Em preto e branco

O álbum de fotografias estava como todo álbum antigo de família. As fotos ainda em preto e branco, porém com as meninas já adolescentes viam-se umas corezinhas, aqui e ali. O papel de fundo do álbum, que deveria manter coladas as fotos, desistiu de sua função, envelhecido que estava, não mantinha mais a cola firme e, dessa forma, as fotos, vez em quando, samborilavam dentro de um plástico improvisado. As traças, ao contrário do papel, tinham feito seu trabalho com êxito e roído as pontas e orelhas. A cor amarelada não se soube como chegou - era tão branquinho, disse a avó, com grande dificuldade - mas o tempo costuma deixar as coisas mais elegantes, agora ele parece de ouro... De fato, o álbum tinha um valor que se intensificava a cada segundo que passasse, não importava o amarelado do tempo, nem o descolorido das fotos ou as orelhas comidas. O valor daquele álbum de família, assim como todos os álbuns que são preservados, ou não preservados, mas recordados em toda reunião com os netos, é muito maior do que ouro. Vale a lembrança dos tempos de moça da avó, as dificuldades do pai na luta para sustentar os filhos, o bebê que tinha nascido e caminhava, aos tropeços, com seu macacão branco e chapéu, no jardim da casa do sítio. Vale o aprendizado sobre a vida que os netos agora vão interiorizando, através de incríveis histórias e bravuras que serão contadas emocionantemente.

- Sabe que hoje eu estava caminhando na praia e encontrei uns antigos amigos dos tempos de Marinha. Um deles me perguntou porque eu saí tão cedo. Ora, foram as conseqüências, meu caro. Eu queria dar uma vida digna para minha família, queria que meus filhos estudassem nos melhores colégios, nas melhores faculdades, tivessem a melhor formação e com o salário que eu estava ganhando teria que colocá-los numa escola pública. Mas as particulares eram as melhores. Agora, a forma como eles aproveitaram o estudo já não é problema meu.

Seus sorrisos inusitados, como a lembrar a velha época, repassar as emoções de muitos tempos, como o avô que conta histórias, fixou-me longamente. Talvez por ser um avô que não cheguei a ter, o meu morava muito longe, não tínhamos, porquanto, o costume de conversar sobre sua vida e seu passado. O outro morreu quando eu era pequena, a única lembrança que tenho é uma lupa que, disseram, foi dele e guardo bem abrigada. Meu pai disse que vovô era grande conhecedor, tinha sido caixeiro viajante, correndo através do Brasil para mostrar catálogos de produtos da empresa na qual trabalhava. Na verdade, fazia isso, disse ele, para fugir do governo de Getúlio que estava a perseguí-lo por ser líder de uma greve estudantil. Se formaria em engenharia, porém, no seu último ano de faculdade, o presidente assinou uma lei que fê-lo prolongar-se em mais três anos e, dessa forma, Henrique não conteve sua revolta. Tinha incrível dom de contar piadas, chegando a apresentar-se para grande platéia. Meu pai diz que numa dessas estava ninguém menos que Jô Soares sentado numa mesa, escancarando-se de rir, sem parar, ao ritmo acelerado das piadas de meu avô. Era uma piada atrás da outra, dos mais variados tipos, de portugueses a cotidiano. A única nacionalidade que não entrava na brincadeira eram os italianos, por ser ele pertencente de família dessa origem. Nas suas viagens ao redor do mundo seguiu-o minha avó, e juntos construíram uma família com quatro filhos, sendo o meu pai o mais novo, com diferença de doze anos para a mais velha. Dizia que ele era muito sabido, qualquer assunto de história, se estivesse ainda vivo, me explicaria. Mas nunca explicou, porque nunca nos falamos muito. Porém, lembro com muita nitidez da sua voz ao telefone – oi, Gigi! – meio rouca, puxada, voz de gordo. Era o vovô Gordo e, quando fui a Natal visitá-lo, lembro-me de que gostava de pular em cima de sua barriga, comer pizza que ele próprio fazia e tomar água de côco do seu coqueiro. Foi essa experiência que eu cultivei, timidamente, ao conversar com o Senhor Paulo, e foi essa mesma fala, dos saberes de história, que Paulinho, o filho do meio, me disse, interrompendo, oportunamente, uma das suas explicações sobre “O Capital”, de Karl Marx.

