Usina de Sonhos
1. Quando digo que sou de Dois Córregos, logo, querendo elogiar-me como poeta, dizem: “Só podia ser!” Tudo isso por causa do meu amigo José Eduardo Camargo, que inventou uma Usina de Sonhos para produzir poesia, elemento em falta no mundo de hoje. Não vou explicar o que é a Usina de Sonhos porque não sou a pessoa mais indicada para fazê-lo, sou até a menos indicada, tanto que impliquei com o seu onirismo. Porque não posso conceber que poesia seja sonho, eu que a quero tão real, concreta, viva. Implicâncias.
2. Mas a Usina de Sonhos do José Eduardo, sem me deter em explicá-la, pretendia levar os jovens a produzir poesia, depois os mais velhos, depois os detentos, as detentas, e as paredes e muros que os prendiam, como as paredes e os muros dos cidadãos livres da cidade, floriam e cantavam com as palavras de poemas. Palavrões pichados, gestos obscenos? Não; poemas. A poesia é a linguagem da liberdade. O sonho floresceu, as crianças voaram com asas de anjos, os adultos tornaram-se crianças, as grades não doíam tanto, a imaginação passava além, sonhando com um mundo melhor, de mais alegria, onde tudo é possível, porque a poesia é possível.
3. Implicâncias minhas, repito. Implico até com o verbo “produzir”: poesia deve ser criada, embora o poeta não seja Deus, e não produzida, que é próprio da máquina, e o poeta certamente não é uma máquina. Mas eu orientei uma oficina (olhem como a língua é traiçoeira: “oficina”, coisa de máquina) de poesia no Sesc aqui de Bauru e, seguindo as sugestões de meus textos, o coordenador cultural da entidade montou um cd muito bonito expondo os resultados do trabalho, os poemas criados pelos discípulos, com... Uma máquina! Sim, senhores: as engrenagens de uma máquina fazendo saltar as letras, as palavras, os poemas – não criados, mas produzidos em série. Ficou bonito – e qualquer um pode ver que os poemas são formas autônomas, que nada ficam a dever às máquinas.
4. Nasci em Dois Córregos, com muito orgulho, e no Matão, uma zona rural do município, onde vivi os primeiros anos de minha vida, meus primeiros verdes anos, e o contato com a natureza fez-me poeta, e me sinto cada vez mais poeta, se isso é possível, quanto mais me sinto ligado à terra. Eu já disse: o mal do homem contemporâneo é ter perdido as suas raízes. As minhas estão lá, no Matão da minha infância. Lá enterrei o meu umbigo, que floresceu e floresce com o sol e com a chuva. Quando dizem – o umbigo do mundo!, penso logo no meu Matão. Quando dizem que alguém só olha para o próprio umbigo, penso no meu – florescendo na terra vermelha do Matão.
5. O José Eduardo fez tanto que Dois Córregos ganhou o mundo. Foi reconhecida pela Unesco como a Cidade da Poesia. Por isso me dizem: “É de Dois Córregos? Por isso é poeta – veio da Cidade da Poesia.”
6. Usina de Sonhos! Eu digo que não basta sonhar, que fazer um poema é um árduo trabalho com as palavras. Que um poema não é fruto da inspiração, mas é construído como se constrói uma peça material. Não é à toa que João Cabral insistia na materialidade da palavra. Vamos falar também da materialidade do poema, que não é nuvem etérea, mas forma, mas coisa.
7. Vamos falar da materialidade do sonho. Não vou negar mais que a poesia é sonho, mas insisto que existe uma materialidade do sonho. Como? Oras, no poema.
8. Eis uma bela definição de poema: O poema é a materialidade do sonho.
9. É piegas, concedo. É piegas, mas o sonho faz falta na vida. Como o sonho é abstrato, vamos materializá-lo no poema.
10. Entre versos, palavras, imagens, a poesia continua. “Nem todos se libertaram ainda”, disse Drummond; por isso a poesia é necessária. E quando todos tiverem se libertado? Então tudo será poesia. Piegas, mas belo.
11. Depois de Auschwitz a poesia não é mais possível? Então é que se torna mais necessária. O desespero do abismo transcendental, mais do que qualquer coisa, precisa ser cantado.
12. Depois que as cidades explodiram, transformaram-se em metrópoles, não é mais possível a poesia? O homem chega à transcendência da banalidade da vida pela poesia.
13. A poesia é a transcendência da coisa – ou do sonho – no poema.
14. Usina de Sonhos? Usina, porque tratamos de coisas concretas. Sonhos, para que a realidade não nos sufoque. Certo que Dois Córregos não é nenhuma grande metrópole, mas, por isso mesmo, lugar para a emoção recolhida na tranqüilidade, como queria Wordsworth ao trabalho do poeta, Dois Córregos merece ser chamada – Capital da Poesia.