O balconista
Mal clareava o dia e ele já estava lá. Avental com bolso para pendurar dois panos. O dia começava e terminava com o vaivém do pano para limpar o balcão. Nesse intervalo de horas, poderia vê-lo atendendo um ou outro. Não se esforçava para atender, não gostava. Gostava mesmo era de manter tudo limpo e arrumado. Isso sim era atendimento decente para o patrão, senão já teria sido demitido. Se tivesse que fazer um currículo, essa era a sua especialidade: limpeza. O patrão, Zé Mineiro, se incomodava também com o excesso de seriedade do balconista. Entendia que levara uma vida difícil, cheia de percalços pelo caminho, mas ainda existiam bons motivos para sorrir. Zé Mineiro ia a missa todas as manhãs e quando chegava, cantarolando algumas músicas sacras, já o encontrava por lá. Ele tinha a chave do estabelecimento. Trabalhava para Zé Mineiro há quinze anos e poderia dizer que nesse tempo todo, no total, trocou algumas horas de conversa com ele. Alguns dias acontecia de trocarem apenas um bom dia e um boa noite. Com o tempo, Zé Mineiro passou a entendê-lo e não puxava conversa nem sobre o tempo, nem jogo de futebol, nem notícia ruim do jornal, nada. Ele não comentava mesmo. Só balançava a cabeça concordando ou não com os comentários do Zé. Sabia-se que tinha família. Era casado e tinha três filhos. Nunca faltara. Mesmo nas poucas vezes em que esteve doente, aparecia. Ficava mais quieto ainda no seu canto, mas mantinha tudo limpo do mesmo jeito. Homem forte, incomum, mas que não demonstrava no seu físico franzino. Não era alto, a pele bem morena, o rosto sempre sem barba. O cabelo estava sempre bem cortado. Não se lembrava como, mas Zé Mineiro soube que ele cortava o cabelo com o mesmo cabeleireiro há anos. Mas não soube quem era esse cabeleireiro. Por isso, o mesmo corte. As mãos eram desproporcionais ao seu tipo físico, eram largas e grandes. Uma vez ele falou que queria ter sido pedreiro. Seu sonho era construir belas casas, vê-las prontas, ver a “gente chique” como ele chamava. Mas nunca falou porque não seguiu a vida como pedreiro, nem se algum dia foi ajudante ou coisa assim. Ele não era o único balconista do estabelecimento do Zé Mineiro. Aliás, por lá, já passaram muitos. Alguns não ficavam mais do que um dia. Mas mantinha sempre dois. Quando o movimento aumentava muito o Zé mesmo ia ajudar. Um dia, o Zé se surpreendeu ao chegar no estabelecimento e encontrá-lo fechado. Provavelmente, essa seria a primeira vez que seu fiel balconista atrasaria. Mas as horas foram passando e ele não chegava. Mais, chegou uma senhora até bonita para a idade que aparentava. Rosto sereno, pele de um brilho que só se vê em móvel de gente rica, os olhos saltados bem negros e o cabelo negro também. Era de pouca cintura, mas também não era magra. Colocou as duas mãos no balcão e olhou para o Zé. De repente, começou a falar e não parou mais. Falou, falou e o Zé sem acreditar no que via ou ouvia ia só balançando a cabeça, com os olhos incrédulos. Aquela era mulher do seu balconista e vinha dizer que ele não o viria mais. A deixara, o deixara, para servir a Deus agora. O Zé serviu um café para ela sem pressa. Conversaram durante horas. Mais do que todas as vezes em que conversara com o balconista. Ninguém entendeu aquela morte súbita. Apenas, foi. O Zé falou dele para ela. Mostrou as coisas que ele cuidava muito bem. Ela apresentou ao Zé um homem que ele conhecia pouco. Na verdade não conhecia quase nada. Era um homem de muito bem. Ajudava muito em casa, era muito companheiro e por mais incrível que pudesse parecer, sua esposa disse que conversavam muito. Era muito companheiro e bom pai. Aos domingos visitava um asilo de idosos levando bolo que ele mesmo fazia, com um café amargo. Passava a manhã por lá. Gostava de ler o jornal no domingo também, antes de ir, para ter mais assunto com os velhinhos. Outras vezes, levava o jornal e alguns livros de poesia para ler para eles. O Zé ia ouvindo aquilo tudo sem nem piscar. A mulher disse que todos os dias, quando chegava do trabalho, ajudava os filhos nas tarefas da escola e só os deixava assistir televisão depois de tudo pronto e corrigido. Depois tomava banho, jantava e ajudava a mulher com a cozinha. Gostava da cozinha bem arrumada. Não assistia televisão pois achava que o jornal de domingo trazia as notícias da semana toda. Só assistia no domingo, nos outros dias, gostava de ler. Ouvia a mulher falar do seu dia como diarista em casas de família e os filhos reclamarem da escola, mas contava pouco do seu dia. Gostava de falar de outras coisas, de falar o que aprendia nos livros, de aconselhar a mulher com os problemas, os filhos. Mantinha uma horta no quintal de casa muito bem tratada. De lá a mulher tirava a salada e algum tempero para o almoço que ele levava todos os dias para o trabalho. Aos sábados ele ia ao mercado comprar o restante para a semana. Quando chegava fazia uma faxina na casa e o almoço para a família. A mulher aproveitava para descansar. Não eram de receber gente em casa. Não conheciam muita gente e ainda assim achavam que gente de fora da família dentro de casa era problema na certa. Evitavam. Não tinham uma vida confortável mas nunca faltou o principal dentro de casa. e como eram muito zelosos, as coisas de casa, móveis, roupas, eletrodomésticos eram como novos.
Por fim, depois de informar a capela do velório a mulher se despediu cabisbaixa e se foi. O Zé percebeu que depois da saída dela ele ainda ficou quase uma hora parado no balcão lembrando de tudo o que ela falou. Um tristeza o abateu. Um arrependimento, um calafrio. Passara tanto tempo com uma pessoa que não conhecia praticamente nada. Sentiu-se pequeno demais. Pensou como era sua vida, como era em casa com a mulher e os filhos. De que adiantava ir a igreja todos os dias? Agora via que não adiantava de nada e sim, para cantar e pronunciar coisas que seu coração não acreditava.
Mandou o balconista novato ir embora. Fechou o estabelecimento. Decretou luto. Não sabia pra onde ir. Não queria ver o fiel empregado daquele jeito no velório, muito menos aquela viúva, ao mesmo tempo, forte e triste, os filhos... saiu sem rumo olhando as pessoas que passavam nos olhos. Parecia que queria sugar tudo o que pudesse saber de cada um. Nunca soube, nem de si mesmo...