Confraternização
Festa no trabalho é assim mesmo. Já começa difícil desde a organização. Um ou mais colegas se propõe a organizar ou, então, um é compelido a isso. Neste caso, quem foi o compelido? Eu. Até aí, tudo muito bem. Todo mundo elogia, fala que tem certeza que vai ser uma festa ótima, que não vê a hora de chegar logo, até que você é tão gente fina que é conhecido como “o Cabelinho”. Hahahaha Que engraçado. Aí começa mensagem de e-mail para lá, lista de participantes para cá, escolha dos comes e bebes, música (hummm o repertório) cálculos e mais cálculos, planilhas de acompanhamento (os mais organizados), pesquisa de preço, encomendas, recolhimento de dinheiro, entrega, ufa! E tem muito mais. No dia do evento o compelido, no caso, eu, já está todo estressado, sem um pingo de ânimo para a festa, torcendo para que o quibe esteja estragado para dar dor de barriga naqueles que ficaram reclamando do valor da contribuição.
Chega a comilança toda e quem é que tem que arrumar tudo? Eu, sozinho, claro. Nessa hora todo mundo faz aquela cara de super ocupado olhando fixo pro micro, outros têm a cara-de-pau de pegar o telefone e engatar uma conversa com um amiguinho imaginário. Olha... e o tanto de gente que vai ao banheiro! Haja xixi! E o compelido para lá e para cá, com um sacolão enorme, juntando copo descartável, fazendo montinho com o guardanapo, já abrindo os refrigerantes para agilizar. Nem o barulho repetitivo tzzzz, tzzzz, tzzz dos refrigerantes eclodindo igual fogos de artifício de festa de interior, faz os possíveis ajudantes se animarem a ajudar. É claro que tem sempre um espertíssimo que aparece quando já está quase tudo pronto e pergunta: quer ajuda? Claro que sim! Mas sai um: não, obrigado, já acabei. E depois, a fatídica pergunta: posso experimentar? Bufando, mas engolindo em seco, respondo sem olhar para o infeliz: claro. Aí, óbvio, o “ajudante” para fechar o diálogo, rindo, com um salgado de cada na boca lotada, completa: é para ver se não está estragado. Muito engraçado, quase morri de rir, comediante. Essa piada é novíssima para você? Nessa hora é que eu, além de já ter perdido o apetite, sinto náuseas. Quanta cretinisse para uma pessoa só! Devia sair distribuindo um pouco dessa cretinisse por aí, lindão.
Nessa hora você pensa que o trabalho árduo do compelido acabou né? Mas não... tem a parte de avisar o chefe que está tudo pronto e perguntar se já pode chamar os coleguinhas. Ufa! Pode. Não agüentava mais sentir aquele cheiro de fritura com gás de refrigerante. Agora pronto, é só chamar todo mundo e sair de fininho. Se alguém me vir fora da “festa” é só falar que o telefone tocou mas que já está voltando, afinal, alguém tem que atender as ligações, a empresa não pode parar e blá, blá, blá... e assim é feito. Espero todo o discurso de abertura do chefe, com aqueles mesmos votos de um ano novo feliz, de muitas realizações, que o trabalho do ano que se inicia seja bem melhor e... bomba no ano que passou! Tudo tem que melhorar, as pessoas têm que se empenhar mais, tratar os clientes melhor, aumentar os lucros ué! Metade do meu corpo dentro da salinha, a outra metade lá fora, pensamento dois quarteirões depois, enfim. Alguns puxões de orelha depois, é aberto o “buffet”. Cena bizarra. Homens tão cheios de pompa sem o blazer de seus ternos caríssimos (pendurados na cadeira), gravatas tortas e pingadas de cheiro verde ou cebolinha. Mulheres tão auto-suficientes nos seus saltos, entram em cena com a mão cheia de salgados, suas saias perfeitamente engomadas, agora vistas riscadas de patê e sapatos caríssimos, idem. Rapidamente, aquela metade