As Dores que Não Sentimos
Charlles Nunes


Há alguns anos, saí do dentista com a boca anestesiada. Ele me avisou pra não comer carne, porque eu não iria distinguir onde terminava a carne e começava minha bochecha.


Fui pensativo pelo caminho. Chegando, foi batata: minha esposa tinha feito bife.


“Como o efeito já está passando mesmo, não vai ter problema”, pensei.


Cortei o bife, enfiei na boca e comecei a mastigar. Devagar. Ele estava bem passado. Peguei mais um pedaço. E outro. Mastiguei mais rápido. De repente, senti um gosto de sangue. Corri pro espelho e conferi: o dentista estava certo.


Imagine como seria passar a vida sem dor. A princípio, parece um sonho - já que a dor incomoda tanto. Uma anestesia aqui, um analgésico ali, esses recursos trazem grande alívio.


Por outro lado, a dor é um alerta para nossa autopreservação. Ela permite que nossa mente identifique no corpo um problema a ser resolvido.


Existe uma doença chamada Insensibilidade Congênita. Quem nasce com ela, não sente dor. Por isso, vive se machucando. Pode enfiar o dedo no olho, botar a mão na água fervendo, morder a própria língua – sem perceber o estrago.


Algumas dessas pessoas nem chegam à vida adulta, porque não controlam algumas ações e se expõe ao risco excessivo.


Além das dores físicas, enfrentamos outras dores na vida: A dor da rejeição. A dor da incompreensão. A dor da perda.


Cada uma tem seu propósito - e pode nos ajudar a compreender melhor o sofrimento alheio.


O Salvador Jesus Cristo é descrito por Isaías como um homem de dores, e experimentado nos sofrimentos; um homem desprezado pelos outros.


Dentre os principais traços de Seu caráter, está a capacidade de perceber a necessidade do próximo mesmo quando Ele mesmo estava sofrendo. Essa sensibilidade custou a Ele um alto preço.  Alma, um profeta antigo das Américas, disse:


E ele seguirá (em frente), sofrendo dores e aflições e tentações de toda espécie; e isto para que se cumpra a palavra que diz que ele tomará sobre si as dores e as enfermidades de seu povo.


E tomará sobre si a morte, para soltar as ligaduras da morte que prendem o seu povo; e tomará sobre si as suas enfermidades, para que se lhe encham de misericórdia as entranhas, segundo a carne, para que saiba, segundo a carne, como socorrer seu povo, de acordo com suas enfermidades.

 

Jesus Cristo aceitou morrer e ressuscitar, pra libertar toda a humanidade da morte física. E durante a vida, aceitou tomar sobre si as enfermidades humanas, pra que suas entranhas se enchessem de misericórdia  e Ele soubesse como nos socorrer.


Conforme ensinou o Élder Bednar:


"O caráter se revela, por exemplo, na capacidade de enxergar o sofrimento de outras pessoas quando nós mesmos estamos sofrendo, na habilidade de detectar a fome alheia quando nós mesmos estamos famintos e no poder de estender a mão ao próximo e sentir compaixão por sua agonia espiritual quando nós mesmos estamos espiritualmente angustiados.

 

Assim, demonstramos caráter quando olhamos para além de nós e nos voltamos para o próximo, quando a reação natural e instintiva seria pensarmos só em nós mesmos. Se a capacidade de agir assim for de fato o maior critério indicador de caráter moral, o Salvador do mundo é o exemplo perfeito desse caráter sólido e invariavelmente caridoso."


Logo após sair do Jardim do Getsêmani, ele restaurou a orelha de um guarda. Sofrendo a dor angustiante da cruz, ele se voltou a João e recomendou-lhe que cuidasse de Maria.


Como Ele poderia orar pelo bem-estar de outras pessoas momentos antes de passar pela Sua própria angústia? O que O tornou capaz de buscar paz e consolo para aqueles cujas necessidades eram muito menores do que as Dele?


A resposta é: o caráter que Ele desenvolveu.


Como seguidores de Cristo, Ele nos convida a seguirmos Seu exemplo. Conforme ensinou o Élder Holland, comentando sobre o convite de sermos ministradores:


"Temos uma oportunidade enviada pelo céu de demonstrarmos a religião pura diante de Deus — de carregar os fardos uns dos outros para que se tornem leves, de consolar aqueles que precisam de consolo, de ministrarmos às viúvas e aos órfãos, aos casados e aos solteiros, aos fortes e aos desamparados, aos oprimidos e aos poderosos, aos felizes e aos entristecidos — resumindo, todos nós, cada um de nós, porque todos nós precisamos sentir a mão calorosa da amizade e ouvir uma firme declaração de fé."


