O carteiro e o poeta: uma lição de vida nas linhas e nas telas
O carteiro e o poeta: uma lição de vida nas linhas e nas telas.
Escrever sobre o filme “O carteiro e o poeta” é estar frente a uma situação dificílima. Corre-se o risco de se deixar preciosidades de fora, mas como já disseram, os riscos são para se correr. Como não se encantar com um filme que é um encanto? O filme se derrama sob nossos olhos, floresce, desabrocha como uma rosa rubra em pleno amanhecer. (Desculpem o tom poético, é resultado do filme). Sem dúvida, não é difícil de perceber que o diretor faz uma leitura do livro de Antonio Skármeta: “O carteiro e o poeta”. A partir dessa, ele desenvolve um pouco mais a trama literária, mas também faz alguns cortes (em se falando da trama literária) que de nenhuma maneira afetam o desenrolar e o entendimento do filme. Temos a nitidez de que muitas cenas presentes no filme destoam do todo da narrativa literária, no entanto, tratando-se de duas formas de manifestação artística não é nada que possa ser visto como algo incomum, raro ou inusitado; tudo se faz de forma imprescindível, pelo simples fato de que seguir ao pé da letra uma narrativa (uma linguagem literária) pode ser danoso para a linguagem fílmica, visto que esta pode pecar pela questão de duração ou até se perder, o que deixará em evidência que o todo fílmico se mostra desconexo. Por esta questão podemos ver que não é nada simples transpor a linguagem expressa num meio para outro que se comunica de outra forma. Atentando para esse percalço, podemos extrair, levando em conta toda a dificuldade, a competência e o trabalho bem feito de um diretor que consegue dar a um filme o mesmo respaldo que teve o autor com o livro. O diretor se mostrou brilhante e o filme alcançou o sucesso que alcançou merecidamente.
O recorte que faço aborda principalmente a questão dos personagens, mais especificamente, as figuras centrais que dão nome ao filme: o carteiro e o poeta. Este é ninguém nada menos que Pablo Neruda, o poeta das mulheres e do povo – como tanto enfatiza o filme, ao passo que o outro vem a ser Mario Jiménez. Pablo Neruda é um personagem histórico, por isso temos que desprender uma grande atenção para esse fato. A partir disso, creio que a representação nas telas se mostre mais favorável, pois muitas vezes é mais fácil trabalhar com imagens do que construir estas através de palavras. Para reforçar esta idéia, a escolha do ator para representar Neruda contribuiu muito, se levarmos em conta a semelhança entre ambos, além da competência do ator, dois fatores que contribuíram para a boa aceitação do filme pelo público, principalmente o chileno, o qual demonstra certa devoção pelo poeta e este a retribui. Deixo claro que não pretendo levantar questões teóricas muito profundas sobre a construção de personagens, detendo-me apenas na classificação de personagem principal e secundário.
O que é mais do que certo é que Neruda e Mario travam uma relação muito intensa tanto no livro como no filme, mais intensa neste, é claro. No livro, Mario é quem aparece como protagonista principal, ao passo que Neruda assume o posto de personagem secundário. No filme, isso se inverte e fica bem clara esta inversão. Neste, parece ser Neruda a fonte de ligação entre o meio central da trama fílmica, mesmo nos momentos em que está distante, ora em terras chilenas, ora em francesas. O carteiro passa a ser uma figura um pouco apática, para não dizer patética. Corrobora para isso o nome que é dado ao filho de Beatriz e Mario. Este filho vem a se chamar Pablito, reforçando a presença viva de Neruda entre eles. Mesmo que deixemos esta questão de personagem secundário de lado, não podemos fugir do fato de que o que está em jogo, nas duas formas de representação: a questão da importância de um para o outro. Literariamente, Neruda é de grande importância para a vida do carteiro, mesmo quando este se vale de ações não tão lícitas - como roubar os versos feitos por Neruda para Matilde e dá-los, como sendo de sua autoria, para a bela Beatriz. Neruda traz ao carteiro uma nova vida, uma nova forma de vê-la também. Enche de poesia o que era cheio de marasmo, de tédio. Filmicamente, Neruda também é de grande importância para o carteiro, mas este não deixa por menos, dá a Neruda provas de que aprendeu a lição, é morto numa “batalha”, num protesto que buscava uma nova forma de ver o mundo e de se viver com mais igualdade e compaixão. Vemos no filme o choque que a morte do carteiro causa em Neruda quando este, já ao final do filme, numa espécie de monólogo interior, passa a imaginar e reviver o ocorrido, tentando reconstruir a morte de Mario. É justamente por esses fatos que vejo o filme como uma lição de vida. Que todos pudessem ter um Neruda em suas vidas, que todos pudessem ter um carteiro em suas vidas.
