Chapeuzinho em Manhattan
Chapeuzinho em Manhattan: releitura de fábula regida pelo lugar da enunciação. Uma ênfase ao contexto: a modernidade com suas armadilhas e a influência do tempo.
Em se tratando de Literatura Espanhola Moderna, uma das características dos escritos da modernidade é estabelecer uma relação com outros textos e, além disso, buscar construir uma história amarrada por uma boa trama. Retomar os clássicos é uma forma de enriquecer a o texto novo. Em Chapeuzinho em Manhattan há a construção de uma boa história e a retomada de uma fábula de grande expressão. O próprio nome do romance faz alusão à intertextualidade. A comprovação desta possibilita o leitor inferir, cria a chance de sacar conclusões premeditadas - reveladas falsas posteriormente. A obra joga com o leitor, exige um leitor participativo, nada de passividade. Quem conhece a fábula tentará adiantar-se ao desfecho, é quando terá surpresas. A retomada da fábula apontará a uma abordagem psicológica e vivencial.
As mudanças existentes entre a fábula e esse romance moderno serão postas em análise, com o intuito de matizar a idéia da presença do foco do lugar da enunciação (no qual devemos levar em conta o tempo e o contexto em que ela se inscreve). O narrador apresenta uma história enquadrada na modernidade e sua posição no tempo será concomitante. Soaria artificial por demais um narrador se desprender sobre a fábula com um olhar moderno. O quesito tempo extra-obra literária será crucial para percebermos certo distanciamento entre fábula e romance - e por horas uma forte aproximação - como se estivéssemos numa espécie de jogo de forças. Este jogo de forças é arquitetado e engendrado no conflito entre os personagens atuantes no enredo do romance. O ambiente é moderno. Atentando-se para essa informação, vemos que ela carrega e permeia por dentro do romance com toda sua carga de valor, inclusive com sua constituição. Os tempos são outros e os perigos podem ocupar qualquer lugar. Podem estar em lugares específicos, porém a surpresa sempre pode reservar o inesperado, a reviravolta. Quebrando um pouco o gelo, é evidente que nem só de contrastes se faz esse romance. Há pontos que propiciam uma estreita relação entre as duas narrativas. O provável lugar ocupado pelo mal se concentra na mata. O bosque é perigo para Chapeuzinho Vermelho e o Central Park, para Sara Allen (isso em tese).
Na fábula, a narração é bem direta. Não há nomes e sinalizações geográficas. Chapeuzinho em Manhattan se inicia com uma breve apresentação do espaço: A cidade de Nova Iorque - mais exatamente - a ilha de Manhattan. O espaço será crucial para o desenrolar do romance, pois é um lugar carregado de ostentação.
A modernidade conduzirá o eixo da narrativa fazendo com que as atitudes dos personagens nos remetam para a contemporaneidade: construção dos personagens, o trato entre eles; a solidão, a falta de diálogo, a falta de sonhos, a perda da liberdade, o financeiro, a mesquinhez, tudo fruto corrompido nessa modernidade desenfreada criticada no romance. Quem verdadeiramente vem a ser o lobo mau? Ilusão apontar para o doce lobo - posto como o mau na história. Seria uma ironia? Em partes se fundamenta, pois ele não deixa de ‘papar” as pessoas. O que ele abocanha é que muda de figura. O que se devora é o soldo ganho com muito esforço pelas pessoas que se vêem seduzidas, rendidas a suas tentações açucaradas. Em sempre algo mais aflorando por trás, nas entrelinhas talvez. Tudo passa a ser um jogo da modernidade. De onde pode vir o perigo realmente? As máscaras encobrem a realidade de forma maciça. Extinguiram-se os lobos exteriores, somos nossos próprios lobos maus. O pior é que não é nisso que se encerra o cômico, mas está no fato de que nunca chegamos a nos dar conta disso. Somos lobos maus alimentados por um sistema que não preza a igualdade, mas sempre buscamos ser iguais. Um sistema darwiniano que prega, de modo ditatorial, a seleção das espécies. É preciso deixar os outros com fome para ter certeza de que terão bem mantido o ritual da opulência. Os tempos sofreram uma mudança drástica, o exemplo para a menina de dez anos é uma avó “politicamente incorreta”, por demais arrojada, moderna. Nota-se que Sara pende mais para o lado da avó. Lógico, não poderia ser diferente, visto que Vivian (mãe de Sara) corta todo o tipo de desejo de sonhar da filha, ao passo que a avó lhe dá todo o apoio. Vivian é a típica mulher moderna que vê o casamento ruir frente a uma vida banal. É a mulher infeliz que ataca todos os lados e não se convence de que o problema está somente em si. Seu único momento feliz é durante o feitio da famosa torta de morango, receita que vem seguindo a tradição familiar, de longa data. Vivian é a mulher sujeita à tradição. O maior intento proposto por Vivian é de passar a mesma tradição para Sara, sabendo que o resultado será negativo. Sara está ciente do câmbio temporal e não quer por nada perder esse caminho. Ela rompe com a tradição, não quer se ver como a mulher sujeita ao homem. Sara é totalmente rebelde nesse ponto. Essa sua atitude pode nos remeter à mulher reprimida, que depois se entrega à vida de consumo, de ostentação. Isso é oriundo da problemática do desconhecido. Quando Sara assume a Liberdade é como se acabasse perdendo o rumo das coisas. Devido a sua precocidade confunde liberdade com outras coisas mais nocivas. O espelho para a difusão desses equívocos, Sara o encontra na figura da avó. Esta não é capaz de ponderar, seu modo de vida permite uma transmissão direta de comportamentos, ações e pensamentos, tudo o que Sara engloba numa espécie de osmose. O processo é muito rápido e eficaz.