do meu corpo já tinha voado da sala antes do ataque felino aos salgados e refrigerantes. Risadas, batidas nas paredes (isso tem sim, deve ser a empolgação), mais tzzzz de refrigerantes (ué? Não tinha aberto todos?), tosses engasgadas (deve ser a farinha da empada), ameaças de dança (ainda não descobriram que tem som) depois.... um berro: ué, cadê o Fulano. Ui! Descobriram que tem som mas está desligado. E a típica frase: eu o vi lá fora, foi atender uma ligação tem uma hora mais ou menos (isso mesmo, só perceberam depois desse tempo todo. E pior, ainda estão lá c-o-n-f-r-a-t-e-r-n-i-z-a-n-d-o depois de uma hora). Que vontade de me esconder embaixo da mesa nessa hora, mas a distância entre o pensamento e a ação é longa demais. Aparece um na porta e grita (claro, com a boca cheia de coxinha e um copo do tzzzz entornando): cadê você? Aí me pergunto antes de responder (nessa hora a distância entre o pensamento e a ação é rápida): não está me vendo? Tô tão magro assim? Será que é comigo mesmo? Tem mais alguém aqui? Amiguinho imaginário, é com você? Mas só sai um: já estava indo. Só vim atender uma ligação, afinal, a empresa não pode blá, blá, blá... Já estou na salinha. Corpo todo. Depois é uma sessão de tapinhas de mãos engorduradas de óleo de quibe nas costas e risadas perguntando cadê o som. Envolto naquele cheiro de hálito de coxinhas e tzzz de todas as marcas e nuvem de farofa de empada voando para todos os lados só consigo pensar na minha camisa toda manchada de dedos engordurados, a náusea e o pensamento longe (não sabem ligar a piiiiiiiiiiiiii do som? Vão todos se piiiiiiiiiii!!! Tomara que morram de desinteria!). Mesmo assim, respondo: tá ali. Querem que eu ligue? Nossa! Como me odeio, me odeio, me odeio!!!! Dizer onde estava o aparelho até passa, mas perguntar se querem que eu ligue foi demais!!! Tudo bem, tem perdão, pois como o aparelho é meu e ainda estou na terceira parcela das vinte e quatro que ainda tenho que pagar para quitar sua compra, tenho que ligar mesmo. Tem música? Claro que tem imbecis? Aliás, não. Trouxe só o aparelho sem música, para enfeitar, para me dar trabalho de trazer mais uma coisa.
Agora é que o inferno começa. O repertório é meu. Ninguém respondeu ao e-mail quando pedi para trazerem seus CDs no dia da c-o-n-f-r-a-t-e-r-n-i-z-a-ç-ã-o, ninguém trouxe, ninguém tirou um CD do seu micro para levar na malfadada salinha de reunião onde ocorreria o evento. Agora é ver no que vai dar meus queridos CDs, piratas, aliás, gravados é melhor. Taquei logo para começar uma da Alcione. Silêncio total. Bem, é melhor não descrever o que aconteceu depois, vamos pular. Outro CD: o Rei. Também vamos pular essa parte. Tim Maia. Fábio Júnior (eu sei, eu reconheço, mas gosto é gosto). Fagner. Ai! Que isso? Empada voadora? Maurício Mattar (pelo menos é o primeiro CD dele, gente). No meio da confusão consigo ouvir um “eu gosto gente” bem baixinho, que acho que saiu da minha boca. Até hoje não sei...
Bem, só me lembro do “o Cabelinho”, sentado na malfadada salinha de reuniões, olhando o sapado (um quibe amassado grudado), uma das mãos abrindo e fechando a persiana, a outra com o dedo grudado na tecla play e outro na stop do aparelho de som (agora acho que foi caro esse aparelho) pensando. Ah, ao fundo, música de Raul Gil (nem lembrava que tinha esse CD, muito menos que ele cantava). Realmente, foi tudo ótimo. Agora era planejar a próxima festa atendendo a pedidos, com DJ. Quero ver os pães-duros pagarem mais por causa disso, quero ver. Vou ter que ver... Meus CDs não trago mais, nem o aparelho de som (vinte e quatro parcelas? Af! Dois anos)...