Com uma risada, o avô do meu namorado me contou sobre o tempo em que se formou.

- Veja bem, eu fui criado pela minha irmã mais velha. Por isso era muito solitário. Mas solitário é diferente de solidão, eu era apenas solitário, entende? Com quinze anos, então, fui estudar na escola naval, num internato e, com dezenove, já estava formado. O meu superior tinha me deixado no comando de um navio com cento e dezesseis tripulantes, olhe, eu com dezenove anos. – e ria, abrindo um sorriso tão verdadeiro quanto o seu passado. Tomando conta de um navio. Acabado de me formar.

No álbum não tinha fotos de sua formatura, apenas das crianças, eram cinco, pequenas, e do casamento das filhas. Porém, numa caixa que Dona Leda abrira pela ocasião, em meio a muitas outras fotos mais pretas e brancas, estava uma dele com a farda bem passada e o rosto liso, sempre os mesmos óculos perdurando no rosto, e uma postura de, agora, comandante da marinha. No real dos fatos, nunca gostou muito de ser da marinha. Tinha raiva por passar natais tendo que conter revoltas de comunistas insatisfeitos com o governo ditatorial, ao invés de estar sentado à mesa com sua mulher e filhos a comer a ceia. Dona Leda, nessa época, muito religiosa, sempre cumprindo seus deveres como cristã, claro que teriam de ir à missa de natal. Porém, depois da morte de uma amiga muito próxima, ela deixou de acreditar.

- Mas você não acredita nem em Deus? – perguntou Zaine, namorada de Rodrigo, um dos netos, ao fim do almoço.

- Às vezes sim, às vezes não.

É o que acontece quando a esperança de uma pessoa vai embora, correndo. Talvez nem a esperança, mas a vontade de viver, a alegria por pertencer ao mundo. Porém, disse Paulinho, o filho do meio, ninguém pede para descer do céu.

- No mesmo dia em que Leda teve o derrame, essa amiga dela morreu. Elas eram amigas desde o maternal, tanto que minha mulher foi madrinha de um dos seus filhos. Os dois, até hoje, são muito ligados a ela. Sempre telefonam para saber como vai e, de vez em quando, aparecem aqui. São laços que foram cultivados desde muito tempo, amizades fortes que atravessam gerações. Eu não contei de início para ela. Esteve durante um tempo em coma e, quando acordou, não conseguia falar direito. Esperei recuperar a fala para poder dizer. Foi quase como um segundo coma.

Não riu, nessa hora, o Senhor Paulo. Nem todas as lembranças são felizes, dignas do seu sorriso. Por causa desse derrame, Dona Leda perdeu o movimento de uma parte do corpo... e uma parte da alma. Quem não perderia? Essa parte fora embora com sua alegria de viver, a magia com que sempre regeu a casa e os filhos, a esperança, se for essa a virtude, de continuar bem. Contudo, bem vendo, ela conseguiu dar a volta por cima de uma etapa que seria a sua morte lenta, pois sua magia voltou, mesmo que com menos intensidade do que antes, mas trazendo junto um sorriso que pode-se facilmente ver em seu rosto, a qualquer hora. Fala-se que a velhice traz de volta os tempos da mocidade. Talvez seja culpa, e uma bela culpa, dos álbuns de fotografia.

- Eu conheci a Leda muito jovem. No início o pai dela não gostava de mim, imagine! Um moleque, que ainda por cima jogava futebol, - enfatizava essa parte - só podia ser ordinário. Era muito engraçado, a avó rezava, todo dia, um terço inteiro para eu desaparecer da vista dela. No entanto, nos casamos, tivemos cinco filhos e hoje está todo mundo ai, já crescido, já quase velho também.

Giovanna Carloni
Enviado por Giovanna Carloni em 03/05/2008
Reeditado em 03/07/2008
Código do texto: T973954
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