Questão do dinheiro
O dinheiro apresenta uma forte expressão dentro do romance de Martin Gaite. Vários personagens aparecem mergulhados no consumismo. Os que tentam fugir são obrigados ou intimados a entrar. O chefe da casa da família Taylor, além de trabalhar junto com Samuel Allen, conserta produtos eletro-eletrônicos em casa, modo com o qual consegue satisfazer os desejos consumistas de sua mulher. Temos denunciado aí a total fragmentação dos laços familiares. O homem é tirado do convívio do lar pela vida capitalista que o recruta para um exército de máquinas. A senhora Allen se espelha na senhora Taylor. Este fato transpassa à senhora Allen uma infelicidade, pois a senhora Taylor sempre está sendo regalada por seu marido com vários presentes. A senhora Allen vê nessa atitude o motivo de felicidade da senhora Taylor e infelicidade para ela, que não recebe nada de Samuel. O senhor Taylor vai despertar certo interesse por parte de Vivian, ao que tudo indica pela vida de ostentação que dá à sua mulher. Eclode-se então uma denúncia a esta sociedade capitalista, na qual o amor se compra no shopping, com as tendências da moda. Um amor que até deixou de ser carnal e virou totalmente “material”, em todos os sentidos que essa palavra possa ter.
Fábula x romance
Se o leitor possui um conhecimento da fábula Chapeuzinho Vermelho percebe uma mescla com o romance de Martin Gaite. Momentos de aproximação, de distanciamento. Tudo tem um sentido lógico e imediato. O contraponto é um dos mecanismos que engrenam a narrativa. Tanto pela linguagem como pela construção do texto, percebemos que a autora trava um diálogo com as crianças - ao menos é seu objetivo. Afloram várias outras intertextualidades com outras histórias e fábulas infantis.
Pensemos na figura de Sara, ela é uma menina que faz dez anos quase quando chegamos à metade do romance. Em qualquer estudo sobre as crianças é bem grifado que o universo delas é o imaginário. Este se constrói justamente através das histórias infantis. São elas que possibilitam à criança a oportunidade de expandir o seu mundo. Praticamente a criança é ainda um ser puro, por isso vemos Martin Gaite se dirigir dessa forma a elas. Surge do texto uma espécie de moral: se tudo fosse trabalhado diferentemente nas crianças, teríamos adultos mais preparados, com visões distintas. Insistentemente, notamos a presença desse tipo de “adultismo” afogando os sonhos dos mais velhos, dos mais maduros. Sara representa a semente que ainda pode ser salva.
Outro tipo de lobo (o lobo capitalista)
Que figura mais doce de lobo aparece no romance. De que forma mais afetiva trata nossa Chapeuzinho Vermelho. Não usa da violência, nem precisa, é mais crápula, pois compra, reduz seu contratado a um mero trampolim. Não será difícil convencer Sara a lhe entregar a fórmula mágica da torta de morango, esta que é uma receita que vem de uma tradição familiar. Do que importará a tradição? O capitalismo já deu mostras de seu desinteresse a um bom tempo. Sara é a menina “convertida”, metralhada pela vida opulenta. A sua ingenuidade lhe custará muito caro. O romance não desenvolve esta questão, mas podemos imaginar o que pode ter acontecido a sua avó. Sara será capaz de pisar sobre sua própria família. Inconseqüente, sua atitude denegrirá sua base familiar, já denegrida por sinal, mas sem chances de se colar os cacos agora. O que esperar de tal educação recebida? Uma mãe repressora e uma avó totalmente irresponsável. Sara surge como um bibelô no meio dessa balança, indo de um lado para o outro. Fosse sua avó um pouco mais sensata, soubesse tratar esse seu modo de vida com alguns cuidados, a fim de não contaminar a criança. Fosse sua mãe um pouco mais ponderada, soubesse filtrar os anseios da filha, soubesse trabalhar com esses seus desejos, o que nessa idade é imprescindível para termos um cidadão diferente, Sara não seria do jeito que é. Nesse jogo entra a questão do contraste: o desapego pela tradição X o apego descontrolado pela tradição. Ambas as atitudes serão nocivas para as personagens. A primeira atitude está concretizada na figura de Sara. A segunda, cabe a Vivian. Esta é tão apegada que chega ao ponto de perder sua própria vida; não viver, não sonhar, além de privar todos dos sonhos, do uso da imaginação, o que no caso de Sara é tão caro e importante.
