O juiz e o cantador

Há instantes em que é possível flagrar a centelha divina que nos habita a alma. Assim como há momentos em que a beleza pura e simples de certos gestos é mais forte e suplanta qualquer ato humano de maldade e mesquinhez.

Há algum tempo, em Belo Horizonte, fui testemunha de um desses instantes capazes de manter acesa a chama da esperança no futuro que se constrói a partir do agora. Depois de ter conhecido pessoalmente uma daquelas figuras realmente especiais – apresentada a mim por alguém especialíssimo em minha vida, pude tê-la ainda mais em conta.

Estou falando de Augusto José Vieira Neto (o Bala Doce ou simplesmente Bala para os amigos) – um juiz aposentado que, aos 60 e poucos anos, consegue passar mais vitalidade e juventude do que a maioria dos trintões da minha geração. Se a sua história é uma fonte riquíssima de memórias pessoais e coletivas (vide “Balorizonte”, um de seus livros já lançados), mais até é a sua crença nos valores nobres que deveriam nortear a humanidade.

Foi numa livraria-café da Savassi que a generosidade e grandeza “balaneanas” saltaram-me aos olhos, mais do que já haviam se revelado nos seus textos ou nas referências da sua amiga de Viçosa (não por acaso, a minha esposa Luciana). Havíamos acabado de chegar do apartamento do cantor e compositor mineiro Tadeu Franco (grande amigo do Bala e um artista de longa e belíssima estrada), um outro exemplo de alma grande e límpida.

Compartilhávamos as conversas poéticas que normalmente surgem numa mesa de bar quando, de repente, nosso amigo viu numa outra mesa um homem com um violão, a quem cumprimentou com um aceno. A nós ele explicou que se tratava de uma pessoa extremamente humilde saída de Bocaiuva, no Norte de Minas, que uns três anos antes havia chegado a Belo Horizonte praticamente só com a roupa do corpo e com o sonho de ganhar a vida como músico.

Não demorou muito para o ex-juiz, apaixonado por arte, convidá-lo para a nossa mesa. Assim, pudemos eu e Luciana conhecer uma outra figura ímpar: Genecy Santana, cantador de sua obra e da obra alheia, que sobrevive na capital mineira das gorjetas que recebe dos que param para ouvir seu violão. E, por falar nisso, o instrumento que carregava tinha sido fruto da generosidade de Augusto Bala e de um grupo de amigos, que fizeram uma providencial “vaquinha” para dotá-lo de uma “ferramenta de trabalho” à altura da sua labuta.

Num autêntico gesto de anfitrião, não demorou muito para que Bala nos convencesse a deixar o bar em direção ao seu apartamento. “Lugar de receber os amigos é em casa”, argumentou. Assim fomos, acompanhados de Genecy e seu violão, requisitado para fazer uma serenata em homenagem a sua esposa Célia.

No aconchego de sua casa vimos uma pequena festa ser montada em questão de minutos; sua história ser colocada à mesa como cartas abertas repletas de ensinamentos. Um juiz que enfrentou poderosos pelas cidades onde atuou por pura ideologia e crença na Justiça que emana do povo para o povo; um homem que abraçou a música, a literatura e os amigos por encontrar nesta escolha um caminho mais próximo de Deus.

Ali na sala do seu apartamento, localizado no charmoso bairro Gutierrez, assisti ao instante de que mencionei no início: Bala ao piano e Genecy ao violão; o juiz e o cantador numa só melodia (já não dava para saber quem era quem). Com lágrimas nos olhos, pude sentir o quanto a música feita pelos dois seria capaz de derrubar todas as fronteiras que separam juízes e cantadores, ricos e pobres, poderosos e humildes. A grandeza de um homem se traduz na intensidade de luz do seu espírito. Bala (apelido que trouxe da sua infância em Montes Claros) venceu as armadilhas do poder, cultivando a doçura das coisas do coração.

Roberto Darte
Enviado por Roberto Darte em 19/05/2008
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