Amorim, Anaximandro. Discurso de Boas-vindas à Academia Espírito-santense de Letras a Fabio Daflon

DISCURSO DE BOAS-VINDAS AO ACADÊMICO FÁBIO SANTOS DAFLON GOMES, À ACADEMIA ESPÍRITO-SANTENSE DE LETRAS, NO DIA 24 DE AGOSTO DE 2023, NO AUDITÓRIO DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO ESPÍRITO SANTO

Anaximandro Oliveira Santos Amorim

Em algum lugar daqueles agitados anos 1960, o garoto se escondia no porão do casarão colonial de seus pais, no Rocha, Rio de Janeiro, para criar seu próprio mundo, feito de livros, fotos de beldades como Brigitte Bardot, Gina Lolobrigida ou Sophia Loren, e poesia. Filho de um professor universitário de química e ex-combatente e de uma servidora dos Correios, o segundo, de sete crianças, sonhava e vivia entre livros. Do mundo mágico de Monteiro Lobato às narrativas do Decamerão, de Bocaccio, várias foram as obras que forjaram o imaginário de um menino que só foi para a Medicina por um detalhe. Seu nome: Fabio Santos Daflon Gomes, carioca, nascido em 09 de fevereiro de 1954, no Hospital dos Servidores, Praça Mauá.

Ainda que eu detenha uma formação em Direito e outra em Letras, confesso sempre ter nutrido interesse e admiração por “médicos-escritores”! Minha curiosidade se pauta na seguinte premissa: pode alguém fazer ciência e, ao mesmo tempo, poesia? A História da Literatura nos nutre de fartos exemplos: Sir Arthur Conan Doyle; Anton Tchékov; Moacyr Scliar; Guimarães Rosa; Pedro Nava... O poeta e filósofo alemão Schiller dizia que, quanto mais estudava Medicina, mais compreendia o Humano. Aquele jovem Fábio, demasiadamente humano e internado após uma laparotomia, consequência de um treino intenso de futebol, conviveu, desde a tenra idade, com o ambiente hospitalar. Assim, após quinze dias de internação e muitos filmes do Dr. Ben Case, nasce o futuro médico, tomado pelo desejo de uma percepção antecipatória do outro.

Como em uma boa narrativa literária, a biografia de Fabio Daflon cruza estes três elementos: Medicina, artes e o amor e respeito pelo feminino. Fabio estuda Ciências Médicas na UERJ, vindo, mais tarde, a tornar-se pediatra, que surge da possibilidade de trabalhar e divertir-se, aplicando os conhecimentos clínicos e psicossomáticos em prol do desenvolvimento de pequenos pacientes, além da sua ligação do feminino, aqui, consubstanciado na beleza da maternidade. Na faculdade, Daflon participou do “Musiceme”, do Departamento de Música do Centro de Medicina, relacionado ao MAU (Movimento Artístico Universitário). Também frequentou a casa do Dr. Aloísio Porto Carreiro, local frequentado por artistas do calibre de Luiz Gonzaga Júnior, Aldyr Blanc, Ivan Lins e até mesmo o Donga!

O período de vida médica de Fabio Daflon vai, oficialmente, de 1978 a 2005, com muitos êxitos: em 1982, Daflon torna-se, mediante concurso, médico da Marinha, continuando, porém, segundo ele próprio me disse, “o mesmo”. Trabalha no Hospital Nossa Senhora da Glória, no Ministério da Saúde, com saúde indígena; casa-se no Rio, onde nasce a filha Verônica, socióloga; casa-se de novo, na Bahia, onde nasce a sua filha Vivien, publicitária; e, em 2005, dá com os costados nesta terra boa do Espírito Santo, acompanhando cônjuge e terminando um périplo que o fez autointitular-se “carioxabaiano”.

O Fabio médico nasce cedo. O poeta, nem tanto. Foi em 1981 que o “doutor” vira “autor”, com uma obra de nome tão curioso quanto instigante: “Título provisório”. Livro corajoso, que radiografa as transformações da faculdade de Ciências Médicas da UERJ desde uma greve, nos anos 1950, cujo teor é resultado de uma pesquisa nos campos de Ciências Políticas e Jornalismo, tendo recebido o prêmio Nelson Xavier da UBE-Rio, em 2017, quando de sua segunda edição. Entretanto, foi só em 2008, em uma especialização em Literatura na Ufes, que o autor, antes, um ávido leitor de prosa, encanta-se pela métrica, após contato com o Prof. Dr. Wilberth Salgueiro, o Bith.

O poeta nasce pelo soneto. Mais tarde, abraça, também, os versos livres e brancos. A demora compensou: Fabio é escritor prolífico, tendo levado a lume dez livros de sua exclusiva autoria, quais sejam:

1. “Título provisório”;

2. “Mar ignóbil”;

3. “Vagalume-farol”;

4. “Mar sumidouro”;

5. “Sovacos”;

6. “Um sol para Valentine”;

7. “Mar raso”;

8. “A poesia de Marly de Oliveira: o limite é o cosmos”;

9. “Canto gordo”;

10. “Jeca Tatuado”.

