ISABELLA E NÓS
A mancha do sangue de Isabella expõe a nódoa de uma sociedade que fechou as portas para o afeto. Abre-as cada vez mais, de formas distorcidas, para o sucesso profissional, preterindo monstruosamente os valores humanos. Também abre as portas (e as pernas) para relacionamentos equivocados e frios, que geram filhos indesejados. Filhos cujos pais culparão mais tarde pela falta de tempo e privacidade; pelas conquistas pessoais eventualmente não alcançadas; pela infelicidade que provém de sua insatisfação na carreira, no sexo e na vida, por mais sucesso que somem.
Somos uma geração robotizada, escrava do modelo norte americano de vida, pelo qual se nasce para ser campeão. Para viver provando ao mundo a força, o poder de superação sobre o outro. Uma geração que não faz amor. Cruza ou acasala e depois renega os frutos desse acasalamento, provendo-os de comida e bens materiais (neste caso os que têm recursos financeiros) ou entregando-os à miséria absoluta (caso dos que vivem na penúria), mas em ambos os casos negando amor, educação familiar, presença tanto quantitativa quanto qualitativa e um mínimo de atenção.
No tocante a Isabella, filha de pais bem sucedidos que a cobriam de coisas, a esperança desses pais (em especial a do pai e a madrasta) era de que as coisas pudessem subornar sua solidão, sua carência de afeto e a cobrança de uma presença que a provesse, de fato. Como itens e mimos comprados na a satisfizessem, a ira do pai sem tempo e da madrasta que disputava esse tempo foi crescendo. A menina queria mais de quem estava muito ocupado ganhando provavelmente status, dinheiro e realizações pessoais, e sem paciência para o que era visto como capricho de uma garotinha mimada que deveria ser grata pelo quartinho aparatado, os abajures e bonecas, as roupinhas de grife, os biscoitos finos e as escapadinhas esporádicas ao parque.
O sangue de Isabella espirra em nós, como o sangue de tantas outras crianças que nasceram de nossos acasalamentos, de nossas relações equivocadas, do amor doentio que só temos por nós mesmos e pelo regalo do corpo, nessas horas. Nossos filhos viraram conseqüências incômodas de nossas horas de folga do trabalho. Coisas que abarrotamos de coisas, quando podemos, e não aceitamos que desejem além. Que nos peçam de presente ou presença, que assim já querem demais. De uma forma ou outra, somos uma geração de monstros... de assassinos natos.