No livro, acredito que temos um Neruda mais apagado, apático. O carteiro aparece meio bobalhão. Este, no filme, não se apresenta muito distinto de sua ação no livro, pelo menos na parte da trama fílmica que nos é mostrada, visto que ao final temos a informação de que ele morre num protesto por melhoras de vida. Neruda é um personagem que se supera no filme. Tanto seu lado amoroso como seu lado político-social se mostram com mais veemência. Há uma cena em que Neruda fala com o carteiro sobre seu livro “Canto General”, expondo do que se trata e de como e porque veio a fazê-lo. Neruda se mostra compreensivo, atencioso com o carteiro, além de ser fortemente motivador. Como exemplo desta motivação, temos a cena do banho de mar, quando Neruda declama ao carteiro um poema sobre o mar, com todo o ritmo que este apresenta. Neste ponto a mise-en-scène faz-se muito importante, visto que ela se constrói unicamente através da figura do mar ao fundo e os dois personagens dialogando, porém a imagem se encaixa e exprime com toda a força e com toda concretude o que se mostra no diálogo. O movimento do mar se junta ao movimento do poema, fato que reforça o entendimento do carteiro sobre o que vem a ser poesia. Nesta cena, vemos aflorar um tom de afetividade que percorrerá todo o filme. Como fica claro no filme, é então que se tornam amigos e companheiros de luta política, este último fato sendo desconhecido por Neruda até seu regresso à Itália e a descoberta da triste e saudosista morte de Mario. Com sua morte, Mario deixa para Neruda o que de mais importante havia para ele na ilha, gravando as maravilhas existentes nela, além do choro de seu filho: afilhado do poeta. Esta ação desempenhada por Mario aparece no livro de outra forma: Neruda, estando na França, envia para Mario, lá no Chile, um gravador portátil, para que Mario grave as maravilhas de sua praia, de sua casa, pois já estava com muita saudade e também já lhe faltava a inspiração. Mario grava o que acha ser o mais importante e envia para Neruda. Voltando ao filme, a comoção apresentada por Neruda ao final deste demonstra o grau de afetividade que se criou entre poeta e carteiro, ambos com a função de levar uma mensagem a alguém, seja uma notícia boa ou nem um pouco agradável. Mario fazia todo o trajeto até a casa do poeta com toda uma vontade que era de causar comoção, víamos resplandecer alegria nos olhos deste quando chegava à casa do poeta com as correspondências, ponto em que o filme ganha do livro, pois expõe a imagem.
Mario, desde o começo do filme, tenta se valer do seu jogo de palavras, atitude que se tornará mais forte após o contato com Neruda. Numa das cenas iniciais do filme, vemos Mario num diálogo com seu pai. Esta cena é mostrada através de uma tomada longa da câmera, como acontece na maioria dos diálogos, fato que dá grandeza ao filme, além de reduzir gastos com movimentos da câmera e não precisar dar um requinte maior ao cenário. Um ponto forte desta escolha de tomada da câmera é o fato de que ela proporciona a chance de notarmos as feições de ambos os personagens, além de prestarmos mais a atenção no diálogo, visto que não há um movimento de cenário que nos desvie a atenção. Quanto ao cenário, nesta forma de tomada da câmera, por muitas vezes ele nos ajuda a termos uma idéia da situação daqueles personagens, por exemplo, neste filme sabemos que pai e filho são pescadores e, pela imagem que temos da casa, percebemos que são humildes, simples como todo pescador é. Esta cena que tanto enfatizo se mostra assim: enquanto o pai está a comer, Mario vai descarregando seu discurso vazio e nem um pouco convincente, chega a um ponto em que o pai de Mario não consegue digerir aquele palavreado sem fundamento e fecha o diálogo de forma triunfal, dizendo que Mario nunca gostou de trabalhar no mar. Mario então se cala, pois é o melhor que tem a fazer. Mais adiante, veremos que o mar tem uma grande importância para Mario, mas não a importância esperada por seu pai. Apenas poeticamente o mar virá a exprimir esta importância. Retomando as questões sobre Mario, quando este se encanta por Beatriz, percebe que não possui atitudes para conquistá-la, eis que recorre aos versos de Neruda. Estes versos apresentam tamanha intensidade que chegam a estabelecer uma mudança em Beatriz, esta passa a sentir algo mais “caliente” por Mario. A partir da aproximação deste para com Beatriz vemos se evocar novamente a figura de Neruda. Este será procurado pela tia de Beatriz para evitar problema futuros entre Mario e a própria. Neruda ajudará na aproximação de Mario e Beatriz e também evitará um possível afastamento entre os dois, ação que será pretendida pela tia de Beatriz. Para confirmarmos o jeito meio “abobalhado” de Mario, quem tomará a atitude de transformar o amor do carteiro em algo concreto será Beatriz.
