Meu dia de Esquizofrenia

Quando conhecemos nossas intimidades em pormenores, suportar o esquizofrênico fardo da vida, não é tão difícil; ao contrário, é leve feito algodão. Tanto é verdade, que tendo-o sob domínio da mente, pode-se fazer um travesseiro dele, para deitar a solidez dos pensamentos!

- que dia é hoje? Em frente ao espelho, pergunto para o meu subconsciente.

- 21. Minha mente responde.

- 21 de quê mês e ano?

- se não trabalha, não produz nada, por que quer saber a data precisa?

- se Eu não faço nada, muito menos você! Chega de ataque. Vai dizer ou não? Será que também estás no dia dEla?

- Dela, quem?

- bobagem. Falei sem querer. Diga a data?

- 21 de março de 2021.

- Sabia, conforme planejado, hoje é o dia de minha esquizofrênia; e estou 5 horas atrasado! Tchau, nos falamos depois.

Espreito-o. Só olhar não basta, tenho que tocá-lo. Está fumado; desgastado pelo fogo. Acendo-o. A primeira espiral de fumaça impõe-me a abrir a janela. Obedeço o imposto, aliás sobrevivo às imposições; resisto bravamente as humilhações, não dos homens, porque a dos homens nada me importa, mas as imposições e humilhações do tempo.

Hora de comer; tomar de banho; hora de fazer compra; hora de acender a bituca de cigarro; de passar o perfume; hora de pagar as contas, hora de trabalhar; hora de nascer; hora de mendigar o voto; hora de fazer sexo. Hora disso, hora daquilo. O Tempo é ditador, manda e desmanda, menos em mim!

Não sou cachorro que corre atrás do rabo, mas feito pião doido, dou outro rodopio no quarto. Meu criado-mudo está em seu canto, logicamente sabendo de tudo, sem nada dizer. Prefiro assim: nem tudo pode ser revelado. Pego na mão a ampulheta. A areia já não não sobe nem desce. Imagino-me um marujo em alto-mar. Manche, procela, deriva, esquizofrenia.

Praticam obem e o mal da seguinte maneira: quem é do bem, age com paciência, procura entender, compreende; quem é do mal, ignora, desfaz, é indiferente ao sofrimento alheio. Não deveria, mas são leis impostas pelos terrenos. E o pior: vivem "bem" assim...; humanos, vão pentear macacos. Sejam um pouco úteis!

Dou outra tragada. Agora quem rodopia é a nicotina embaralhando meus neurônios. Resisto, mas não sei até quando. Insisto. Seria Eu um homem constituído de aço? Oxidado ou inox? Perguntas demais para um marujo tão simples. Desanuvio os pensamentos. Ficar 30 segundos sem pensar é o objetivo. Planejamento e metas devem ser cumpridas. Cumpridas ou curtas?

Talvez até tenho conseguido tal façanha; mas como medir o tempo, se a areia da ampulheta se rebelou...; boto o vinil na vitrola. Está todo arranhado. De minuto em minuto tenho que dar um peteleco na agulha. Da primeira música, pula para terceira. Da terceira, dá um salto. Finaliza um lado. Enojado pela falta de respeito do velho objeto sonoro, desisto de colocar o outro lado do disco pra rodar.

Dentro de um vestido ajustado ao corpo, Dolomita é tão vistosa, versátil, chamativa e eclética, que tem seu lado mito Eclesiastes. Em referência ao livro de Eclesiastes, o novelista americano Thomas Wolfe disse: "De tudo o que vi ou aprendi, aquele livro parece-me ser o mais nobre, o mais sábio e a mais poderosa expressão da vida do homem sobre a terra — e também a maior das flores da poesia, eloquência e verdade. Não costumo realizar julgamentos dogmáticos em criação literária, mas se tivesse que realizar um, eu diria que Eclesiastes é a maior obra singular de literatura que eu conheci e a sabedoria expressada nele é a mais duradoura e profunda".

A beleza é universal, está em toda parte, é itinerante; mas a simplicidade e humildade reside, tem endereço fixo na estranheza. Honestamente, a simplicidade e humildade são virtudes esquisitas; e esquisito, ninguém quer ser: preferem contemplar o belo.

Deito a cabeça no braço do sofá e preparo para contar quanto tempo consigo ficar sem pensar; mas antes, apago o toco de cigarro: precisarei dele para apagar a minha esquizofrenia, amanhã.

Eu, Tu, Ele, Nós todos temos um coração que pulsa sangue, no entanto, tem espaço para um pouco de bondade; e se apertar mais um pouco, abre espaço para um pouco de solidariedade. E de pouco em pouco...! Ainda acredito que a humanidade dará certo.

Sem dominá-los, pois é impossível parar os pensamentos, expurgo a ansiedade da mente e deixo o tempo passar. Passar, até que o último suspiro me venha.

Por sorte, a ampulheta parou; consequentemente, ainda não fui descoberto pelo Tempo. Esquizofrenia, ainda respiro-a. Por quanto tempo mais, ela me acompanhará? A próxima data, é nesse mesmo dia e mês do próximo ano bissexto.

Afixarei os dados na porta da geladeira; e no dia, espero não repetir o atraso. Não permito-me a indisciplina. O relaxamento e o mau vício.

Bem, ainda faltam 19h para o fim deste dia comemorativo, mas despeço de todos e nos vemos lá. Putz, desculpe-me por não ter feito um bolinho para comemorarmos. Também, virtualmente não conta; pois gosto mesmo, deleito-me com abraços, muitos calorosos abraços, coração a coração. Como não sabeis, vou te contar: sou esquizofrênico à moda antiga.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 21/03/2021
Reeditado em 21/03/2021
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