O ETERNODIA DA CRIAÇÃO
Era um eternodia no cosmos. Nada havia sido feito e muito havia para se fazer. Ninguém para trabalhar, porque o trabalho não havia sido inventado. E nem o seria tão cedo. O caos era caótico. Nas asas da eternidade, Deus, o ser supremo, arquitetava um mundo perfeito. Pensou em todos os detalhes. Desde uma explosão imensa, para oferecer aos pensadores do século XX da nossa era uma teoria quase que simplista-inventada-promissora-de-crença (nem sei se depois da reforma ortográfica posso usar esses milhões de hífens), pois sim, eu dizia, desde uma explosão imensa à capacidade de escutar essa explosão e de enxergar em sete cores, pois afinal Ele já arquitetara o arco-íris e se não criasse seres não daltônicos não teria graça nenhuma produzir um arco-íris. Arco-íris em tons degrades de cinza não teriam efeito nenhum, nem serviria de sinal para a perpetuação da espécie, pois poderia ser produzidopela esquadrilha da fumaça.
Pois bem, nesse eternodia (é assim mesmo, tudojunto), o Criador, que ainda não era o Criador, mas o Todo-Poderoso, decidiu ousar completamente. E para dar exemplo de que deveria ser a criação produtiva, plantou um jardim. Um belo jardim entre quatro rios, com tudo o que se precisava para ser feliz. Acredito, inclusive, que a primeira palavra em língua antiga a ser criada pelo Grande Arquiteto foi felicidade. Imagino, depois da prancheta pronta, o imenso sorriso divino na face dAquele que ia fazer do Caos, o paraíso, do nada, um tudo, da solidão, um espaço habitável e da negritude esburacada de um misterioso universo ainda não existente, um espaço de radiação de luz e de brilho de bilhões de estrelas.
E foi exatamente esse o princípio de tudo. A luz. Porque o desejo do Criador era contrastar as trevas que, de tão eternas antes da luz, pareciam densas e palpáveis. Sim, seu desejo era iluminar o universo, desfazer as sombras, oferecer brilho, em todos os sentidos a uma criação perfeita, no universo caótico. E depois da luz, a água, o solo, os espaços geográficos dimensionados e acasalados, isostáticos e simétricos, únicos, plurais e indissociavelmente esplendorosos. E havendo luz, espaço e tempo, plantou a infra-estrutura. Estética. Respiradora. Encadeada. Estava um planeta agora, com uma rota determinada, escolhida e calculada milimetricamente para que funcionasse com todos os seus acessórios.e com toda sua beleza natural, paisagística, quase uma pintura de dedos sensíveis. Apenas o movimento dos ventos, dos passos, apenas a sinestesia simbiótica dos primeiros seres diferençavam o imaginário de uma criação da concretização desse ato.
Então, pensou que seria bom dividir. Que o espaço, o tempo, a pintura dinâmica, a mecanicidade irretocável dos movimentos das galáxias não poderia prescindir de um ser inteligente que viesse admirar essa portentosa criação. E mirando-se no espelho da eterna sabedoria, reunindo-se em seus pensamentos mais divinos, criou o homem e a mulher. Não os idealizou separados, mas juntos, um para a outra. Para dividir com eles toda a majestosa criação, para permitir-lhes compartilhar de seu poder, de suas maravilhas e para desfrutar dos prazeres que só Deus, em sua essência transcendente e plena poderia ter.
E o pôs no eternodia de sua criação no jardim magnânimo de sua obra. Não havia intenção de humilhar um burlemarxismo (corrente artístico-paisagística de quem tem um talento de Roberto Burle-Marx), mas de presentear a espécie que quis coroar com a maior perfeição, a melhor escolha, a mais venerável paisagem que se poderia imaginar.
E ainda era o eternodia quando o homem desprezou tudo isso. Antes que Rousseau pensasse o contrato social e que Locke defendesse a ação do Estado, já havia um contrato. Não se podia ultrapassar o limite. E a obediência era o limite. Mas a opção de desrespeitá-lo estava incluído no contrato. E a escolha se fez. Então, acabou-se o eternodia. Dias e noites ganharam a partir daí, um espaço especial no calendário. O espaço de se repetirem por 365 vezes, durante setenta, oitenta anos e não mais poderem ser contados.
Restou uma esperança. De conhecer a paisagem mais bela e o brilho mais acentuado. De enxergar o prisma e não as sombras da nuvem. Mas para isso é necessário resgatar-se o conceito e a consciência do eternodia. O dia que não tem princípio, não tem fim e dispensa a luz do sol. Como restaurá-lo e como encontrá-lo? Não há fórmulas. Só há caminho. Isso mesmo. Caminho, e no singular. Mas se não vou propagar aqui, neste espaço/momento, não me tenha por ruim. É só para você pensar. Para discordar. Ou para optar.