Cronista, esse espécime anacrônico
De que cronista devemos nos lembrar? Do pai de todos, o maior de todos, Machado de Assis, que criou essa tradição de cronicar em nosso país, e cronicou como ninguém. Não que aquela forma de fazer crônica fosse nova, invenção dele, mas ele a tornou nova, a reinventou, tornou sua.
Alencar fazia o mesmo tipo de crônica, não era novidade. Mas lembrando o louco do Pound (sempre imagino Pound na gaiola em que o puseram no fim da 2ª Guerra Mundial, às vezes no hospício numa camisa-de-força, arrastando as longas mangas brancas e escrevendo os Cantos com os pés), “Literatura é novidade que permanece novidade”... As crônicas de Machado permanecem novidade. É um prazer renovado ler e reler aquelas idas e vindas, aquelas idéias enviesadas, aquele pegar uma idéia como ao acaso, como se não fosse dar em nada, e era o tema da crônica, se é que a crônica, como Machado a entendia e realizava, tinha tema.
Tomar o ínfimo e tratá-lo como grandioso, ou o contrário, tomar assuntos grandiosos e tratá-los como ínfimos, Machado é o deus ex-machina, é ele quem manda e desmanda na realidade. Tratar a realidade como supra-realidade, e a supra-realidade como realidade, fazer o diabo com as coisas, enrolar Deus e o diabo no mesmo novelo, rindo de um e de outro, com cavalheirismo, para não ofender nem a um nem a outro.
Nelson Rodrigues faz o mesmo tipo de crônica de Machado. A linguagem é que já é outra, rápida, como quer o jornal, sem literatices, indo direto ao âmago. Mas fazia literatura também, disfarçada, com aparente desleixo, usando a técnica do teatro, da movimentação dos personagens, levando o leitor, distraído, para uma surpresa final. “A menina sem estrela” é típica disso. Como dói! Você vai distraído, se divertindo com as tiradas, um misto de humor e sarcasmo, e pá! De repente a porta na cara. A menina que nasceu sem estrelas, cega, não poderá jamais enxergar as estrelas. Nem precisou contar que nasceu também meio retardada, que iria viver pouco. Já tinha posto o leitor a nocaute.
Pôr o leitor a nocaute – esse deveria ser o objetivo de quem escreve.
Machado, campeão, diverte o leitor, distrai-o e distrai-o, até que ele, quando vê, perdeu por pontos – aliás, ganhou. Machado e o leitor ganham nesse ringue do espírito.
Rubem Braga vai tratar do ínfimo do jeito dele, que já não é o jeito de Machado, mas o do poeta que escreve em prosa. O ínfimo é poesia. Descobre poesia nos ínfimos recantos, nos ínfimos desvãos desta vidinha gozada e dorida. Trabalha como um contador de causos, descansado, com todo o tempo do mundo. Encantado com este mundo destrambelhado, que não tem jeito mesmo, mas que nessa falta de jeito guarda o seu fascínio. O Velho Braga narra a vida que podia ter sido, e foi, não como a de Bandeira, o Bardo, a vida pretérita feliz, e a futura encantada, um clima de nostalgia pairando por tudo.
Disseram que o Velho Braga não teria lugar nos jornais de hoje. Não há mais espaço para essa crônica descompromissada, esse armazém de miudezas da vida. Eta vida anacrônica! Não tem lugar, não tem tempo para a crônica – não tem tempo para o tempo! Pois se até a vida virou anacrônica! Lembra-se do silogismo de Zenão, a incrível velocidade da tartaruga? O coelho nunca alcançaria a tartaruga porque quando tivesse percorrido um tanto a tartaruga teria percorrido outro tanto. Isto é do tempo em que a vida era crônica.
Kafka narra a história da viagem impossível ao povoado mais próximo, que se distancia só ao ser imaginado, e nunca será alcançado. Isto é do tempo em que a vida era crônica.
Hoje é o tempo da pressa. Os deuses quebraram todos os relógios, os deuses do mercado, do consumismo, do espaço cibernético, pós-espaço e pós-tempo. Nós mesmos, pobres homens, somos anacrônicos.
Pus o leitor a nocaute? Pelo menos você não imaginava que eu fosse terminar com esse pessimismo. Salve, Cronos! Salve-nos, Cronos!