama no meio disso tudo; ou tudo isso no meio da cama.

Também, os banquetes eram saboreados com os participantes quase deitados. Seguindo este pensamento, chegaremos às almofadas, aos tapetes e afins. No Oriente, refeições são em posições de relativo conforto. Do Oriente ao Ocidente, o bom mesmo era ficar perto do chão. Mas, com o passar do tempo, fomos nos afastando dele e de seu sentido. Cama, mesa e banho tornaram-se ambientes que nos afastam. E já não conseguimos tanto chegar ao chão, que se tornou manifesto de desonra, para nós, ocidentais.

Do chão, nesse sentido, vem uma história horripilante de Bombinhas: uma professora calou um de seus alunos colocando-lhe esparadrapo na boca. Veio à tona. Algumas poucas pessoas da comunidade lutaram para que a professora (se é que se pode chamar essa Neanderthal de professora) fosse punida. O resto, incluindo a prefeitura, a protegeu.

O que quero deixar claro, com esse papo subcama, é que a comunidade de Bombinhas desafia o Estatuto da Criança e do Adolescente na cara dura, e nada acontece. Chegamos ao chão das cavernas. Isto, sim, é uma sacanagem. À criança só resta “chorar na cama que é lugar quente”. Depois, traumatizada, se vier a se tornar um delinqüente, ainda será enforcada; enquanto a Neanderthal é protegida por uma comunidade caipira e arcaica. Primitiva.

Em se falando em agressão, no futebol há a Cama de Gato. A cama violenta, desleal: dois pulam para a cabeçada; o agressor deixa de pular e faz aquela posição da brincadeira de carniça; o que foi perde-se no ar e cai num salto, literalmente mortal, ao rolar pelas costas do safado. Sacanagem. Todavia, cama de gato pode ser aquela brincadeira com as mãos, a qual nunca soube chegar até o fim.

Acredito que toda agressão gera uma seqüela no agressor. Mesmo que ele não perceba. Mesmo se for uma Neanderthal a fazer cara de inteligente (?) e “segura” de sua atitude. A própria privação da sensibilidade de perceber sua ignorância já é caminho inequívoco para a dor. A pessoa não sente. A pessoa é a dor. A dor de se viver, de ser infeliz em sua frieza e crueldade. Esquece. Dor não se explica. Aplica-se.

Voltando à analogia futebolística – ou qualquer esporte com “goal” –, é como se contabilizasse, paulatinamente, gols ao contrário. Não gol contra, que gera resultado para o adversário. É gol invertido, mesmo. Consegue imaginar o “anti-gol”? é o sentimento inverso da felicidade de se viver. Repare como um jogador fica feliz ao marca um gol. Pode ser o penúltimo contra o último colocado de um campeonato de várzea que comemora-se o feito como se fosse uma final de Copa do Mundo. Portanto, o que defino aqui, quase num neologismo, como “anti-gol” é esse prazer puxado pelo lado de avesso, homeopaticamente, como o Retrato de Dorian Gray: O Espelho dos Neanderthais.

Mas, vamos falar de cama boa. Cama bem feita, cheirosa, aconchegante. Daquelas que, ao acordarmos, rejeitamos deixá-la. Numa manhã ensolarada de frio, na Serra Catarinense, levantamos, enfim, para o café da manhã. Ora, ora, quem não ama essa refeição matinal? Principalmente, quando a passeio, numa serra – Gaúcha, também. Ou Fluminense; Friburguense, em homenagem à minha amiga Márcia. Encasacamos-nos e vamos à rua. O casaco é um cobertor ambulante. Levamos o aconchego da cama ao caminhar no ar gelado, serrano, cheiroso de todas as árvores, todos os galhos, frutos, sementes. As pessoas falam mais baixo. Os estresses passarão; nós, passarinhos.

Uma cama pode ser redonda, d’água, Queen Size, King Size ou sem milímetros. Ah, esqueço-me. Poucos de vocês, leitores, pegaram essa época dos cigarros “king size” e “cem milímetros”. Havia dois tamanhos diferentes para o mesmo mau hábito de mau hálito. Cigarro fede, é feio, cafona e incomoda. Mas, na minha infância – e antes –, era símbolo de charme, elegância. Na cama (sem Madonna), depois do coito ou do biscoito, fumava-se olhando para o teto: “foi bom pra vc?”

Sim, foi. Foi bom lembrar-me de cigarro. Isto trouxe-me à maca – ops, ao termo “maca”. Maca é a má cama. Anterior ao “ficar de cama”. Ninguém está na maca por boa razão. Bem, existem aqueles médicos necrófilos que gostam de levar as enfermeiras para o necrotério. Aí, é outro caso. É certo que, se formos nos estender na maca teremos uma distensão. Portanto, me abstenho dessa intenção.

Dessa maneira, eis que chegamos à hora de ir pra cama; dormir. Já dormi em muitos lugares: escada, carro, calçada, meio-fio (e, aí, existe uma larga diferença), balcão e mesa de sinuca (que já ouvi dizer que é fetiche de muita mulher “to make love there”). Bem, mas já que falo de dormir, antes de ir, contarei um pouco sobre o meu desacordo ao acordar:

“Hoje acordei com sono, sem vontade de acordar”. Fui tomar meu café habitual no Empório Mineiro, no Centrinho da Lagoa. Ainda no automático, vejo uma Kombi numa situação em que nada combinava com toda aquela paz matinal: alto-falante, alto no teto, gritava por um encontro de todos, àquela hora, por uma manifestação de paz. Olhei para o lado e meu vizinho de mesa arguiu: “ora, como se manifesta a paz, se a paz é algo interior?”. E conclui: “além de sequestrar a nossa paz matinal”. Sem noção! Daí, lembrei-me, automaticamente, da Neanderthal e sua comunidade primitiva.

Deu-me vontade de voltar pra cama e chorar, que é lugar quente.