Daflon também é um resenhista de mão cheia, com apurada e sensível percepção, tendo publicado trabalhos em diversas revistas especializadas; o autor também tem alguns títulos em parceria com o irmão, Alberto Daflon Filho, o que comprova que o compromisso com as Letras vem de família.

Seria impossível apresentar uma obra tão completa e complexa por inteiro, neste espaço. Daflon escreve em prosa; verso (sua maior produção); memória; resenha; novela; artigos... Optei por um recorte que privilegia a poesia, levando em consideração, basicamente, duas grandes frentes de sua lavra: o humor e o amor.

Sobre o humor, entendo que o autor retoma uma tradição pouco praticada no âmbito da literatura brasileira produzida do Espírito Santo, mas que já teve grandes adeptos. Fabio Daflon inova, também! Confesso não ser um grande conhecedor do humor nas Letras do nosso rincão, mas sei do trabalho de um Madeira de Freitas, ou, melhor dizendo, Mendes Fradique, na prosa, como em um “Dr. Voronoff”; ou de Paulo Vellozo, Jayme Santos Neves, Guilherme Santos Neves, como no recolho “Cantáridas e outros poemas fesceninos”, na poesia. Fabio, ao escrever seu humor, entretanto, possui estilo próprio, lançando mão de uma mitologia própria, em que desfilam personagens como “Jeca Tatuado”, “Xandra Brega”, “Carla Patinete”, “Urso de Prepúcio”, “Stanislaw Bowner” (uma espécie de alter ego do autor) e tantos outros, frutos do chiste e da paródia, recursos usados com excelência pelo autor:

SOU JECA TATUADO, AMO UMA CACHAÇA ,

bebo e ainda fumo cigarro de palha,

tatu subiu no pau, digo não é mentira,

mantenho uns costumes, não só de pirraça,

às vezes fico bravo se o isqueiro falha,

corto tripa de porco e estiro em tira,

sou bastante capiau, essa é a minha graça,

cigarro acendendo em brasa, sem fogo de palha,

odeio gente falsa, que conta mentira,

quem quiser me encarar venha para a praça,

possuo muita força, mas não me atrapalha,

somente o amor ao chão o corpo me estira,

tenho minhas leituras, embora sem jaça,

escrevo uns rabiscos, isso nunca falha.

Este soneto, em dodecassílabo, mostra, do ponto de vista formal, certo rompimento com a tradição, usando, nos primeiros quartetos, rimas A, B, C, A, porém, dentro de um esquema de rimas soantes e toantes, com finais em “-aça” ou “-alha”, além de “-ira”, em um jogo fônico que traz, nos dois tercetos, rimas A, B, C, usando dos mesmos jogos fônicos das rimas anteriores.

Quanto ao conteúdo, trata-se de um poema que apresenta o principal personagem do livro homônimo, o “Jeca Tatuado”. É evidente a menção à história do “Jeca Tatu”, comum no imaginário brasileiro e imortalizado na pena de Lobato. Com humor refinado, Fabio, como um arauto do seu tempo, traz, como uma das possíveis chaves de leitura, um poema que brinca com a cultura dos cowboys ou agroboys e sua mítica consubstanciada nos “sertanejos universitários”, na cultura das botas e chapéus e, claro, nos corpos tatuados dos jovens contemporâneos, o que mostra uma nova “cultura do interior”, sincrética, com elementos urbanos e, desta feita, criticada por aqueles que defendem um ruralismo mais “autêntico”, mais tradicional.

Fabio Daflon manuseia sua pena com a maestria de mudar do humor ao amor, este, ouso dizer, tema tão universal à poesia. Há, neste contemporâneo, um certo receio quanto ao assunto. Em tempos de engajamento político, muitas vezes, necessário, ou de questões existenciais advindas deste mundo “fragmentado”, segundo o vaticínio de um Agamben, falar de amor sem usar clichês ou pieguices é papel dos bons poetas. Fabio, em seu poema “Mar ignóbil”, nos dá um exemplo dessa lavra:

Mar ignóbil

O mar ignoto e ignóbil

invadiu as planícies e curvas

que bordam teus seios,

os efluentes dos terminais,

o óleo dos barcos e navios

não eram apenas do viajor,

nem do improvável porto

bafejado por brumas frias

ou hálito quente do verão;

mas impurezas são bem vindas,

amor não é depuração d’água

das ondas espumantes da saliva.

