Rogaram-me uma praga (graças a Deus)

Hoje, Sabbat; Não deveria estar escrevendo, hoje é um dia santo, de descanço. Lembrança do término da Obra-Prima; Preço do vício. Já acumulo tantos pecados que um a mais ou a menos, não fará tanta diferença assim. Que dia é hoje afinal? Qual seu significado? Não sei que santo é homenageado hoje, com certeza deve haver algum, mas sei que ontem foi aniversário de São Paulo (Saulo, Saulo, porque me persegues?); Há exatos 31 dias antes foi aniversário de Natal (mas nenhum estrela guia passou por lá); O meu chegará em Junho, aos fins do ciclo de gêmeos (das estrelas, Castor e Pólux velando eternamente os navegantes).

Nosso mundo rola sobre o manto calendarium e seus registros seculares. A cada nascer e pôr-do-sol, a cada lua nova, horas acumulam dias e anos como areia na ampulheta, e que fração deste rastro nos cabe agora? - Torço para que exista mais areia na parte superior deste relógio divino.

Ademais das aplicações práticas que nos valem as datas, compassando as estações e o trabalho, fico pensando no efeito que elas nos causam; Pois chega o dia que muitos compram presentes, mimos e fazem baquetes para comemorarem o nascimento de alguém; Chega o dia em que muitos compram presentes e fazem banquete para comemorarem a morte deste mesmo alguém; Na mesma data em que outras tantas comemoram a libertação de um povo escravizado, que para estes a morte daquele alguém não tem muito significado; Outros em algum lugar do mundo reservam uma data para comemorarem a chegada de uma estação, ou a fuga de um profeta, sendo este profeta diferente do primeiro, cujos seguidores também não o reconhecem. E somadas à estas grandes comemorações temos as pequenas: nossas mães, nossos pais, amantes, filhos e por aí vai; Mas sobre todos a regra geral: comprar, comprar, comprar - parecemos crianças brincando num carrocel, acenando e fazendo festinha para os pais a cada volta do brinquedo, com a boca cheia de pipoca.

Longe da grandiosidade da comemoração da grande urbe, e na mesma data, duas senhoras me páram na rua; “Meu filho, você poderia me ajudar, por favor?” - Acena para mim uma delas com uma caneta e um pequeno cartão nas mãos; “Eu não enxego direito, você poderia anotar o nome de minha amiga aqui nesse papel?”; Peguei a caneta e o cartão e perguntei o nome dela, quando soube que se chamava Amália e que estava fazendo setenta e oito anos naquele dia; “Parabéns dona Amália”, fiz congratulações; “Que nada meu filho, estou muito velha”.

Anotei o nome dela e o bairro em que elas haviam se conhecido e mais detalhes para contato, e aproveitei para acresentar: “Dona Amália, parabéns por todos os anos bem vividos e que Deus lhe reserve muitas primaveras” - piegas, mas não sabia o que escrever na hora. Em enquanto escrevia, fiquei sabendo que era viúva, tinha dois filhos e netos, mas todos moravam fora de São Paulo e que, repetidamente, ano após ano passava o aniversário sozinha; Desta vez havia resolvido comer o bolo que sempre é montado na Rua Rui Barbosa no Bixiga, acrescido de 1 metro a cada novo ano da cidade. Eu, tentando ser agradável, disse para dona Amália que ela não se queixasse da idade, que para ela era uma dádiva a certeza da longevidade, certeza que eu não tinha, e que meu maior desejo é viver no mínimo cem anos. Ela de pronto disse: “pois vou lhe rogar uma praga para que você viva até os cento e vinte anos”.

Despedi-me das duas maluquinhas e segui meu caminho. Fiquei com aquilo na cabeça - tomara que essa mulher tenha falado pela boca de um anjo – ainda mais com a certeza que seguimos em linha sempre. Prova para mim na ação de dona Amália, quebrando seu ciclo quando resolveu sair de casa e ver a vida. Saiu do confinamento, talvez a própria vida a tenha empurrado para isto, e realizou alvo novo, que resultou em uma nova amizade. É evidente dizer, mas parece que nos iludimos acreditando que datas revivem. Parece inútil esperar a passagem de um dia específico para se fazer algo especial. É como acreditássemos que é o mesmo dia de novo, como se aquele dia específico trouxesse de volta a aura soterrada no tempo.

Os astros, engrenagens de nosso calendarium, rondam, ciclicamente, nosso orbe terrestre como que nos vigiassem. Talvez certificando-se que estamos aproveitando bem a fração que nos concedem. E nós, ingenuamente, achamos que eles trazem de volta o nosso dia. Se as palavra de dona Amália estiverem certas, acho que ainda há muita areia na parte superior de minha ampulheta.

Domm Paulo
Enviado por Domm Paulo em 26/01/2008
Código do texto: T833861