Neruda é mostrado no filme apresentando um jeito totalmente carismático. Encanta por onde passa. Talvez tudo se deva aos seus versos, magníficos cartões de visita que circulam entre os personagens criando todo um clima de fascínio e emoção. Vemos que Neruda se mostra muito apegado ao povo, principalmente aos mais carentes, fato que se encaixa exatamente em sua vida real, visto que o livro “Canto general” foi fruto de passagens de Neruda por diversos países hispano-americanos e, principalmente, pelos povos que contornam as Cordilheiras dos Andes. Neste livro, Neruda dá voz a este povo explorado que sobrevive em meio às condições mais desumanas, de completa exploração, nas quais o ser humano deixa de sê-lo para virar apenas mão-de-obra escrava. Na questão amorosa, sabemos que Neruda não foi nenhum “santo”, contudo, segundo dados históricos, é sabido que Matilde Urrutia foi a mulher que ele mais amou. No filme, vemos este amor expressamente demonstrado, mantendo-se uma fidelidade à realidade histórica. Quanto à vida de Matilde e Neruda, há um ponto que podemos frisar: ambos sentem saudade de sua terra natal. Há uma cena, na casa de Neruda, em que Matilde põe para tocar uma música raiz de sua terra evocando em Neruda tanto uma saudade pelo Chile como o tão forte amor que sente por Matilde. Esta música se configura como um som diegético, já que faz parte do mundo imaginário do filme; é uma música que embala os próprios personagens. Já que tocamos neste assunto de som, o filme também apresenta um som não-diegético, como acontece com vários outros filmes. As músicas se encaixam com as paisagens um tanto quanto bucólicas e a poesia percorre todos os espaços. Tudo é muito vivo e muito colorido. Estas imagens podem ser compreendidas como uma forma de expressar a linguagem poética empregada no livro.
Como elementos fílmicos, acredito que o mar tem um papel imprescindível na montagem do filme. Por ser muito representativo, este elemento pode ser usado para exprimir vários sentidos. Quando Neruda volta para o Chile, na primeira cena que se segue aparece somente a figura do mar com seu movimento de ondas e seu tom de amplitude, dando uma idéia de partida. É o mar que muitas vezes inspira Neruda. É para o mar que Neruda pede para o carteiro ir olhando, quando vai pela beira da praia, para buscar inspiração para seus versos. O mar é vida, é poesia em fluxo. Além do fato de ter toda esta importância, o mar ainda permite um contado maior entre carteiro e poeta, é um elemento de ligação muito bem pensado pela equipe técnica do filme.
É muito bom ver que o filme seguiu uma certa verossimilhança com a realidade de vida de Neruda, pois isso possibilitou a muitos que não conhecem sua obra virem a se interessar, além disso, o filme contribuiu para a divulgação deste grande poeta que tanto encantou e continua encantando através de sua obra imortal. O ator que interpretou o carteiro, sem sombra de dúvidas, merece toda a consideração. Após ler o livro de Skármeta, se encantou com a figura do carteiro e se sentiu inspirado a levá-lo para as telas. Pouco tempo depois do lançamento do filme, o ator veio a falecer, peças que a vida nos prega. Sem dúvida, o ator deixou a sua marca por esse e por outros tantos filmes, porém a atitude que ele teve quando decidiu protagonizar este filme deve ser aplaudida, além do mais, este ator era um ator de comédias, cômico então.
Quem ainda não assistiu “O carteiro e o poeta”, esta aí o convite, ou melhor, está aí a intimação. Como já disse, este filme é uma lição de vida, e acredito que falta um pouco desta vida na vida de cada um. Um bom filme para vocês.