Minha carranca é o limiar entre o ser e o estar

A ponta do seu indicador segue agora essas linhas ou talvez menos; talvez sejam só as meninas que brincam de descifrar palavras que omitem pensamentos dos seus olhos. Não vou omitir desta vez, a minha carranca muitas vezes não é só uma máscara adequada à célebre missão de me resguardar dos meus medos, muitas vezes ela é a mais pura e fiel tradução das minhas verdadeiras expressões.

Poucos astros orbitam ao meu redor (não me acusem de egocentrismo, orbitar é só uma palavra para melhor elucidar minha relação com os que amo); seus rostos, seus sorrisos, choros e sono são suas faces voltadas para mim, o carinho, o amor, a atenção e até mesmo as ríspidas palavras que por desventura escapam, encharcam meu chão que é arenoso e seco – absorve tudo. De tudo que me dão, o que vêem refletir? Gravitam na inerte propagação do tempo sem terem a certeza de quem sou, ou se apenas estou. Essa fronteira é tênue e eu transpasso facilmente para ambos os lados.

Dizer “te amo” olhando a alma pelos olhos de alguém é fácil quando não é de verdade. Quando é de verdade ela também sai, mas traz junto o tímbre inimitável da sinceridade. Não lembro quantas vezes eu disse “te amo”, nem quantas vezes foram dissonantes com o coração. O único fato contundente é que eu disse “te amo”, e eu disse também muitas outras coisas: te quero, te odeio, nunca, sempre, tenho certeza, sim, não...; meu chão já começa dar sinais que está ficando encharcado de tudo isso e logo logo, esse jogo de esconder mentiras e falsificar verdades vai se tornar cada vez mais sem sentido prático. Chega uma hora que não faz mais sentido assumir atitudes que não são suas, mas que estão na ordem das coisas sobre as quais pouco ousamos questionar.

Paro para imaginar como seria minha realidade se eu tivesse sido muito mais do que estado. Não considero a idolatria algo saudável, nem mesmo uma simples tietagem em sua versão mais piegas, mas algumas figuras célebres me despertam atenção e aí vem aquele sentimento desgraçado da inveja. Alguns dizem que existe a inveja branca, mas tudo no fundo é inveja. E na minha inveja vejo pessoas que chegam ao auge da maturidade com uma cabeça lúcida, com um espírito renovado e uma vontadade de viver que às vezes nem reconheço em mim. Recetemente vi uma dessas pessoas que admiro dizer algo tão idiota que chega a ser filosófico. Vi no SBT dona Derci Gonçalves ser novamente questionada de seu comportamento inadequado de falar muito palavrão, e ela na lucidez de seus mais de cem anos disse: “me criticam porque eu falo 'filho-da-puta', mas o filho da puta é uma coisa linda”. Que razão suficientemente forte haveria de fazer a Derci Gonçalves não ser o que ela é?

É nessa beleza dos filhos-das-putas que comecei a pensar depois deste dia. Benditos sejam os rebentos das putas, porque não? Não vejo nenhum demérito em ser filho de puta, até porque elas são para a humanidade mais necessárias do que a própria democracia – o homem poderia viver muitos anos cerceado da liberdade, mas cerceado do prazer muito menos. E dona Derci me causa inveja, pois vejo nela alguém que a vida inteira foi e não simplesmente 'esteve' para agradar quem quer que fosse. Por isso rezo todos os dias (pois acredito sim em Deus, já tentei não acreditar, mas não consigo) que a maturidade chegue para mim e com ela alcançar a pureza de ser, estando em paz.

Domm Paulo
Enviado por Domm Paulo em 13/03/2008
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