Podemos estender a mão calorosa da amizade ao darmos um aperto de mão. Podemos dar um abraço, ou simplesmente permanecermos em silêncio ao lado de alguém num momento de sofrimento.

 

Podemos fazer uma firme declaração de fé pode ser pronunciar qualquer palavra - apenas suportando com paciência e seguindo em frente, a despeito das lambadas que a vida nos dá.


Eu senti de perto a mão da amizade quando tinha apenas 12 anos. Meu pai havia falecido, deixando minha mãe viúva aos 32 anos, com três filhos pequenos. Me lembro como se fosse hoje da vaquinha que os amigos da nossa família fizeram pra comprar o caixão. Nunca me esquecerei desses atos de amor e bondade que fizeram em nosso favor.


Minha mãe também deixou um legado de fé e preocupação com o próximo.


Em suas últimas semanas de vida, fomos a uma feira de negócios em Volta Redonda-RJ. Como ela ainda trazia sequelas de um atropelamento, subimos bem devagar uma rampa bem longa, rumo ao segundo andar do supermercado.


Lá chegando, ela conferiu uma máquina de fazer chinelos. Depois, uma máquina de fazer picolés. Por último, se encantou por uma máquina de fazer banquinhos de madeira. Virou pra mim e perguntou:


“Se eu fizer os banquinhos, você vende na beira-rio?”


Eu respondi que sim.


Mesmo no fim da vida, ela estava pensando em mim. Em como me ajudar a ser mais autossuficiente.


Tal avó, tal neta. Dois dias antes de falecer, nossa filha mais nova – a Poliana – que tinha nove anos e meio, me ensinou uma das maiores lições que já vi na vida:


Em outubro de 2010, estávamos chegando no quarto hospital, num período de poucos meses. Assim que a instalamos numa maca, eu saí para procurar um apartamento para alugar. Nos disseram que era melhor ficar ali por perto. Andei cerca de duas quadras e encontrei um carrinho de churros. Como a Poli adorava churros, decidi comprar dois e voltar ao hospital.


Como eu sabia que ela estava sem comer há muitas horas, imaginei que ela iria adorar comer os churros.


Entrei apressado no hospital. Um menino de três ou quatro anos percebeu o pacote na minha mãe e perguntou o que era. Eu respondi: “Uma surpresa!”


Falei pra ele esperar, e fui conversar com a Poli. O médico do menino chegou na hora, e ele ficou doido, com medo de perder a ‘surpresa’. Voltei lá, virei o saquinho dos churros até cair um pra ele. O menino estava vidrado. Pegou o churro, agarrou a mãe do pai e foi pra consulta - contente da vida.


Voltei pra enfermaria, entreguei o churro da Poli. Ela se sentou e começou a saborear, devagarinho. Terminou de comer, agradeceu e se deitou de novo. Contei sobre o garotinho. Ela ouviu de olhos fechados. Quando terminei, ela abriu os olhos e perguntou:


-- Ele ficou feliz?


Respondi que sim, admirado por sua capacidade de pensar no bem-estar do próximo em
condições tão adversas.


-- Ele vai ficar internado aqui também?


Respondi que não sabia, pois havia conversado pouco tempo com o pai do menino. Ela abriu bastante os olhos, como se fosse fazer uma pergunta muito importante, e continuou:


-- O pai dele ficou feliz?


Fiz que sim com a cabeça e, como não conseguia articular palavra, fiquei quieto, enquanto passava a mão devagarinho nos cabelos dela. Isso foi numa quinta-feira à noitinha. Ela partiu dessa vida no sábado de manhã.

 

Irmãos e Irmãs, se uma criança de nove anos, levando agulhada a torto e a direito, fragilizada, consegue se concentrar o suficiente na felicidade alheia e perguntar se duas pessoas ficaram felizes com um simples churro – que era pra ela, inclusive...

 

Isso deve ser o suficiente para nos ensinar algo e restaurar nossa esperança no ser humano.


Que a lembrança do caráter de Cristo – e do caráter de tantas pessoas que nos rodeiam – possam nos servir de exemplo nessa jornada. Que possamos ministrar, confortar e diminuir a dor alheia de todas as formas que pudermos em nossa pequena área de influência, é minha sincera oração.


Em nome de Jesus Cristo. Amém.


Angra dos Reis – RJ, 04.02.2019

Charlles Nunes
Enviado por Charlles Nunes em 24/04/2023
Reeditado em 24/04/2023
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