O sucesso da reunião foi comemorado com gritos eufóricos de “viva la revolución”. As células do coração decidiram pela tomada do poder, com planos bem organizados de atacarem o cérebro. Tudo na convicção de que a emoção não poderia dividir espaço com a razão. Haveria de ser plena.
Os neurônios, cientes de tudo, mandaram suas tropas nervosas avançarem pela coluna cervical, de onde partiriam para outras posições. Concluíram que a revolta dos “vermelhos” – como chamavam as células cardíacas – significava grande ameaça à sobrevivência do organismo. Assim sendo, que fossem seus líderes eliminados, seus seguidores dominados e rebeldes torturados e escravizados.
Porém, cada extrema precisava da adesão de outros órgãos para consagrar seu domínio.
Um pulmão, ofegante, aceitou oxigenar o sangue. No entanto, seu irmão foi mais racional.
Órgãos que ficaram imparciais sofreram: o estômago não conseguiu digerir o assunto; os intestinos não entendiam de onde vinha tanta merda; e o sistema hepático não tinha fígado para agüentar aquilo.
O conflito se desencadeou muito rápido. Batalhões de vermelhos cheios de adrenalina invadiram por todos os lados, e o sangue começou a jorrar. Glóbulos brancos encurralaram um grupo de células da glia e, sem qualquer paixão, executaram-nas a sangue frio. Por sua vez, a medula óssea atacou irracionalmente seu berçário de hemácias.
Muitos rezavam, mas o impiedoso espírito da guerra já havia predominado nas mãos dos desalmados.
Do cérebro, conseguiram apenas o lado direito, mais fragilizado. Ao passo que neurônios e glias mantiveram suas posições na parte esquerda. O que poderia parecer incoerente, não era. Até para radicalizar foram obrigados a aceitar a natureza direita do hemisfério esquerdo, e vice-versa.
Portanto, a esta altura da revolução, uma mão já não lavava mais a outra. E o corpo ficou com um pé atrás.
Nisto tudo, uma bactéria que passeava de férias, percebendo o perigo que corria nesta nova versão do dia de São Bartolomeu, escapou dali na primeira golfada de ar.
Conforme se distanciava daquele corpo inerte, foi tendo a perspectiva dos fatos: aquele universo perdia sua cor, sua pele desidratava e tais debilidades abriam espaço para invasores; enquanto suas células internas, cegas por obsessões pessoais, matavam-se mutuamente.
Neste momento, notou a presença ereta de dois outros universos – um de preto, outro de branco.
Ouviu o que diziam:
“Doutor, qual foi o motivo do óbito?”
“Falência múltipla dos órgãos”
“Que Deus o tenha” suspirou, fazendo o sinal da cruz “Mas, o que a originou?”
“Radicais livres”.