De baixo para cabeça

Ainda enrolada na toalha penteia os cabelos embaraçados. Senta na cama, respira, absorve o frescor da noite e o agradecimento dos pés ao descanso do salto. A saia e a camisa, suadas, vão direto para o cesto lotado. Depois de tanto ouvir o cachorro chorar na porta, ao invés de chutá-lo, acaricia-o, com o pé, mas com bastante carinho. Afinal, tudo a partir de agora serão sonhos.

Seca os cabelos molhados pela água que já ia descendo pelo ralo, levando todas as imundices que o dia exaustivo trouxe. A hora do banho, hora de relaxar, hora de deixar tudo ir embora, de se acalmar, de molhar a cara na última ducha de água fria. Enquanto o sabonete ia deslizando pelas linhas bem marcadas do corpo, os pensamentos iam se dissolvendo nas carregadas linhas rotineiras, sujas, pesadas, sebosas.

Pega uma toalha nova para pendurar no secador elétrico e assim sentir, junto à umidade, seu cheiro de amaciante de boa marca. Ela não está tão macia, mas o que importa é o cheiro que fica. Ninguém consegue saber, no mercado, se o amaciante amacia ou não amacia. Compram, apenas, por causa do aroma floral ou silvestre. Depois de molhada, oras, toda toalha fica macia.

Entra no cômodo, mas não precisa trancar a porta, o corredor é longo e está vazio. De que adianta tanta carga se os privilégios são poucos? Se o reconhecimento é pequeno, se a resposta é curta? Porém, o dinheiro deu, sem problemas, para comer um salgado com guaraná no quiosque. Não precisava de mais nada, se satisfazia com aquilo. Dormiria bem cedo... para descansar do estresse, claro. Sabia que tinha que cortar os doces.

Liga para o namorado enquanto anda, o problema não tinha se dissipado totalmente. Com desdém, como sempre, ele finge que nada aconteceu. Ela quer desligar o telefone logo, isso já teria acontecido algumas muitas vezes durante os últimos dois meses, mas tinha que preservar a relação. Combina um almoço no Mc Donald’s durante a semana e, quem sabe sexta, um filminho com pipoca? Só não leve o MM’s pacotão econômico que sempre compra nas Lojas Americanas daí da rua. Estou fazendo dieta mais por você do que por mim.

Tem que dar uma passada rápida na casa daquela Suzana, para entregar o projeto à avaliação. O chefe vai me matar se eu não conseguir dessa vez. A Suzana já tinha conversado com ela sobre, mas não pareceu passar muita confiança. O projeto vai para uma empresa grande, e assim, vai conseguir um aumento no salário, quem sabe até um cargo melhor. Tem que ir para a empresa. Mas, agora, está muito cansada, vai passar lá amanhã de manhã, precisa dormir logo e comer mais alguma coisa, a barriga ronca.

Olha para o relógio esperando dar a hora, mas acaba indo embora quinze minutinhos antes mesmo. Todos fazem isso, o horário nunca é cumprido fielmente. Herácio, ontem de manhã, chegou meia hora mais tarde e o patrão nem reclamou. Nem viu, estava conversando com aquela tal de Suzana, na sala de reuniões. Tomou um cafezinho e finalizou a conclusão do projeto, queria realmente sair daquele lugar abafado. Está tão frio, esses ares condicionados que colocam hoje em dia, só falta nevar aqui dentro. Esfria até o cafezinho.

Aquela garota nova do trabalho invejou tanto minha blusa que até soltou o botão. Só porque a garota não tem seios como os meus, deve achar que a blusa vai ficar melhor nela, mais larguinha. A mãe dizia que olho grande dava até doença, deu sorte que foi só a blusa. No almoço, inclusive, a comida caiu do prato, teve que almoçar com toda a equipe, para conhecer a novinha. Preferia comer no salada, mas não podia deixar mau vistos diante de uma novidade daquela. A mesa estava nitidamente ionizada, de um lado todos os homens – mais a boa nova, que está tomando Coca-cola diet. De outro, as profissionais e o Paulinho, o melhor conselheiro sexual e sentimental das meninas do escritório. Ele acha que ela vai se dar bem no cargo.

Arruma a mesa porque gosta de tudo organizado. Vai ser um novo dia, depois desse relaxamento, ninguém vai me segurar. O projeto vai dar certo, a promoção vai vir correndo a me abraçar e seremos felizes para sempre. Só não toma o cafezinho porque cafeína nessa hora atrapalha. Mas adora um, por mim, tomava o tempo inteiro. É melhor relaxar. Começa a ler o livro ao lado.

Ainda enrolada na toalha penteia os cabelos que continuam embaraçados. Essa escova vagabunda que machuca o couro cabeludo, tenho que comprar uma nova. Mas tem toda calma do mundo, vai usar o pente. Se olha no espelho, uma grande mulher, pronta para começar tudo de novo a qualquer hora. Põe a calcinha da sorte e a roupa mais confortável que tem, não quer que nada a incomode agora. Nenhuma briga, nenhum desentendimento, nenhum chute no Dudu, apenas a transparência da água. Como Paulinho disse, só um banho para relaxar num dia como esses.