Neste poema, temos quatro tercetos, em versos livres, alguns hepta e outros decassílabos. O texto alterna versos brancos e rimas toantes, como as em “seios” e “navios”; “frias”, “vindas” e “saliva”, conferindo uma musicalidade que muito lembra o marulho das águas. De fato, o campo semântico traz alusões como “mar”; “efluentes”; “barcos e navios”; “porto”; “ondas espumantes”, com imagens bastante encontradiças na obra do poeta, o que fez com que a escritora, amiga e confreira Bernadette Lyra alcunhasse o autor de “o poeta do mar”.

Quanto ao conteúdo, há um erotismo elegante, na refinada construção do poema, que trabalha, nas imagens náuticas, uma relação de amor heterossexual, em dois momentos: o primeiro, nos três tercetos, com o desenrolar da relação; e o último, após a adversativa “mas”, com o gozo, consubstanciado nas “impurezas bem-vindas” ou nas “ondas espumantes”, também trazem alusão ao prazer, na imagem da “saliva”, a boca como uma imagem erótica, aqui, do Eros propriamente dito, ou seja, do amor, palavra que também consta do poema. Amor, aqui, como amour ou la mort, ou o gozo, como la petite morte, no que o poeta explora os opostos: homem/ mulher; vida/ morte.

Como autor de quilate, Fabio Daflon cria sua própria cosmogonia pessoal, que leva em consideração a filiação à tradição judaico-cristã e ao racionalismo grego, isto é, crê na ética cristã e na percepção do trágico, algo nem sempre ao alcance das religiões, dentro do que existe em seu ponto de vista simbólico. Esta cosmogonia é inspirada em Emilio Mira y López, um cubano-espanhol que lutou contra o fascismo e cunhou os “quatro gigantes da alma”: 1) o amor; 2) o medo; 3) a ira; e 4) o dever. A estes, Daflon adiciona: 5) o desejo; 6) o humor; 7) a dor; e 8) o pensamento. Todo esses gigantes dão a tônica de sua obra, como, por exemplo, o humor em “Jeca Tatuado” e o amor em “Mar sumidouro”, tal como mostrei, acima.

Eu disse, anteriormente, que médicos escritores sempre chamaram minha atenção por se dividirem entre ciência e arte. Obtive minha resposta no dia 17 de outubro de 2013, no auditório da Aliança Francesa de Vitória, quando da entrada do poeta e confrade Jorge Elias Neto , também médico, este, falou:

É possível trabalhar e sonhar. É possível a convivência do cientista com o poeta. Pois a poesia começa assim: Emprenhar-se de miudezas;/ deixado as mãos rendidas aos gestos costumeiros. / E quando a luz se aperceber, desmembrada / pelo estalo da palavra, / jogar-se nos trilhos / para salvar a flor.

Na história da nossa centenária Academia, Fabio Daflon é o 12º médico a ter ingresso na casa, sendo precedido por, em ordem alfabética:

1. Archimimo Martins de Mattos

2. Ciro Vieira da Cunha

3. Cristiano Ferreira Fraga

4. Douglas Puppim

5. Elviro Athayde de Freitas

6. Jayme Santos Neves

7. Jorge Elias Neto

8. José Madeira de Freitas (o “Mendes Fradique”)

9. José Moysés

10. Marcos André Malta Dantas

11. Waldemar Washington de Oliveira

Além disso, Fabio é titular da cadeira 16, da Abrames, Academia Brasileira de Médicos Escritores, cujo patrono é o Dr. Hilário Soares Gouvêa, sanitarista autodidata, organizador do “1º Congresso Nacional do Combate à Tuberculose”. O escritor também detém a cadeira 36, da ALVV, Academia de Letras de Vila Velha, cujo patrono é Jair Amorim, radialista, compositor e radialista. Aqui, uma dupla coincidência: seja por eu também ter assento naquele Silogeu, seja porque tenho parentesco com Amorim, o que faz com que Fabio e eu nos chamemos pela carinhosa alcunha de “primos”.

Dirijo-me, então, neste momento da minha fala, a este primo querido que a Literatura me honrou ter: Fabio, sua entrada nesta casa centenária, na cadeira 37, sucedendo o saudoso acadêmico e amigo José Carlos Monjardim Cavalcante, o nosso sempre “Cacau”, coroa a tradição de termos, em nossos quadros, autores de escol, comprometidos com as Letras. Meu afã, como recipiendário, é não apenas dar as boas-vindas, a um novo companheiro. Nesta Sessão Solene, a Academia Espírito-santense de Letras, em festa, recebe você, para que andemos de braços dados pela tão simbólica imortalidade, às vezes, fardo, muitas vezes, delícia, sempre, compromisso. Seu talento e obra são prova suficiente de que você, primo, está preparado para esta missão. Assim, como o arauto desta casa centenária, nesta noite, eu lhe digo: “Bem-vindo à Academia Espírito-santense de Letras, Fabio Daflon”!

Obrigado.

Anaximandro Amorim
Enviado por Fabio Daflon em 09/09/2023
Código do texto: T7881561
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