Pobreza (Broklin) x riqueza (Manhattan)
Aqui temos o extrato do jogo moderno. A questão social, separações gritantes entre classes. O desejo da ascensão. Todas as maravilhas de Manhattan, e do Broklin não se vê citado nada. Parece que o Broklin não tem nada de importante ou os personagens não vêem nada de importante por lá. Não aparece ninguém que queira ir de Manhattan para o Broklin, mas o inverso é bem expressado nas figuras de Sara Allen e na filha de Peter, chofer de Edgar Woolf. O Broklin é a pobreza, é como o vilarejo apresentado na fábula. Por outro lado, Manhattan é a cidade, é a descoberta. Entre estes dois ambientes temos o Central Park - o bosque - o lugar mágico no qual tudo pode acontecer.
Sara ou Chapeuzinho vermelho moderna: uma discípula de Miss Lunatic.
O romance apresenta um jogo de personagens. Sara Allen e Chapeuzinho Vermelho disputam uma aparição no romance. A autora soube jogar muito bem com essa questão. Além disso, exige do leitor uma maior atenção e uma atuação sobre o objeto narrado. Esse jogo entre as personagens leva o leitor a crer que a figura de Sara Allen é descartável no romance, ou seja, se a tiramos temos como extrato apenas o conto infantil Chapeuzinho Vermelho. Não podemos fazer tal cisão, tudo está muito arraigado e a figura de Sara Allen liga todo o romance de forma magistral. Nos momentos em que isso não ocorre, temos a figura de Miss Lunatic para ligar os possíveis nós que tenderiam a se mostrarem frouxos.
O tempo psicológico como fuga do cronológico.
O tempo psicológico apresenta um papel triunfal na narrativa. É justamente nesse tempo que Sara se despe das marcas de uma instituição opressora, como a vida capitalista permeada pela questão do dinheiro. Uma cena em que notamos o efeito desse tempo psicológico é quando Sara fica sozinha na casa de Rebbeca (sua avó) e ao olhar para as fotos espalhadas no chão, assume as características da avó, numa espécie de transe voluntário. Ao assumir a figura de sua avó, Sara rompe com a ditadura imposta por sua mãe Vivian,além de mergulhar na atmosfera dos contos infantis: olha para Cloud, o gato da avó, e lamenta não ser como o gato de Alice, personagem de Lewis Carroll. Quando Sara volta ao tempo cronológico, a sensação que apresenta é de desânimo, decepção, pois a vida que sonha em viver, representada nessa fuga para o tempo psicológico, é muito curta, mais curta do que a própria passagem do tempo cronológico.
Sara Allen: mulher no corpo de menina.
Com o correr da obra percebemos que Sara se desprende de atitudes que a qualificam como uma ingênua menina. Para seus familiares isso acontece quando seu aniversario é feito num bar e sua mãe Vivian já procurar jogar Rod, filho de sua melhor amiga, para cima da menina. Sem tocarmos no ponto de sua família, Sara é apresentada como adulta quando é encontrada por Miss Lunatic na estação de metrô. Isso é comprovado pela cor da roupa que veste: vermelho. Esta cor tem forte relação com a menstruação da menina. Agora há um terceiro momento e é nesse que Sara se sente adulta, pois é capaz de tomar a decisão de fugir da casa de sua avô, tomar um táxi e ir ao encontro da missão posta por Miss Lunatic. Chegamos ao fim do romance que, para surpresa do leitor, fica em aberto. Cada um que busque saber o que realmente aconteceu com Sara Allen. Se a autora exigiu participação do leitor até o final do romance, não seria justamente nesse ponto que o deixaria passivo.
GAITE, Carmen Martin. Chapeuzinho em Manhattan. São Paulo: Martins Fontes, 2002.